Hugo Viana
Entre o escritor e o leitor existe um profissional cuja
atividade é pouco compreendida: o crítico literário. Autor e crítico
compartilham o interesse por debater literatura, refletir sobre o mecanismo
literário e o funcionamento do mercado editorial, e desse confronto intelectual
surgem certas rusgas e concordâncias que historicamente ajudaram o
amadurecimento literário. "O crítico é um leitor especializado do texto
ficcional", opina Alan Flávio Viola, professor de literatura e crítica da
UGB-VR, organizador do livro "Crítica Literária Contemporânea", que reúne
textos de autores que pensam sobre o atual momento da análise literária. Para
debater este assunto, pedi aos escritores Raimundo Carrero,
Fernando Monteiro e Sidney Rocha que formulassem perguntas para que os críticos
Thiago Corrêa, Cristiano Ramos e Cristhiano Aguiar respondessem - questões sobre métodos de análise e
inquietações da atividade hoje em dia.
Raimundo Carrero – Em
geral, o crítico não reflete o objeto em análise - o livro -, mas procura
aplicar suas próprias teorias sobre literatura. Vale o que o crítico pensa e
não o que o artista escreve? Não seria mais correto analisar as qualidades
intrínsecas da obra?
Thiago Corrêa - Teoria é ferramenta, algumas se ajustam melhor
à necessidade do texto analisado. Em geral, o que vale é o texto, o livro. A
questão é que “as qualidades intrínsecas da obra” são passíveis de
interpretação. E isso gera mal entendidos, um crítico não é o dono da obra,
assim como a intenção do autor às vezes não se concretiza. O sentido de um
texto muda com cada leitor, transforma-se com a época, condição social,
formação cultural. Para evitar o relativismo, o crítico tem o compromisso de
fundamentar sua opinião, exemplificar argumentos e apontar trechos que
justifiquem sua análise.
Raimundo Carrero - Na
França, o grande crítico da época Saint-Bevue disse que Flaubert não sabia
escrever. A história provou o contrário. E agora?
Thiago Corrêa - Sainte-Beuve foi um dos defensores de
Flaubert na polêmica que envolveu “Madame Bovary” e, em termos negativos,
questionou incoerências históricas em “Salammbô”. Equívocos não inviabilizam o
exercício crítico, mas motivam o aperfeiçoamento. Sainte-Beuve estava ligado à
tradição de crítica histórica, que buscava a interpretação da obra através da
biografia do escritor. Essa tradição perdeu força com o surgimento de
movimentos como a Nova Crítica e o Estruturalismo, que defendiam uma análise
mais centrada no texto. Hoje os Estudos Culturais nos dizem para observar as
mudanças históricas para não cair na presunção de achar que a nossa verdade é
absoluta.
Fernando Monteiro -
Quem, atualmente, leva em consideração - quero dizer, qual tipo de leitor - o
que um crítico escreve sobre um livro?
Cristiano Ramos - Cabe pergunta prévia: quem leva literatura
em consideração? Ao chegarmos à resposta, às pessoas que ainda mantêm hábito da
leitura, perceberemos que todas têm opinião sobre a crítica - prova de que não
a ignoram. Se concordam ou não, se aceitam os caminhos e juízos sugeridos, aí
são outros quinhentos. Essa “imensa minoria” não tem só uma ou duas formas de
pensar a crítica, creio que precisaríamos de longo ensaio para chegar a algumas
formas de ler crítica hoje.
Fernando Monteiro -
Inúmeros livros publicados hoje são absolutamente desimportantes. O público não
se interessa em ser alertado sobre eles. Então, o que faz, nestes dias, um
crítico?
Cristiano Ramos - A literatura perdeu sua centralidade em
nossa cultura. É fato. Mas ser arte coadjuvante não significa dizer que é
inexpressiva. Assim como no caso do escritor, cabe ao crítico parar de
choramingar, buscar espaços (novos ou de resistência), refletir sobre as
demandas dos leitores, aproximar-se do mundo ao redor dos livros. Como sempre
acontece, não é a literatura ou o crítico que morre, mas sim aqueles que
transformam suas lidas e crenças em velhas cabeças empalhadas e penduradas na
parede.
Sidney Rocha - Se
temos hoje uma literatura abaixo da média, do ponto de vista de estética e
visibilidade, onde os nomes que se destacam talvez sejam ainda os do século 19
e 20, como anda a nossa crítica literária? É decadente, também?
Cristhiano Aguiar - Vejo de forma diferente este debate. Não
concordo que nossa literatura contemporânea esteja decadente. Pelo contrário,
creio que há bons poetas e prosadores escrevendo suas obras neste momento.
Muitas vezes, a impressão de "decadência" surge pelo fato de que
achamos que os clássicos já nasceram clássicos. Livros que estão no centro do
nosso cânone foram aclamados quando lançados? Sim, mas isso não é verdade para
todos. Além disso, mesmo ao serem aclamados, suas entradas na literatura
brasileira não aconteceram sem polêmicas, debates, discordâncias. Um clássico
chega até nós com camadas e camadas de mediações. Enquanto isso, a produção
contemporânea está criando o seu próprio lugar. Assim, não me alinho com as
teorias críticas que falam de uma impossibilidade da ficção ou da escrita
literária no mundo contemporâneo.
A crítica não está decadente, embora eu veja com preocupação
o fechamento recente de revistas de cultura e suplementos dedicados a livros.
Apesar da grande imprensa cultural estar sacudida, a crítica continua a ser uma
prática constante e instigante, seja ela feita por acadêmicos, ou por críticos
de outras formações e que militam em diferentes suportes.
Sidney Rocha - Antes,
a crítica era parceira em denunciar formas de poder que constroem cânones.
Então, crítica, cânone e construções discursivas pareciam evoluir juntos. Como
vê isso hoje? A crítica não está demasiadamente presa à autoridade do passado
canônico? Você não acha urgente que a crítica busque uma forma de se legitimar
historicamente, compreender seu objeto e justificar suas escolhas?
Cristhiano Aguiar - Discordo da hipótese de que a crítica era
necessariamente um instrumento na denúncia da constituição de formas de poder.
Na verdade, é possível trabalhar com a hipótese contrária, de que seu
nascimento esteve estreitamente vinculado a uma nova constituição de poder, bem
como à formação de todo um novo cânone. Um dos protomomentos da crítica
literária está relacionado com as práticas da inquisição, por exemplo. Para
justificar a inclusão ou exclusão de um livro em determinado sistema cultural e
social, os inquisidores muitas vezes faziam autênticos pareceres de apreciação
da obra, nos quais levantavam questões relacionadas a valores morais, estéticos
e históricos. Seguindo o mesmo raciocínio, é interessante também lembrar que
nos antigos salões de arte, a crítica desempenhou um papel de mediador do gosto
burguês em ascensão. Quantas vezes não tivemos a figura do crítico
"oficial", cujo papel principal consistia em ser uma espécie de
"guardião" da Arte? Assim, um papel político conservador para a
crítica esteve em sua origem desde o seu princípio.
Por outro lado, a outra face da moeda é verdadeira: a
crítica pode e deve desempenhar um papel crítico, discutindo as relações entre
arte, política e mercado. Isso é cada vez mais urgente e nunca devemos esquecer
esse norte ao escrevermos sobre literatura.
Acho que a crítica que importa é aquela que coloca a si
mesma sob o signo de uma implacável desconfiança. Não sei se é o caso de se
legitimar o tempo inteiro, porque às vezes o gesto político pode estar na
recusa a uma legitimação. Nesta recusa começaria o processo de questionamento
dos cânones e dos mecanismos legitimadores, muitas vezes excludentes e cheios
de preconceitos no tocante a questões estéticas, raciais, geopolíticas e de
gênero. Mas talvez a pergunta queira apontar para outra faceta disto: a de que
a crítica não pode perder de vista a sua função social, a generosidade de
dialogar com diferentes públicos.
A crítica está demasiado preso à autoridade do passado?
Depende. Creio que não é possível generalizar isto, porque, felizmente, há
muitos diferentes críticos em atuação no Brasil e que possuem diferentes
formações, campos de ação e interesses. Talvez fosse o caso, aqui, de discutir
projetos críticos individuais.
MÉTODO - Para esta conversa, os escritores formularam perguntas sem saber quem iria responder. Os críticos replicaram sem conhecer a identidade do autor das questões.