segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Os bastidores de um jornal

Hugo Viana



Em seu primeiro romance, o jornalista e escritor inglês Tom Rachman, 37 anos, propõe uma ficção sobre o cotidiano de jornalistas, usando uma década de experiência em redações como matéria para criação. O livro, "Os imperfeccionistas" (Record, 384 páginas, R$ 42,90), eleito um dos melhores de 2010 pelo The New York Times, é composto por 11 histórias que falam sobre o mesmo grupo de personagens - trabalhadores de um jornal de língua inglesa com sede em Roma, fundado nos anos 1950 e que sofre com as rápidas transformações nos meios de comunicação. Embora trate de questões do jornalismo atual, Rachman parece mesmo interessado em explorar os sentimentos de seus personagens, rascunhos de perfis conhecidos no jornalismo; o revisor de textos obstinado, o repórter arrogante com carreira internacional, o estagiário idealista sem experiência ou qualidade. Esses clichês são modelados e então conhecemos o que move esses personagens, a fibra ética e a resistência emocional de cada um. Rachman faz com que cada texto tenha autonomia e ao mesmo tempo seja um relato em construção - uma narrativa que será inteiramente compreendida apenas quando relacionada com as anteriores. Nesta entrevista, Rachman fala sobre a transição de jornalista para escritor e como criou o enredo.

O livro é dividido em 11 histórias que envolvem os mesmos personagens. Essa estrutura fraturada parece interessante para fornecer uma "visão geral" do enredo a partir de diferentes pontos de vista. Como chegou a essa forma?
Na época eu estava morando em Paris, sonhando em escrever um romance. Enquanto eu caminhava pela cidade, imaginava histórias e personagens. Às vezes eles vinham totalmente formados. Outras vezes precisavam de muita atenção. Entretanto, não queria escrever uma série de histórias não-relacionadas; eu queria escrever um romance. Então tentei combinar as duas formas num único livro. A maneira que escolhi para fazer isso foi criando um cenário comum para os personagens, o jornal.

Durante a leitura senti que o romance poderia funcionar também como uma coletânea de contos, histórias que parecem possuir autonomia. Você pensou nos aspectos que fundamentam o conto durante a escrita?
Eu esperava fazer cada capítulo satisfatório e completo nele mesmo, enquanto deixava fios a serem recuperados nas histórias sequentes. Como leitor, adoro tanto histórias curtas quanto romances, mas reconheço que cada um tem efeito diferente. Normalmente, o conto é consumido numa única leitura e funciona como uma espiada em outra vida. O romance, devido a sua extensão, requer que você viva com os personagens na imaginação durante dias e semanas. Essas diferenças significam que o conto é útil para esboços e conclusões rápidas, enquanto o romance é para retratos de grupos e ambiguidades. Mas e um livro que combina esses dois aspectos? Eu queria descobrir isso.

Esses personagens parecem produto de anos de observação. Enredos sobre relações humanas e fortes situações emocionais são interesses seus como contador de histórias?
Sim, embora eu sinta que relações humanas e fortes situações emocionais são provavelmente os interesses de todos os romancistas. Se escritores de ficção não fossem fascinados por outras pessoas, então seu trabalho seria duro e tedioso, ou vazio e manipulativo, ou incrivelmente egocêntrico. Mas para mim, a última coisa que quero é escrever sobre eu mesmo - eu me conheço bem o suficiente. Outras pessoas são muito mais intrigantes.

Mesmo que questões do jornalismo contemporâneo sejam importantes para o livro, o tema principal aos poucos progride para a intimidade das pessoas que fazem o jornal. Você parte de clichês, mas gradualmente desenvolve cada personagem. Como pensou essa relação?
Na verdade, eu queria escrever sobre relações humanas e apenas depois o mundo do jornalismo entrou na história. A imprensa internacional é um meio que eu conhecia bem e é cheio de personagens extraordinários e estilos de vida que enriqueceram o que eu já tinha em mente. Também, o jornalismo no tempo presente passou por tantas mudanças incríveis que eu pensei que forneceria um ambiente dinâmico para as lutas pessoais dos personagens.

Você trabalhou como jornalista e viveu as rápidas mudanças no mercado. No livro, você não apenas olha para o presente, mas também para o passado, o que parece trazer nostalgia e a sensação de algo que se perdeu durante o tempo. Em que sentido sua experiência ajudou?
Eu me formei em jornalismo em 1998 e trabalhei como editor e repórter na Associated Press e no International Herald Tribune, deixando o negócio quando eu vendi meu romance no fim de 2008. Essa década conteve mudanças espantosas nos meios de comunicação. Mas mesmo nos melhores tempos, as redações são cheias de tensão, estresse e pessoas notáveis. Meu tempo entre eles me ajudou a descrever com precisão aquela atmosfera, suas atitudes e humor.

Existe algo de desilusão em seu ponto de vista sobre o jornalismo contemporâneo? Pensei nessa possibilidade ao perceber as histórias como um grupo único.
Todos conhecem as alegrias e as conveniências da tecnologia. Mas o que desaparece quando as velhas maneiras morrem? Em relação ao jornalismo, espero que possamos nos agarrar às melhores características do sistema prévio. A imprensa tradicional era imperfeita, é claro, e às vezes se comportava vergonhosamente. Mas no seu melhor tinha ideais de objetividade e transparência, e um desejo de expor corrupção e crueldade. Quando os fundamentos da velha imprensa desmoronaram, se tornou caro cumprir esses ideais, deixando os meios de comunicação mais vulneráveis a manipulação e mais dispostos a publicar lixo a fim de lisonjear, ao invés de publicar material que informa, ilumina e mexe as pessoas. No final, aqueles na imprensa que sobreviverem a esse período serão os melhores e os piores - aqueles que publicam mais bobagens e aqueles que bravamente continuam com trabalhos sérios que respeitam seus leitores.

Já que esta é sua primeira experiência com um romance, gostaria que falasse um pouco sobre o processo de escrita. No seu texto parece não apenas existir uma herança do jornalismo, mas também técnicas de ficção. Como você relaciona esses dois tipos de escrita?
Eu ganhei muito por ter escrito e editado centenas de artigos ao longo dos anos - foi algo como um treinamento na escrita profissional que seria muito difícil de obter de outra maneira. Muito do que aprendi sobre estruturar uma história, usar detalhes e chegar ao leitor sem um mínimo de floreio auto-indulgente continua a ser vital para mim. Dito isso, ficção é muito diferente de jornalismo. Não-ficção prospera no mundo externo, ficção no mundo interno.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Autonomia para escrever novas histórias

Hugo Viana


Raimundo Carrero, 64 anos, programa para este ano uma lista extensa de trabalho. Tem três livros previstos para lançamento, o projeto de criar um centro cultural e a vontade de retornar às oficinas literárias. Entre propostas, ele já comemora algo concreto: em janeiro, voltou a caminhar.

Desde outubro de 2010, quando sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), sua rotina era preenchida por fisioterapia e sessões de fonoaudiologia. "As pessoas acham que a gente fica meio doido com o AVC", diz Carrero. "Eu tinha medo de ficar torto, com cara de besta. Agora passou. É doloroso, mas recompensa saber que você venceu a luta."

Carrero recebeu a reportagem da Folha de Pernambuco em sua casa para falar sobre projetos. Em "Às Vésperas do Sol" (ainda sem previsão de lançamento), o autor enfrenta o desafio de tornar público um cotidiano que dura um ano e três meses.

A primeira frase do livro, enunciada pelo escritor durante a entrevista, situa a perplexidade diante da dor: "É profundamente doloroso que um homem cheio de força e de esperança, de sonhos e de alegrias, vá se deitar ao dormir e no meio da noite acorde inútil sem movimentos e parado por muito tempo".

"É muito cruel escrever sobre isso", diz Carrero. "O que mais dói no AVC é você perder a liberdade, a autonomia. No dia que aconteceu eu ia fazer uma palestra em Arcoverde, e quando tentei me levantar o corpo não obedeceu. Pensei, 'Meu Deus, o que é isso', tentei a segunda vez e o corpo não veio, na terceira forcei muito e caí em cima de minha mulher. Ela perguntou o que estava acontecendo, e quando fui falar saiu enrolado. Ela é medica e disse: você está tendo um AVC", lembra Raimundo.

Além dessa biografia, outro livro que Carrero deve lançar em 2012 é "Tangolomango", em que o autor volta a escrever sobre tia Guilhermina, personagem que já apareceu em livros anteriores. "Ela é uma velhinha doida para ser prostituta, mas tinha um medo arretado de homem", explica Raimundo. "A primeira parte se passa durante o Galo da Madrugada. Ela resolve fazer um strip tease em cima da marquise do Trianon, e todo o bloco vê. É uma velhinha safadinha, eu gosto muito dela. Ela é muito afetuosa, carinhosa", diz.

No livro, Carrero mais uma vez trata das relações entre sexo e religião, desejo e fé. "Outro personagem é Mateus, que matou a mãe e a irmã, estuprou as duas e depois matou, e foi criado por sua tia, Guilhermina. Ela tomava banho nua com ele e cantava tango", adianta o autor. Seus personagens, mesmo envolvidos no limite entre amor e morte, sexo e violência, são tratados com sensibilidade. "São personagens que gostam de viver. Safadeza é outra coisa", ressalta.

Carrero fala sobre o livro ainda em construção segurando o manuscrito do primeiro capítulo, recém enviado para a Record. "Eu estava achando uma merda, mas aí minha editora, Luciana, disse: continue, que coisa bonita, que texto ótimo. Aí eu me animei", brinca Carrero. Seu terceiro lançamento é de certa forma um desdobramento desse receio comum a artistas, uma contribuição para jovens autores: "Assim Nasce um Escritor".

De forma parecida com dois livros anteriores ("Os Segredos da Ficção", de 2005, e "A Preparação do Escritor", de 2009), Carrero defende técnicas para a criação literária. "Músico aprende, bailarino aprende, e então por que escritor também não poderia aprender?", comenta.

"Não são regras, mas técnicas. Por exemplo, o clichê: usar apenas quando essencial. É melhor usar um clichê do que inventar uma frase ruim." Outro exemplo: "Não se deve usar expressões como 'via de regra' ou 'por outro lado'. São frases eróticas, não literárias. Se você está lendo um texto trágico e de repente encontra algo assim, acaba o drama do texto", brinca.

Carrero promete também a criação de um centro cultural, programado para estrear "logo que eu possa administrar". "Comprei uma casa para isso: juntar teatro, cinema e literatura. Fica na Avenida Norte, esquina com a Rua José Carvalheira, na Tamarineira. Vai ter oficinas, auditório e palco, para encenar peças e exibir curtas-metragens", adianta.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Busca por um modernismo "brasileiro"

Hugo Viana

A Semana de Arte Moderna, que comemora hoje 90 anos, permanece como um dos enigmas da história cultural brasileira, um evento cercado por mitos nem sempre verdadeiros e julgamentos algumas vezes injustos - aspectos que dificultam a devida avaliação de seu legado.

Um dos pensamentos críticos em torno da Semana é o que reforça que, ao mesmo tempo em que o modernismo chegava a São Paulo, tendo a Semana como símbolo, em outros lugares do Brasil também eclodiam movimentos semelhantes. "A Semana de 1922 é apenas um dos movimentos modernistas no Brasil, e não 'o modernismo', como quer fazer crer a história da literatura que vem sendo escrita nas últimas décadas", comenta o professor do Departamento de Letras da UFPE Anco Márcio Tenório Vieira.

Um dos motivos para essa avaliação talvez grandiosa sobre a Semana tem base na força política e econômica do local onde o evento ocorreu. "São Paulo já era uma grande metrópole em 1920, uma cidade cosmopolita", lembra Carolina Leão, autora do livro "Crônicas do Cotidiano", sobre Gilberto Freyre, doutora em sociologia e gerente de literatura e editoração da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife. "Nosso modernismo não pode ser comparado ao de São Paulo porque lá eles eram mais visionários. Aqui não teve uma semana, um manifesto muito definido. Existiam blocos, segmentos no cinema, nas artes plásticas, na literatura, mas seria exagero comparar com o modernismo de São Paulo", avalia Carolina.

Uma das figuras essenciais do modernismo regionalista foi Gilberto Freyre. "Em 1926 ele lançou o Movimento Regionalista, em que ele diz que o movimento de São Paulo é pouco brasileiro. Ele fala sobre uma arte com comprometimento com a realidade nordestina, daí escreve sobre a renda, a tapioca, o coco - elementos da cultura pernambucana que são pitorescos, que deveriam ser valorizados. Essas ideias foram incorporadas por artistas como Lula Cardoso Ayres e Vicente do Rego Monteiro. Freyre se aliou a eles, falando que a influência europeia não pode ser determinante. E é aí que surge uma rusga ente São Paulo e Pernambuco, como se lá fosse mais burguesa e voltada ao que é estrangeiro", reforça a pesquisadora.

Anco Márcio localiza um dos legados do modernismo de São Paulo num momento posterior, na forma como a prosa de alguns autores influenciou obras imediatamente sequentes de outros escritores. "Dos modernismos brasileiros, dois foram os mais importantes: o de São Paulo e o que vem do Nordeste, a partir de Pernambuco: a Semana Regionalista de 1926. Não se pode pensar o romance de 1930 sem o Regionalismo freyreano de 1926. Autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado vendiam milhares de romances. O romance de Mário de Andrade influenciou outros escritores, mas não a sensibilidade do grande público. Diverso do romance regionalista, que influenciou tanto os escritores quanto o público leitor", reflete.

A década de 1920 foi um período influenciado por ideias da vanguarda europeia, em que a forma de pensar a cultura e as maneiras de exercer o ofício artístico passavam por transformações. "Só que diverso dos muitos 'ismos' europeus que lhes são contemporâneos, os modernismos brasileiros não pregam apenas as rupturas das formas, mas a construção de um novo olhar sobre o Brasil", explica Anco. "Em outras palavras: enquanto na Europa as artes vão se voltando cada vez mais para a própria linguagem em si - daí ser menos importante o tema abordado, o que se diz, e vai tomando relevância o 'como' se diz - no Brasil o que dizer é tão importante quanto o como dizer, não raras vezes este sobrepondo àquele", ressalta o professor.

Legado do modernismo à contemporaneidade

"É importante observar que essa nova sensibilidade artística só se consolida de fato nos anos 1930, quando o modernismo é encerrado pela revolução de 1930, quando os modernistas vão dominar o aparelho de Estado, principalmente por meio do Ministério da Educação, à frente Gustavo Capanema", argumenta Anco. "Mas não podemos esquecer o papel da imprensa como difusor dessa nova sensibilidade. Pois era na imprensa que esses autores escreviam. E esta nova sensibilidade se dá na própria sintaxe e no uso do vocabulário. Lembremos o pioneiro manual de redação do jornal A Província (o primeiro manual do Brasil e um dos primeiros do mundo), de Pernambuco, que a partir de 1928 teve Gilberto Freyre como editor. Freyre passou a normatizar a linguagem jornalística, tirando-lhe o seu viço retórico. Em vez de escrever 'genitora' agora devia se escrever 'mãe'; em vez de 'topografia' devia se escrever 'paisagem'", pontua. "Ele modernizou a linguagem, deixou mais fluida, próxima do lead, algo que incorporou quando morou nos Estados Unidos", resume Carolina.

Vendo a Semana de 1922 com um distanciamento maior, procurando vestígios dessas ideias na literatura contemporânea, é possível encontrar vínculos que apenas fortalecem uma espécie de progressão natural da história. "A literatura contemporânea dilui experiências anteriores, já que pouco ou nada se renova em termos de linguagem", comenta Anco. "É o caso de Francisco Dantas, que retoma o projeto regionalista pelo viés de Guimarães Rosa; ou de Milton Hatoum, que dialoga claramente com a prosa de Graciliano Ramos, no que diz respeito ao enxugamento da palavra, da frase. Se 1930 tratou da periferia geográfica do Brasil, a literatura pós-moderna brasileira trata da periferia dos grandes centros. É como uma atualização dos problemas: o Brasil arcaico continua subsistindo à modernidade, só que agora ele está no nosso quintal. Pode ser Manaus, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre", explica.

"Semana foi reflexo do que acontecia no mundo"


(Foto: Renato Parada)

Com o passar dos anos a Semana de Arte Moderna de 1922 se tornou um momento em que intelectuais e historiadores voltam a examinar, procurando entender possíveis desdobramentos, buscando propagar reflexões e reavaliar a importância dos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 para a cultura brasileira. O novo lançamento com esse interesse é "1922: A Semana que Não Terminou", (Companhia das Letras, 376 páginas, R$ 49), do escritor e jornalista Marcos Augusto Gonçalves. O livro reflete a formação do autor; o texto tem fluência jornalística ao mesmo tempo em que propõe um resgate histórico, baseado em grande parte num senso de apuração, recorrendo a entrevistas, pesquisa por documentos e registros da época.

Como surgiu a ideia para o livro? Qual seu interesse em escrever sobre a Semana de Arte Moderna?
A ideia surgiu da Companhia das Letras. Estava conversando com Luiz Schwarcz (editor) sobre a perspectiva de fazer um livro. Eu estava buscando um tema de fôlego. Eu pensei em algo sobre Oswald de Andrade, e então, dentro do contexto proposto, Luiz sugeriu a Semana de Arte Moderna. Fiquei na dúvida, já que é um assunto muito pesquisado, mas depois me animei.

O livro trata de eventos históricos, personagens autênticos, com muitos detalhes. Como foi a pesquisa? Quanto tempo demorou a pesquisa e a escrita?
A escrita demorou sete meses, enquanto a pesquisa durou mais ou menos três anos. Existe uma bibliografia extensa, já que é um assunto muito explorado nas universidades. Entrevistei autores, intelectuais que conheceram pessoas da época, como Antônio Cândido, José Miguel Wisnik, Augusto de Campos - ao todo, mais de 20 pessoas. Uma coisa interessante que descobri foi no Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro. Encontrei depoimentos em áudio de participantes, gravados na época, como um de Menotti Del Picchia.

Agora é comemorado os 90 anos da Semana de Arte Moderna. O que você comentaria sobre o legado e a influência dessa importante data para a história cultural brasileira?
Destacaria dois aspectos do legado não da semana em si, mas do modernismo, que é algo mais amplo. O primeiro é a liberdade de pesquisa estética, a possibilidade de explorar novos territórios da arte. O segundo é a criação de uma arte ao mesmo tempo brasileira e internacional, algo formulado em 1928 por Oswald de Andrade no "Manifesto Antropofágico". Esse método de apropriação da linguagem de outros países, a dialética nacional e internacional, é algo muito presente, por exemplo, no Tropicalismo.

Depois de seu envolvimento com o tema, o que diria sobre os mitos criados em torno da semana, as críticas e os elogios?
A semana se tornou marco do modernismo. E acho que como marco histórico, ela sinaliza um momento de mudança de mentalidade. Esse não foi um fato extraordinário, e sim reflexo de mudanças que aconteciam no mundo. É um marco cultural importante, especialmente se considerarmos a evolução dos artistas envolvidos nos anos sequentes.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A biografia de um personagem comum

Hugo Viana



Em narrativas tradicionais é o personagem o ponto sensível de interesse, sendo sua jornada uma espécie de réplica em escala menor de um panorama de emoções autênticas. É o que os irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá fazem em Daytripper (Panini, R$ 62, 256 páginas), um profundo ensaio sobre vida e morte a partir da história de um homem comum.

A obra venceu em 2011 o importante Prêmio Eisner (em homenagem a Will Eisner, considerado um dos maiores artistas da HQ), confirmando o sucesso da carreira internacional dos irmãos, há 15 anos trabalhando com HQs.

A história fala sobre a vida de Brás de Oliva Domingos, filho de um escritor bem sucedido e chamado por sua mãe de "milagrinho", devido ao seu nascimento em meio a complicações. De certa forma ele vive à sombra das conquistas do pai, escrevendo obituários para um jornal, emprego distante de seus sonhos de autoria literária.

Sua biografia é a de um homem comum; tem a emoção forte da primeira namorada e a sensação definitiva do grande amor, a lembrança tenra do primeiro beijo e a alegria sem medidas de seu primeiro filho, Miguel.

Para narrar essa história fragmentada, que passa por várias décadas, Fábio e Gabriel dividem o livro em capítulos que mostram Brás em diferentes momentos, aos 11, 38, 33, 76 anos, sem uma ordem aparente, apenas seguindo emoções, criando dessa forma um personagem a partir da união de diferentes camadas de afeto.

O enredo tem uma curiosa estrutura em que quanto menor a quantidade de informação maior parece ser o efeito de surpresa e o envolvimento com a história. Basta dizer que os autores desenvolveram uma emocionante função narrativa para a morte, trabalhando a ideia de como cada grande mudança na vida é de certa forma um pequeno fim; rituais de passagem que acumulados implicam no processo subjetivo de amadurecimento e formação de caráter.

Os desenhos dos irmãos são realistas, com personagens e paisagens que parecem produto de observação concreta do mundo. Brás viaja para Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, e a impressão é a de captura da identidade dessas cidades e dos habitantes através de traços e cores precisas - além de uma inteligente maneira de contextualizar a passagem de décadas a partir de roupas e falas.

Aos poucos, no entanto, os desenhos mudam; os aspectos realistas são transformados por um fluxo de imaginação, passando a representar a manifestação de sonhos incompletos, o movimento atravessador da fantasia no cotidiano, a compreensão adequada do efeito do tempo nas coisas e pessoas, algo que está em sintonia com o encaminhamento do personagem.

A HQ trata exclusivamente dos dias que mudam a história de uma pessoa, grandes feitos e derrotas dolorosas, tudo envolvido num profundo interesse de pensar sobre elementos que compõem sentimentos contraditórios do homem.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

6. Em busca de João

Hugo Viana



Um dos aspectos misteriosos e mais interessantes envolvendo a obra de arte é o efeito que ela causa no espectador, algo que não pode ser realmente medido ou antecipado. A história em torno do livro "Ho-ba-la-lá" (Companhia das Letras, 184 páginas, R$ 34), de Marc Fischer, é um pouco sobre a obsessão que a arte pode causar. Fischer é um jornalista alemão e há 15 anos, quando estava no Japão, "na tentativa de esquecer alguém", um colega japonês colocou no toca discos o vinil "Chega de Saudade" (1959), de João Gilberto, especificamente a música "Ho-ba-la-lá". É um dos belos momentos do livro quando Fischer se lembra da primeira vez em que ouviu a música e dois minutos e 17 segundos depois percebeu como a canção "seguia preenchendo o espaço", "se juntado aos objetos, ao ar, a nós". O livro é sobre sua procura por João Gilberto; Fischer vai até o Rio de Janeiro buscando algo que lhe parece essencial, ajudado por Rachel ("O cão rastreador mais rápido do mundo e a intérprete mais habilitada do Rio de Janeiro, uma judia líbano-brasileira com um diabo tatuado na panturrilha, que pesa duas vezes mais do que eu e prefere mulheres a homens"). O livro documenta a procura de Fischer, mais ou menos como um diário pessoal. Ele entrevista pessoas próximas ao cantor, um dos criadores da Bossa Nova. Uma nota triste é o que o autor morreu em abril de 2011, pouco antes do lançamento na Alemanha.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

5. Lutas dentro e fora dos ringues

Hugo Viana



Entre os grandes momentos da história do esporte sem dúvida está a luta entre George Foreman e Muhammad Ali, no Zaire, em 1974. Não apenas pelos lutadores, dois homens importantes do boxe, mas também pelas circunstâncias políticas dos anos 1970, a luta contra o racismo, a atuação dos Panteras Negras, a Guerra do Vietnã (Ali teve o título de campeão mundial dos pesos pesados revogado por se recusar a atender à convocação do exército norte-americano). Norman Mailer escreveu sobre esse embate no livro "A Luta" (Companhia das Letras, 232 páginas, R$ 24), relançado agora em edição de bolso. Mailer, reconhecido como um dos nomes essenciais do jornalismo literário, fez uma grande reportagem, uma detalhada análise não apenas sobre o dia da luta, a tensão nos bastidores, o tumulto na cidade, mas também, talvez especialmente, sobre a expectativa que antecedeu o evento, os valores ideológicos que estavam pressionados pela opinião pública, a dualidade representada pelos dois lutadores (os interesses do homem branco estabelecido, carregado por Foreman, que ressaltava ideais patriotas, e a insatisfação negra, figurada em Ali). Não há qualquer imparcialidade no texto de Mailer; está bastante claro, desde o primeiro parágrafo, seu fascínio pela personalidade forte de Ali, seu charme popular e também sua rara habilidade para o boxe.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Excessos da geração dos anos 1980

Hugo Viana



Alguns livros conseguem através da ficção falar precisamente sobre uma época, comentar de um jeito informal o estado de espírito de uma geração. Quando lidos décadas depois parecem importantes documentos históricos, provas não oficiais que representam um determinado período. É mais ou menos o caso de "Abaixo de Zero" (176 páginas, R$ 15), de Bret Easton Ellis, escrito em 1985 e relançado neste mês pela editora L&PM em versão de bolso.

Bret escreveu o livro aos 21 anos, o primeiro em sua carreira, o que sugere uma certa exposição biográfica, a possível manifestação de ideias ou situações pessoais. A história fala sobre Clay, 18 anos, filho de uma família muito rica de Los Angeles. Ele volta de viagem, de férias da faculdade, e reencontra amigos e familiares. Clay parece gradualmente mais distante, afasta com mãos cada vez mais trêmulas as pessoas de perto, é descrito por todos como "muito pálido", em meio a colegas artificialmente bronzeados.

A rotina dessas pessoas muito ricas e com todo o tempo livre inclui noites longas, festas em que bebidas, cocaína e maconha não terminam, nenhuma regra sexual. Eles usam óculos escuros à noite, talvez pela sugestão decadente de glamour, e passam o tempo curando a ressaca com outros tipos de drogas. Surpreende como esse claro excesso narrativo não parece tratado como descuido moral ou vocação para a ruína; é um tipo natural de exagero, escrito sem o peso vingativo do julgamento, quase como um retrato instantâneo de uma época.

Parte da história é dedicada à descrição de paisagens e pessoas, ruas largas e vazias às 3h da manhã e breves perfis de personagens que aparecem apenas em uma ou duas páginas. Com a ausência de uma estrutura tradicional, o livro é composto por pequenos trechos narrados no fluxo de pensamentos de Clay, tópicos que parecem comentar um certo incômodo que atinge alguém que tem meios financeiros e educação superior, mas sente sozinho a pergunta "E agora?".

Ellis sugere esse vazio através de metáforas que voltam ao longo do texto, como a frase "As pessoas têm medo de mudar de pista", repetida por Clay logo na primeira frase do livro, ou um outdoor que diz "Desapareça aqui" - dois argumentos que determinam motivações na iminência de acontecer.

O livro lembra "A Primeira Noite de um Homem" (1967), que por coincidência também é o primeiro de Charles Webb, e trata do mesmo instante: a vida depois da faculdade, a pressão da escolha e o assombro das mudanças. Também lembra "Tanto Faz" (1981), de Reinaldo Moraes, não tanto pelos personagens, que na história de Moraes sofrem para viver com pouco dinheiro, mas pela sensação de escrever indiretamente sobre pessoas de uma geração com um tipo peculiar de humor.

A história de "Abaixo de Zero" foi retomada em 2011, no livro "Suítes Imperiais" (Rocco), voltando a esses mesmos personagens, mas agora adultos.