segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Histórias de política e detetives

Hugo Viana



Os primeiros livros de escritores que se tornam grandes durante a progressão da história da literatura em geral ganham a importância de objetos de estudo, fontes de pesquisa, textos que quando acessados anos depois revelam uma espécie de arqueologia pessoal da evolução da escrita.

Os indícios iniciais do futuro estilo que tornaria o chileno Roberto Bolaño reconhecido está disponível no livro "Monsieur Pain" (Companhia das Letras, 144 páginas, R$ 34), "escrito em 1981 ou 1982" (imprecisão do próprio Bolaño, na introdução do livro), lançado apenas agora no Brasil.

Bolaño é normalmente associado a um estado de suspense, um clima turvo de investigação política que permanece sem respostas. Em seus livros mais conhecidos no Brasil, "Estrela Distante" e "2666", o autor recorre na superfície ao gênero policial, a narrativas de investigação criminal como forma de se aproximar de seus temas pessoais, o interesse pelo estudo de ditaduras na América Latina, os sistemas de dominação, a desilusão com a esquerda e a falência dos homens de pensamentos liberais, além da própria literatura, o papel da criação artística durante a tensão social.

A história de "Monsieur Pain" se passa em 1938, na França, e fala sobre Pierre Pain, praticante da medicina alternativa, convocado apressadamente para solucionar uma insistente crise de soluço que atacou o poeta peruano Vallejo. Depois de conversar com a mulher da vítima dessa praga inesperada e em geral não levada muito a sério, Pain passa a ser seguido silenciosamente por dois homens sinistros, usando sobretudos escuros e chapéus de aba larga, talvez a imagem síntese do gênero policial.

A certa altura eles o abordam e lhe oferecem suborno, dinheiro destinado a convencer Pain a não cuidar da saúde de Vallejo. Pain aceita e depois seus dias se dividem entre a vertigem de encontrar soluções para algo que aparentemente não possui mistérios de nenhuma natureza e a culpa que o assombra por um passado obscuro nunca inteiramente revelado.

A escrita de Bolaño remete de alguma forma a uma noite brumosa, a um homem encostado numa parede, outro escondido em fumaças de cigarro, sendo observado, movimentos que são simples e adquirem sinuosidade inesperada pela descrição irônica. Durante sua crise moral, Pain passa a vagar geralmente bêbado por ruas apertadas, bares vagabundos, quartos mofados, encontrando personagens ambíguos, que em silêncio quase sempre sugerem a possível ilusão de raiva ou angústia.

Essa história que muitas vezes se confunde com um pesadelo ou uma descida informal ao inferno da solidão parece naturalmente narrada no tom policial, no ritmo da investigação de um crime que nunca sabemos a real natureza. A descrição de um fato normal como alguém descendo as escadas ou entrando num táxi é modulada para o gênero suspense de detetive, como se um segredo terrível estivesse à espreita e pudesse atacar. A escrita de Bolaño é então a de um predador, carregada de um certo lirismo pertencente ao estado de mistério e confusão emocional, e embora em alguns momentos pareça irregular ou longa demais para um fato qualquer, acessos loucos de estilo, sugere uma personalidade forte de escritor virtuoso.

Bolaño conseguiu em alguns livros ser especialmente hábil na capacidade de sugerir inquietações políticas em tramas vestidas de literatura de gênero policial, e em "Mounsieur Pain" essa ideia parece especialmente ativa.

O crescimento desmedido do fascismo, a força devastadora do nazismo, o resultado desolador da Guerra Civil da Espanha (1936-1939) e o domínio do regime franquista sequente, eis os temas que surgem sem qualquer aviso ou exaltação, apenas no subterrâneo da história, com personagens que possuem um direcionamento politicamente conservador ou abertamente adeptos de ditaduras, sugerindo um estado permanente de mal-estar. O livro termina sem nenhuma resposta ou interesse em revelar seu real valor, e isso parece a conclusão ideal para um escritor que sempre preza pelo horror da dúvida.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A revolta dos macacos

Hugo Viana



Não é incomum a indústria do cinema norte-americano remexer o passado de sua história em busca de inspiração para novos projetos, procurando alguma fórmula que deu certo anos antes, dessa vez com o interesse de adaptar a estrutura para os tempos modernos. É o caso de filmes recentes que ressuscitam franquias do passado colocando no cartaz indicativos como "descubra como tudo começou" ou "agora em 3D", ou talvez as duas coisas.

Entra em cartaz mais um desses projetos, "Planeta dos Macacos: A Origem", série de filmes que começou muito bem em 1968, em que astronautas durante uma viagem espacial caíam em planeta hostil, povoado por macacos inteligentes, que viviam como humanos em tempos antigos. Aquele ambiente rude era na verdade a Terra no futuro, e o grande comentário crítico proposto era que nossa pouca inteligência para viver harmoniosamente em comunidade gerou guerras que mudaram o curso natural da evolução.

Esta nova etapa da franquia mostra então o marco zero dessa mudança, o ano 1 do calendário da rebelião dos macacos. A trama envolve uma pesquisa científica de Will (James Franco) sobre uma suposta droga que não apenas poderia curar doenças ou lesões no cérebro, mas também melhorar capacidades cognitivas, em termos gerais tornando as cobaias super inteligentes. O teste com os macacos dá certo, mas as relações que surgem entre humanos e primatas geram conflitos.

O filme, terceiro dirigido por Rupert Wyatt, ilustre diretor de filmes pouco conhecidos, parece exemplar comum de cinema com obrigações comerciais, com histórias paralelas um tanto deslocadas do tema central, que se referem a um tipo de evidência emocional em geral presente em filmes de alto orçamento. Até que então surge uma sequência de força incrível, que resgata uma tradição de cinema de insurreição política e insatisfação social, cena que lembra o abate dos operários morrendo como gado em matadouros pela vontade de quem paga salários, em "A Greve", de Sergei Einsenstein.

O filme mostra diferentes tipos de animais irracionais, e nem todos são macacos. Há exemplares magníficos de patetas humanos, pessoas que se imaginam como figuras de poder por causa de músculos ou dinheiro, e o filme os pune com certo grau de prazer, arrancando dedos ou eletrocutando idiotas.

É um filme que assim como "Star Trek", de J.J. Abrams, lançado em 2009, revisa de maneira gigante uma franquia que influenciou outros tempos, atualizando através da tecnologia histórias que prezavam pelo entretenimento, mas com qualidade técnica rudimentar. A tecnologia nesta nova edição parece essencial, criando digitalmente macacos que, especialmente através dos olhos, revelam algo como uma humanidade honesta, a sensação forte de que o conflito é entre iguais, mas hierarquicamente divididos por motivos de outra natureza.

Esse parece ser o grande tema do projeto "Planeta dos Macacos", desde sua concepção inicial, o comentário político sobre as pessoas à margem, a sugestão da revolta armada como resposta inevitável ao desconforto imposto àqueles enquadrados como diferentes do padrão, pertencentes a outras raças ou etnias, consideradas como "inferior" por aqueles na parte de cima da escala social. Parece ainda mais irônico se tratar de macacos, a origem do homem contemporâneo.

A música e as mulheres de Gainsbourg

Hugo Viana



O cinema tem uma tradição mais ou menos rentável de filmar biografias, contar trajetórias de ícones históricos, pessoas que em algum momento mobilizaram público amplo. São filmes em geral comportados, feitos a partir de um molde recorrente narração e envolvimento dramático, seguindo certas regras seguras. É mais ou menos esse o caso de "Gainsbourg: O Homem que Amava as Mulheres", biografia do músico francês Serge Gainsbourg, artista popular entre os anos 1960 e 80, em cartaz no Cinema da Fundação.

Gainsbourg pode ser rudemente descrito como homem comum de estatura média, orelhas de abano e nariz no formato adunco, talvez do tipo feio, mas com um talento inesgotável para a criatividade musical e inventividade artística. Numa certa manhã qualquer de sua vida em Paris, ele tomou café, comeu croisant, em seu apartamento, olhando para Brigitte Bardot, que acordava dengosa com pouca roupa em sua cama. Imagem exibida pelo filme com imensa noção de bom humor e poder sugestivo.

Antes desse dia, nos anos 1950, Gainsbourg era apenas um pianista noturno de bares esfumaçados, trabalhador algo anônimo tocando tediosamente grandes músicas que serviam para embalar refeições de clientes pouco interessados. Esses momentos do filme são envolventes, Gainsbourg possuia um tipo de humildade que contrasta com a ordem rockstar, e o filme acompanha essa sensação abaixo do radar do glamour, numa narrativa simples de etiqueta social tipicamente francesa. Algumas boas piadas inesperadas.

Na primeira metade do filme o que importa parece ser criar uma perspectiva diferente, ou ao menos pouco convencional, para o gênero biografia. Não é a história de grandes instantes que definem uma personalidade e "mostram o que realmente aconteceu", mas pequenas cenas banais, um tanto transformadas por uma noção de fantasia, controlada pelo gênio instável de Gainsbourg. O filme é o primeiro dirigido por Joann Sfar, artista que veio do trabalho com histórias em quadrinho, e talvez isso explique um tique em representar de formas gráficas os pensamentos de Gainsbourg, que também desenhava.

Depois o filme parece banalizar sua proposta e se torna uma biografia tradicional, representando instantes da vida pessoal de Gainsbourg que poderiam ser encontrados em manchetes de revista de fofoca de época. São cenas que sugerem um certo excesso emocional de fã exaltado, como a imagem de um Gainsbourg de óculos escuros, tropeçando bêbado e caindo sob efeito de drogas, berrando qualquer coisa negativa contra gente amiga. É um tipo de final que não é exatamente surpresa, mas que parecia que seria criativamente transgredido durante o filme.

O amor na vida adulta

Hugo Viana



A comédia romântica parece ser o gênero mais popular do cinema norte-americano, são filmes parecidos uns com os outros e em geral com nada mais em cartaz no cinema. Então surge algo que tenta brincar um pouco com esses postulados fixos, buscando soluções pouco convencionais para os problemas do amor. Parece ser o caso desse filme agradavelmente mediano, "Amor a Toda Prova", obra basicamente de atores, com Steve Carell e Julianne Moore interpretando o par romântico.

As primeiras imagens do filme mostram pés de casais embaixo da mesa de um restaurante: os homens de sapatos sociais, as mulheres de salto alto, todos elegantemente juntos. Em seguida vemos um casal peculiar, ela se chama Emily (Julianne Moore), também de salto, ele é Cal (Steve Carell), de tênis surrado, pernas afastadas, a câmera sobe, e vemos claramente que se trata de um homem pouco afeito aos benefícios da elegância. Nenhum deles sabe o que quer: ele tem dúvida sobre a sobremesa que vai pedir, ela não sabe se quer continuar casada, e depois de 20 anos termina tudo abruptamente.

O filme é sobre o ressurgimento do amor, quando casais cansados da intimidade cotidiana buscam o sentimento inicial que formou tudo. O filme segue como uma história de amor romântico, e o que diferencia ao menos um pouco este exemplar de outros da comédia romântica parece ser a sugestão que nem tudo pode dar certo, uma variável que representa coisas imprevisíveis.

Depois desse rompimento surpreendente, Cal inicia um processo comicamente desastrado de luto, comentando bêbado com estranhos seus sofrimentos íntimos. Sua rotina muda quando conhece Jacob (Ryan Gosling), predador eficiente de mulheres bonitas, uma delas levemente bêbada o descreve fisicamente como "feito pelo Photoshop". Jacob, homem misterioso de muitas técnicas de conquista, ensina Cal como ficar com qualquer mulher, explicação que rende talvez as melhores piadas do filme.

A história acompanha vários personagens, todos enfrentando problemas de coração apaixonado. Temos não apenas o casal central, mas também seu filho de 13 anos, apaixonado por uma babá de 17, que ama secretamente Cal, amigo de Jacob, que conhece e se apaixona para sua própria surpresa por uma mulher que se revela fundamental na vida de Cal. Tudo revelado numa cena orquestrada para a confusão, para o exagero de reações comicamente raivosas.

É um filme de situações adultas, tratando desilusões com bom humor. A melhor cena do filme parece ser um mix desses temas, em que nada dá certo e noites bêbadas têm consequências claras. Tudo termina no que é habitual a comédias românticas, com a sensação amarga que poderia ser diferente.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A volta do (mesmo) "Rei Leão"

Hugo Viana



Talvez tão interessante quanto descobrir filmes inéditos no cinema seja a oportunidade de ver novamente obras do passado, revisar sensações e lembranças que certos trabalhos causaram anos atrás. "Rei Leão" (The Lion King), lançado originalmente há 17 anos, em 1994, volta amanhã aos cinemas do Recife, motivado aparentemente apenas pelo avanço tecnológico do sistema de projeção, sendo exibido exatamente o mesmo filme, mas agora em 3D.

A animação narra a história de um jovem leão, Simba, filho do rei, Mufasa, e seu amadurecimento até chegar ao trono durante a vida adulta. Scar, irmão do rei, leão capeta e fisicamente débil, levemente entediado com a rotina de um reinado pacífico que não o inclui como membro decisivo, não compartilha a bondade nem tampouco a exuberância física de Mufasa, e então planeja roubar o lugar majestoso do irmão, algo de tragédia shakespeariana nesta família rixosa.

A história se desenvolve como uma jornada de Simba para assumir sua identidade real, aceitar seu papel de herói em tempos de guerra e liderar seu povo de volta à paz. No meio do caminho tudo fica um pouco mais difícil, e Simba precisa de ajuda, socorro que vem de onde menos se espera, algo que reforça a importância dos amigos nem sempre perfeitos, mensagem que de alguma forma repercute os anos 1990 e as novas gerações de adolescentes.

Depois de tantos anos o debate em torno de "Rei Leão" parece ser sobre sua permanência, essa capacidade incrível de continuar ativo na memória. Algo que pode ser verificado não apenas pela trilha sonora, adaptada para outros filmes e programas de TV ("Hakuna Matata"), e pelos personagens coadjuvantes, especialmente Timão e Pumba, agradavelmente divertidos, mas essencialmente pela marcação cultural de uma época, se mantendo como um filme que relaciona problemas humanos numa história algo tradicional de aventura.

O filme repassa mensagens sobre a transição entre infância e vida adulta, usando a trajetória de Simba como comentário geral sobre pessoas, e com isso despertando um interesse talvez universal de comunhão de valores.

Dois momentos parecem resumir bem esse espírito. No começo do filme, Simba enfrenta três hienas, e ele tenta afirmar sua majestade a partir do rugido, mas o pequeno miado que ele é capaz de fazer na infância ainda não assusta ninguém. Depois dessa pequena humilhação, cuja proporção parece naturalmente aumentada pela ingenuidade infantil, ele é salvo por seu pai, leão virtuoso e apto a resolver problemas agressivamente. Simba acompanha os passos do pai, vendo as marcas da pata dele no chão, e em seguida compara essas pegadas com sua própria pata, bastante menor, percebendo mais claramente sua pequenez.

O filme sobrevive desses pequenos instantes de elevada taxa emocional, momentos que retratam as desilusões daqueles que são jovens demais para assumir seus sonhos enormes, algo que se torna concreto com o decorrer do filme.

"Rei Leão" sugere ainda uma certa maneira turista de representar a África, de qualquer forma catálogo de imagens que pertence a outra identidade cultural, pouco filmada ou vista no cinema comercial. Curiosamente "Rei Leão" volta a entrar no circuito num período em que as animações passam aos poucos a explorar novas geografias e personagens de outras etnias, como uma princesa negra (em "A Princesa e o Sapo") e um garoto asiático como personagem central na trama (em "Up"), o que torna interessante descobrir sua recepção para outra geração de crianças.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

As lembranças de Joca Reiners Terron

Hugo Viana



O Festival Recifense de Literatura: A Letra e a Voz, que nesta nona edição tem como tema a memória, programou um debate sobre o assunto "Amnésia e Construção da Identidade", com o escritor Joca Reiners Terron. Em alguns livros de Terron o tema "memória" surge como um tipo de refúgio emocional, uma permanência defendida pela imaginação. A obra que fala mais abertamente sobre as reminiscências do passado, autobiográficas ou ficcionais, é "Curva de Rio Sujo" (Planeta, 2003), livro composto inteiramente por lembranças, pequenos textos que reproduzem sensações da infância, juventude e vida adulta. Sua publicação mais recente é "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" (Companhia das Letras, 2010), em que memória também está presente, na forma de acontecimentos que moldam a identidade de cada personagem. Nesta entrevista por e-mail, Terron falou sobre o encontro entre literatura e memória.

O tema do festival é literatura e memória. Gostaria que você comentasse a importância da memória em seu processo de escrita, se é algo que você preza como tema.
Thomas Hobbes afirmava que a memória e a imaginação são a mesma coisa, e têm nomes distintos apenas circunstancialmente. Imagine uma reunião de amigos de infância que tenham vivido um mesmo episódio: cada um terá uma lembrança diferente, "editando" aquilo que mais lhe chamou atenção. Onde a memória não alcança mais se inicia a ficção, e meu trabalho não prescinde disso.

Já que o tema é memória, gostaria que você falasse sobre suas lembranças literárias, em diferentes fases da vida: primeiros livros, o momento em que você percebeu que a literatura é um pouco mais ampla do que apenas entretenimento.
Creio que foi ao ler "Histórias Extraordinárias", de Edgar Allan Poe, aos dez anos, e também "A Ilha do Tesouro", de Stevenson, e "As Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain. Ou então o ciclo todo de "O Tempo e o Vento", de Erico Verissimo. Desde minhas primeiras leituras eu conseguia abstrair e visualizar os cenários das histórias ou então me refletir nos personagens de que mais gostava, então acho que isso me indicava que a leitura não era somente distração, e sim uma espécie de alimento mágico para a imaginação.

Sobre "Curva de Rio Sujo": é um livro autobiográfico? São memórias misturadas à ficção? É uma fronteira que lhe interessa?
É um falso livro autobiográfico. São recordações inventadas de um certo clima de um lugar que só existe na lembrança. Qualquer fronteira me interessa.

Em "Do Fundo do Poço se Vê a Lua", a memória também aparece, mas com um sentido mais narrativo, talvez menos experimental: conhecemos aos poucos os personagens, o passado deles e os fatos que os tornaram como são. Essa diferença no uso da "memória" é algo que lhe interessa?
Desde o texto de abertura de "Curva de Rio Sujo" se delineia uma preocupação com a amnésia, a imaginação e a lembrança. "Eu escrevo para esquecer", começa assim. Em "Do Fundo do Poço" se estabelece uma linha mais clara sobre como só é possível a uma pessoa se reinventar a partir do esquecimento. Qualquer procedimento criativo me interessa, mas confesso não refletir muito sobre eles. A reflexão excessiva sobre o ato criativo enquanto se cria pode matar o processo.

Ainda sobre memória, mas de outra natureza. Num post do seu blog no site da Companhia das Letras, na época do lançamento do selo Má Companhia, você fez um "amaldicionário" da literatura brasileira, comentando autores, gêneros e temas que, por motivos variados e nem sempre justos, foram catalogados como "malditos". Gostaria que você falasse sobre esse aspecto da memória: o resgate de assuntos ou autores importantes na história da literatura nacional.
Nós temos um sentido de pouca importância de nós mesmos que beira o melancólico. Existem criadores literários geniais que são esquecidos ainda em vida, e isso é muito comum de acontecer. A série à qual você se refere é apenas uma contribuição para que alguns autores fundamentais sejam lembrados. Eu gostaria muito de estendê-la e publicá-la em livro.

Lendo seus livros depois de saber seu apreço por autores "malditos", comecei a pensar nas influências no seu estilo de escrita. Gostaria que você comentasse suas memórias literárias, autores que surgem enquanto você escreve.
Não surgem. Quer dizer, surgem de um modo mais óbvio que isso aí que você propõe. Quando estou escrevendo qualquer coisa eu sempre uso a leitura de outros autores como um gatilho ou pavio para a escrita. Não se trata de influência ou cópia, mas de ler algo que te inspire a pensar.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A memória inventada de Julián Fuks

Hugo Viana



Durante a nona edição do festival A Letra e a Voz, que começa neste domingo, participam autores que escrevem naturalmente ou forçosamente sobre o tema do evento, a memória, real ou inventada. Um deles é Julián Fuks, autor do livro "Histórias de Literatura e Cegueira", lançado pela Record, em 2007. O livro é um ensaio ficcional que revisa os códigos do gênero biografia, falando sobre Jorge Luis Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce de uma forma pouco convencional. São textos que não seguem as regras naturais do que normalmente esperamos encontrar em biografias: não são relatos autenticados sobre esses escritores, descrevendo instantes decisivos ou grandes curiosidades, mas pontuações baseadas na observação pessoal, argumentos que nem sempre podem ser comprovados por documentos oficiais. A biografia parece então o caminho escolhido por Fuks para investigar sua própria memória, arroubos de imaginação que partem da sua estante pessoal. Em entrevista por e-mail, o autor falou sobre sua relação com a escrita e seu fascínio pela literatura.

O tema do festival é a literatura e a memória. Gostaria que você comentasse a importância da memória em seu processo de escrita, se é algo que você preza desde o começo ou surge naturalmente enquanto você produz.
Sou um sujeito pouco imaginoso. Se não fosse pela infinitude da memória, própria ou alheia, minha escrita se resumiria a umas poucas frases insossas. Compartilho da máxima de James Joyce de que a imaginação é sempre uma construção enigmática calcada na memória. É claro que da mesma máxima se depreende seu inverso: toda memória é inventada. Meus livros habitam no âmago desse paradoxo. Em "Histórias de Literatura e Cegueira" preferi me valer da memória de outros autores, a partir da materialidade de suas obras tentei retraçar seus passos incertos. No livro que lanço este ano, "Procura do Romance", tomo como ponto de partida minha própria história, apenas para constatar como são inalcançáveis, como resultam sempre distorcidas e instáveis.

Seu livro "Histórias de Literatura e Cegueira" aborda essencialmente três autores, Borges, João Cabral e Joyce. Por que esse recorte? O que eles significam para você, e onde você pretendia chegar com esse projeto?
Há sempre uma arbitrariedade na definição de uma obra, fruto de escolhas intuitivas, que só mais tarde encontramos uma resposta. Para responder a essa pergunta só posso remeter a minha história de leitura desses autores. Borges foi o primeiro que conheci, e logo sua cegueira exerceu um estranho fascínio sobre mim. Lendo as obras dele, apreciando aquela sintaxe elaborada e a complexidade dos pensamentos, sempre me perguntava como ele conseguia, sem acessar o texto com seus próprios olhos, engendrar aqueles ensaios tão eruditos. Mas só me ocorreu que se tratava de um tema para livro quando me deparei com uma estranha foto de João Cabral, abatido e de ombros caídos, sentado numa cadeira avulsa no meio da sala, com os olhos cegos e melancólicos fitando o vazio. O contraste da imagem sobranceira que eu tinha do Borges cego com a desse João Cabral deprimido que antecipava a própria morte foi a tensão que deu origem ao livro. Mas eu não queria que se tornasse uma comparação injusta entre um Borges vitorioso, bem-sucedido, e um João Cabral fracassado. Por isso, fui atrás de um terceiro escritor cego, dispensei Homero, depois John Milton, Camilo Castelo Branco, John Fante, até chegar a Joyce, que me pareceu perfeito.

E o que você poderia comentar sobre a opção de ficcionalizar instantes nas vidas desses autores?
Meu objetivo sempre foi fazer um retrato de cada um dos autores, um retrato que não se limitasse ao que houvesse de efêmero em suas biografias, que não deixasse as obras em segundo plano, que se valesse da cegueira como ponto de imersão nesses universos. Para esses retratos, a fidelidade ao que estava documentado não interessava. Quando falhava o que se costuma chamar de real, convinha recorrer ao provável. Se faltava o provável, valia-me o possível. Quando, por fim, não era possível achar o possível, tinha que recorrer ao verossímil, e assim, distraidamente, acabei me imiscuindo ao campo da ficção.

Na primeira frase do livro, você escreve: "Histórias devem ser contadas". Gostaria que você falasse um pouco sobre a relação entre obra e leitor, o contato entre um texto e a pessoa que o resignifica.
Devo dizer que me arrependi um pouco dessa frase, ou ao menos que ela já não sustenta a verdade que eu supunha nela, que ela trai o escritor que sou hoje. Já não acredito tanto no poder redentor das histórias, em sua onipotência. Depois que a escrevi, nunca mais as histórias me saíram fáceis, foram sempre uma busca instável. Mas você me pergunta sobre uma relação entre obra e leitor, e decerto essa relação está marcada pela mesma ambiguidade. Creio que já não é tempo de buscar a obra que encante, que embale o leitor em uma narrativa agradável; muito mais interessante é a obra que o confronta, que lhe provoca um estranhamento, que o desloca de sua posição confortável.

Seu "prólogo necessário" defende a ideia que a literatura deve ser lida, no entanto seu ensaio ficcional fala de três escritores que, embora não tenhamos como avaliar que são "muito lidos", podemos concordar que são certamente nomes incontornáveis na história da literatura, nacional ou não. Você vê algum contraste nessa ideia? Era um interesse do início estabelecer essa relação (discutir a leitura a partir de autores já bastante lidos)?
Eu partia da percepção de que, por mais lidos que fossem esses escritores, suas histórias acabavam fatalmente se perdendo, esvaecendo em páginas esquecidas, se extraviando em livros intocados. Essa proposição me parece cada vez mais válida neste nosso mundo que pouco sabe situar a literatura, que não lhe vê função e tampouco compreende sua disfunção, que a relega a um silêncio apático. Claro que meu livro será igualmente silenciado, permanecerá intocado, se extraviará muito mais rápido do que aqueles que quis salvar, mas a ideia era dar àquelas histórias uma nova existência, alguma sobrevida que os demovesse, ainda que por um átimo, do esquecimento.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Os monstros de J.J. Abrams e Spielberg

Hugo Viana



Talvez nenhuma cinematografia realmente se compare com a norte-americana na capacidade de criar fantasias ou explosões de maquinário pesado. Hollywood estabeleceu desde o começo de sua história a tradição de cinema espetáculo, e certamente "Super 8" mantém meio intacto esse prestígio.

O filme é dirigido por J.J. Abrams e produzido por Steven Spielberg, dois homens adultos acima dos 40 anos que em filmes anteriores já demonstraram interesse autêntico pela cultura jovem nerd e por coisas que fazem CABUM!, cinema emocional de puro entretenimento.

"Super 8" se passa em 1979 e conta a história de um grupo de garotos que, enquanto gravam uma cena para um filme B amador sobre zumbis, durante um ato de transgressão, numa filmagem à meia-noite, numa ferrovia, um trem se choca incrivelmente contra uma picape, numa sequência de explosão que aparentemente apenas o cinema americano de indústria é capaz de filmar tão bem. A câmera dos garotos cai no chão com o impacto e filma algo fora do comum, e descobrir aos poucos essa parte da trama no cinema parece um dos grandes momentos do filme.

Algo que surpreende em "Super 8" é a habilidade para criar atmosferas, diferenças de tons e estados. As primeiras cenas remetem imediatamente a algo de cultura pop jovem, alguns pequenos dramas colegiais e refúgios sentimentais de nerds, talvez lembranças de Abrams, que cresceu durante os anos 1970.

A partir do acidente tudo se torna um pouco mais curioso e o filme cresce, passa a representar um gênero não muito respeitado pelo cinema contemporâneo, o filme de monstro. É ainda um retrato de época, com os efeitos sociais da guerra fria, a sensação de apocalipse pós anos 1950, o temor sobre a Área 51 e a investigação militar sobre possível vida alienígena. Tudo isso no mesmo filme, e parece funcionar muito bem, mantendo um espírito anos 1970 bem-humorado, sendo como homenagem informal ao cinema do início da carreira de Spielberg.

Este é o terceiro longa-metragem dirigido por J.J. Abrams, mais conhecido como produtor de obras baseadas na publicidade do mistério, como o seriado "Lost" e o filme "Cloverfield" (2008). Abrams consegue atrair a atenção das pessoas para seus projetos criando um tipo fascinante de suspense em torno dos enredos, liberando nos momentos certos (no caso de "Super 8", durante a edição deste ano de Cannes) algumas poucas informações, dados que quando vistos no cinema costumam ser maiores do que o esperado, um pouco como prazeres gordurosos de bom cinema.

Abrams parece ser a evolução um pouco mais artística e criativa da versão bastante caricatural do produtor carrancudo, profissional que supostamente tem cifrões ao invés de olhos e cheira a enxofre. Sua curta filmografia é exemplo perfeito de um tipo de cinema comercial habilidoso enquanto filme de gênero e orgulho cinéfilo, algo bastante agradável de ver e difícil de encontrar no mercado.

"Super 8" parece um tipo de cinema feito por adultos com dinheiro e meios tecnológicos adequados para produzir em alta qualidade as ideias graciosamente ingênuas que eles tinham na infância, aos oito ou nove anos, numa garagem, com cartolina, tesoura, cola, papelão e uma câmera super 8. É um filme de personalidade e sentimentos jovens, feito em homenagem aos garotos que usam óculos de armação grande, algo desajeitados, que sonham com mulheres bonitas e são fascinados por monstros.

domingo, 7 de agosto de 2011

Sobre o luto e as mulheres euclidianas

Hugo Viana



Nos textos do escritor húngaro Péter Esterházy, a condição da arte como expressão pessoal surge naturalmente em publicações em que o autor não parece preocupado em optar entre ficção ou biografia. O segundo livro de Esterházy no Brasil (o primeiro foi "Uma Mulher"), lançado em julho, durante a Flip, se chama "Os Verbos Auxiliares do Coração" (Cosac Naify, R$ 35), uma história um tanto inventada, mas criada a partir do sentimento bastante real e duro da perda da mãe, que morreu no começo dos anos 1980, época em que o livro foi escrito. A capa é uma fotografia de um ambiente, coberta quase inteiramente por um grande retângulo preto, imagem que sugere o luto, a memória que persiste mas não é a mesma, a lembrança de um tempo passado obstruída pela perda. O livro tem 72 páginas, contendo textos que embora juntos formem uma narrativa única, parecem ter certa independência, ou talvez autonomia, um pouco como pequenos contos com identidade própria. Neles, Péter é autêntico numa espécie particular de ironia confessional, escreve frases que parecem surgir da urgência, da necessidade intransferível de anotar rapidamente as palavras fúnebres antes que elas percam o sentido. Em entrevista por e-mail (originalmente em alemão), Péter comenta o espanto diante do luto, a insolência consciente como resistência sensível daqueles sem perspectiva e o benefício do humor inesperado.

Seus dois livros lançados no Brasil possuem uma conexão de ordem sentimental, por tratarem de tipos de afetos, grandes temas universais. O que atrai o senhor na ideia de abordar amor, família e perda através da literatura?
Eu não tenho considerações teóricas. Posso comentar apenas que interessa-me o que acontece comigo. Simplesmente experiências. E claro as palavras. Eu tento construir ou traçar uma ponte entre ambos - a isso denominamos literatura.

Nesses livros há algo de biográfico, no sentido de sua história pessoal aparecer, ao menos em parte, nos textos? É possível afirmar, durante a escrita, onde a ficção e a autobiografia se aproximam ou se afastam?
Há sempre uma distância entre ficção e não-ficção. Para mim essa distância é: zero. Não tem sentido fazer essa distinção. Quando digo "eu", não estou sendo necessariamente autobiográfico, apenas escolhi uma forma. Mas nesse caso é muito mais fácil porque minha mãe morreu, então sem esse fato não seria um livro. O aspecto físico é uma grande experiência para mim. Sem essa vivência pessoal o livro 'Uma Mulher' não teria sido escrito.

A sua formação foi em matemática, ciência que podemos pensar como objetiva, ou talvez lógica. Como se deu a transição para a literatura, e como esse primeiro momento influenciou (ou influencia) sua produção?
Não houve transição, eu sempre fui um escritor que apenas estudou matemática. Mas aprendi muito com esse estudo acadêmico, sobre formas, abstração e história da ciência. Escrevi uma peça de teatro com o seguinte título: "Rubens e as Mulheres Não-Euclidianas". Sem os estudos de matemática este seria um título difícil de imaginar. Quer saber o que significa uma mulher não-euclidiana? É complicado, mas tem a ver com triângulos.

O senhor nasceu em 1950, na Hungria, então viveu momentos importantes da história política do leste europeu. Gostaria que comentasse como essa história é reprocessada na sua escrita, e se há interesse em debater temas políticos através da literatura.
Em uma ditadura, para sobreviver, deve-se ter muita disciplina. Eu acho que esta disciplina espiritual é bem perceptível na minha escrita. Na ditadura, em que as questões políticas não são respondíveis, a literatura as responde. Mas depois essa relação direta com a ditadura se foi, porque a literatura é mais lenta. As questões políticas devem ser respondidas pelo leitor e não pelo escritor. Um escritor é também, naturalmente, um leitor.

"Verbos Auxiliares do Coração" tem 72 páginas, e embora formem uma narrativa única, elas também são como pequenos contos. Era em alguma medida um interesse investigar formas criativas de narração?
Nunca é bom quando você quer ser criativo e também não é bom quando você não é criativo.

O livro parte de um interesse de falar sobre sua mãe, uma vontade de "se entregar ao trabalho antes que a necessidade demasiado ardente de falar sobre ela recue para o mutismo covarde". Gostaria que o senhor falasse sobre a escrita como um meio para abordar perdas reais.
Eu não vejo a escrita como uma ferramenta de ajuda. Ela não é uma aspirina. A escrita é mais como um predador. Através das minhas perdas pessoais uso as palavras para tentar falar sobre algo mais geral, para também comentar sobre a perda dos leitores. Minha literatura me é roubada assim que ela surge.

Em cada página há trechos de outros livros, sem uma nota explicativa sobre a origem desses textos. Gostaria de saber o que motivou essa escolha, querer aproximar seu texto de outros trechos, de cânones da literatura mundial.
Através desses textos, que permanecem como um corpos estranhos que acompanham o texto original, crio leves e finas fissuras que surgem no texto, arrepios, tremores. E esse efeito é muito importante para mim, essa incerteza. Mas esse é um processo natural, muitas frases nadam em nós, sejam elas peculiares, estranhas, pertencentes, encontradas, ou mesmo criadas.

Senti em alguns momentos do livro um tipo peculiar e certamente inesperado de humor (inesperado talvez diante do tema central, digamos, mais solene, a morte da mãe). Penso na arte do leste europeu, e, sem querer generalizar, mas lembro não apenas escritores, como Kafka, mas também cineastas, tchecos, húngaros e poloneses, como Milos Forman, Jirí Menzel, Juraj Herz, Wojciech Has, que nos anos 1960 e 1970 faziam filmes pessoais, políticos, sentimentais e críticos sobre a história, artistas que mesmo nas situações mais graves criavam um tipo de humor. Eles de alguma forma foram inspirações para seu uso do humor?
Os filmes tchecos dos anos 1960, 70 são referências muito próximas a mim - o modo como lidam com o trágico e o cômico. Desse modo, estando muito próximos uns dos outros, nós ainda rimos, mas deveríamos chorar e, então, nós rimos sobre o que nós choramos. Algo assim. A ironia só é legítima com auto-ironia.

O livro foi publicado em Budapeste em 1985. Você chegou a ler novamente, agora, com o distanciamento de 26 anos? E, por se tratar de um tema tão claramente íntimo, é em alguma medida “incômodo” reler esse livro?
Resposta curta: não. Uma pouco mais longa: sobre a morte da minha mãe eu posso chorar sem ler "Os Verbos Auxiliares do Coração". Eu posso chorar sempre, isso permanece. Então, mais tarde, meus filhos irão chorar. Eu acho isso mais alegre do que triste.