segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Para integrar a leitura à vida interior


Hugo Viana


Alguns autores transformam a ideia de "literatura pessoal" em um meio para, a partir de suas próprias histórias e experiências, falarem sobre temas mais amplos. Em "Rostos na Multidão" (Alfaguara, 168 páginas, R$ 29,90), primeiro romance de Valeria Luiselli, 29 anos, a escritora mexicana releva seus métodos de escrita, criando um enredo que mistura fatos reais à alegoria literária. O livro tem uma estrutura que alterna longos e curtos parágrafos, como se o fôlego variasse de acordo com a respiração dos personagens; nessa divisão, surgem trechos narrados por duas pessoas separadas pelo tempo e espaço, mas emocionalmente próximas. Um deles é uma mulher, mãe de dois filhos, que trabalha traduzindo livros que embora tenham valor literário parecem ignorados pelo mercado editorial. Ela pretende escrever sobre a juventude em Nova Iorque e a obsessão pelo poeta mexicano Gilberto Owen, que existiu de fato e ainda hoje permanece pouco conhecido - é dele a segunda voz do enredo. Nesta entrevista, a autora comenta sobre o que há de biográfico na história e reflete sobre a literatura atual do México. 

Gostaria que falasse sobre a narradora do livro. Ela se parece com você? Em especial pela maternidade (ou talvez a noção de família) e o interesse por literatura. 
Não é uma novela autobiográfica - embora exista uma certa "matéria prima" que venha de minha própria vida. Mas é normal existir essa confusão. Aconteceram coisas certamente curiosas comigo depois desse livro. Há alguns meses, tive a honra de conhecer, aqui em Nova Iorque, o brilhante autor holandês Cees Nooteboom. Falamos durante várias horas e, em um momento, ele me perguntou o nome dos meus dois filhos. Eu disse: Mas só tenho uma filha. Ele, desconcertado, lembrou que em minha novela a protagonista tinha dois filhos, não um. Ficamos nos olhando por um momento - em silêncio - até que ele começou a rir. (Nooteboom é certamente um mestre da autoficção).

O que diria sobre sua relação com a literatura? Por exemplo, o que representa um personagem como Owen? Parece simbólico ele ser um poeta antigo e esquecido...
É uma boa pergunta. Suponho que poderia dizer que sou, antes de tudo, uma leitora. Minha escritura, então, está sempre mediada pelos livros que leio. Há autores que entraram em minha imaginação com força particular. Owen é um deles, por sua poesia e novelas, mas sobretudo por suas cartas. Li compulsivamente as cartas que ele escreveu nos anos 1920 sobre sua vida no Harlem. Eu estava, nesse momento, vivendo no Harlem. Ele se converteu em uma espécie de companhia, uma voz que mediava a relação entre o mundo e eu - e então, naturalmente, ele se converteu em personagem do livro. 

A certa altura, você escreve: "Meu marido lê alguns destes parágrafos e me pergunta quem é Moby. Ninguém, digo, Moby é um personagem". Esse trecho parece revelar uma realidade literária feita a partir dos moldes de uma realidade externa à literatura. Como vê essa divisão? 
Não creio que exista uma divisão real entre uma coisa e outra. Claro: a dor do parto e a dor de uma morte na família se experimentam de forma distinta ao parágrafo mais sublime ou ao mais perfurante. Mas a dor do parto está, também, atravessada por alguma leitura que fizemos, e nossa experiência de morte é inseparável das muitas mortes que encontramos nos livros. Há pessoas que dividem categoricamente a vida real da leitura. É uma divisão absurda porque a leitura é integral à vida interior e, assim, à maneira como nos relacionamos com o mundo. O que lemos não ocupa um lugar separado - nem privilegiado nem inferior - do que vemos, ouvimos ou experimentamos por qualquer outra via. 

O livro tem uma estrutura peculiar: alterna breves passagens que falam de diferentes momentos e situações. Como chegou a essa construção narrativa? 
A forma desta novela responde a um ritmo de pensamento e, digamos, a um tipo de respiração que não pude evitar durante a época em que escrevi. Mas, claro, eu não descobri isso na primeira tentativa. Não foi fácil encontrar a forma exata para contar a história. Passei anos em busca e provas falharam para eu deixar de experimentar com formas que não eram honestas. Com honestas quero dizer que não respondiam a instintos profundos em mim, que simplesmente ensaiavam estilo. Alfonso Reyes dizia que há três tipos de escritores: os que pensam antes de escrever, os que pensam enquanto escrevem e os que pensam depois de escrever. Em meus melhores momentos, pertenço à segunda categoria. A forma dessa novela é produto de minha fidelidade a essa condição: pensar enquanto escrevo. 

Gostaria que falasse um pouco da literatura mexicana atual. Aqui no Brasil foram bem recebidos Juan Pablo Villalobos e Mario Bellatin - autores que, de maneiras muito diferentes, se referem à realidade social e política do México. Podemos falar de unidade na literatura contemporânea do México? 
É curioso, eu pensaria em Bellatin e Villalobos como dois exemplos dos extremos opostos da (boa) literatura mexicana atual. Ambos são bons escritores - e inteiramente distintos. E não, não creio que se possa falar de uma unidade na literatura contemporânea do México. É certo que existem muitos escrevendo sobre a "era do narco" - as famosas "narconovelas". Mas há muitos também, e muito bons, que não participam dessa tendência (que, no meu parecer, é passageira). 

Diferente desses dois escritores, seu livro não parece interessado na discussão de crises políticas e sociais. Como vê o tratamento desses temas na literatura? A literatura pode (ou deve) afetar a realidade?
Este é um tema que me ocupa. Dou voltas - e escrevi um par de ensaios críticos a esse respeito. Creio que a palavra chave que você usou é "afeta". Creio que a literatura não tem o dever de refletir uma realidade social particular, mas sim pode e deve, de alguma maneira, interferir nela - afetá-la. A mim não interessa falar da violência nas ruas. Me interessa a violência em outro nível - a violência passiva, silenciosa, brutal, entre as pessoas. México é um país em guerra - isso se reflete em todos os estrados da sociedade. Eu não falo de cabeças cortadas, drogas nem pistolas, mas sim da violência subterrânea. 

Este é seu primeiro livro, e vem sendo bem recebido. Ultimamente a literatura feita por jovens chama a atenção a partir da fixação pela idade e por listas (no Brasil, o recente lançamento da "Granta" em português causou alguma polêmica). O que diria sobre esse estado atual do mercado editorial?
Esse é um tema difícil, com diversas arestas. Creio que as listas, como a da "Granta" em português e em espanhol - que também causou certa controvérsia - ajudam a escritores cuja obra, de outro modo, não seria tomada em conta (nem dentro nem fora de seus países). Nesse sentido, são úteis. Por outro lado, creio que estar ou não estar numa lista, não determina o futuro de ninguém, por sorte. Meu caso - como o de muitos outros - é esse. Nunca apareci em nenhuma lista relevante, e contudo meu trabalho teve boa circulação, boa recepção entre críticos e leitores. O que importa é a qualidade do trabalho de um escritor. Todo o resto efêmero.