Hugo
Viana
As
propostas de Gilberto Freyre (1900-1987), especialmente as ideias apresentadas
no livro Casa-Grande & Senzala - publicação que, em 2013, completa 80 anos
de lançamento - permanecem sendo ferramentas relevantes para discussões. O
intelectual pernambucano será debatido em duas mesas na programação de hoje da
Expoidea: "Relendo Casa-Grande & Senzala: Gilberto Freyre, Roges
Bastides e o conceito de democracia racial", com Anco Márcio Tenório
Vieira, professor do departamento de pós-graduação em Letras da UFPE, às 16h; e
"O Recife de Gilberto Freyre", com Maria Lúcia Pallares-Burke, autora
do ensaio biográfico "Gilberto Freyre: Um vitoriano nos trópicos", às
18h. Os eventos, gratuitos, acontecem no Centro Cultural Correios.
"Minha
mesa vai mostrar que não foi Freyre que criou o termo 'Democracia Racial' (esta
palavra não se encontra em nenhuma das suas obras dos Anos 1930, 40 e 50), mas
Roger Bastide, que escreveu, na década de 1950, um estudo sobre a condição do
negro em São Paulo", adianta Anco. "Quando perguntado se o Brasil era
uma 'Democracia Racial', Freyre negava. O que ele mostrava é que nosso
preconceito racial era menor do que os registrados nos Estados Unidos e África
do Sul, e que as bases da nossa formação racial (a miscigenação) habilitava o
Brasil - mais do que outros países que tiveram formação semelhante -, a ser, no
futuro, a primeira democracia racial. É um sonho generoso? Sim. E é um sonho
que todos nós deveríamos lutar para que venha a ocorrer", ressalta o
professor.
A
atualidade de Freyre pode ser percebida na maneira como suas ideias continuam
relevantes, na forma como oferecem, ainda hoje, contribuições valiosas. Temas
atuais, como representação, identidade e sustentabilidade, foram abordados por
Freyre em estudos que observam temas complexos de maneira profunda. "Sua
insistência para que os brasileiros se aceitem como uma mistura de grupos
étnicos e de culturas, ao invés de se fragmentarem entre ítalo-brasileiros,
afro-brasileiros, ainda é uma questão atual. Seu precoce interesse pelo meio
ambiente, sua preocupação com a perda de árvores, com os efeitos maléficos das
monoculturas, inclusive a poluição do Capibaribe estão no livro 'Nordeste', de
1935", aponta Maria Lúcia.
A
mistura social e cultural - e as maneiras como diferentes religiões, crenças e
orientações habitam o cotidiano brasileiro - também foram discutidas por
Freyre. "Se a miscigenação de raças e de culturas é talvez o nosso maior
capital social, como usar essa miscigenação como base para a construção de uma
sociedade mais justa e fraterna? Como usar esse diálogo de culturas e ideias
que nos formou e continua presente como antídoto contra políticos messiânicos e
ideias reacionárias que tentam impor ao Brasil um modo único de comportamento
(seja religioso e ideológico-político, seja no campo da orientação sexual)?
Nestes dois pontos, a obra de Freyre tem muito a nos dizer e muito a nos ajudar
a pensar a nossa contemporaneidade", atesta Anco.
"Quisemos
ressaltar a
originalidade
de Freyre, mas
também
apontar fraquezas"
Maria Lúcia Pallares-Burke
Os 80 anos de Casa-Grande & Senzala sugerem refletir
sobre o pensamento de Gilberto Freyre. Qual a importância das ideias
apresentadas na obra?
Uma
das características mais importantes do pensamento de Freyre, e que o torna
extremamente atual, é sua preocupação em minar as oposições binárias que ele
originalmente estabelece entre casa-grande e senzala, sobrados e mocambos,
ordem e progresso, senhores e escravos. O que ele faz com maestria é chamar
atenção para o que existe entre essas oposições e o que as une. Daí sua busca
de mediações entre opostos, que se revela no rico vocabulário que usa para
descrever essas mediações, como acomodação, adaptação, conciliação, mistura,
hibridismo. Essa é uma abordagem valiosa que pode ser utilizada para quaisquer
outras oposições binárias, e que é facilmente exportável para problemas
contemporâneos. Pensando na oposição herói e vilão, por exemplo, o que Freyre faz
é apontar para o que não é tão heroico no herói e o que não é tão vil no vilão.
O que é extremamente valioso no pensamento de Freyre é sua ênfase em não se ver
o mundo em preto e branco, mas buscando nuances nas idéias, pessoas,
instituições.
Como foi o processo de pesquisa para "Gilberto
Freyre: um vitoriano dos trópicos" e "Repensando os trópicos: um
retrato intelectual de Gilberto Freyre"? Que tipo de imagem é de Gilberto
Freyre é possível notar nos livros?
Nossa
pesquisa se baseou numa variedade de material: cartas, recortes de jornal e
anotações feitas por Freyre em seu livros. Especialmente curiosos foram os
quatro volumes organizados por Magdalena contendo artigos hostis a ele. Para
mostrar seu desagrado com as críticas ao marido, Magdalena deu aos volumes o
título de WC. Para o meu "Gilberto Freyre, um vitoriano dos
trópicos", fiz uma pesquisa detetivesca na Inglaterra para identificar o
jovem com quem Freyre teve, como descreveu, uma "breve aventura de amor
homossexual, no melhor sentido da expressão sem canalhice alguma".
Descobrir Linwood Sleigh, suas origens e interesses estéticos ampliou minha
compreensão da personalidade do jovem Freyre, seu empenho por legitimar e
enobrecer o episódio de sua juventude, rejeitando qualquer insinuação de vulgaridade.
Nesses livros, quisemos construir a imagem de um Freyre complexo, diferente de
um modelo de perfeição, que mais parece uma estátua de mármore do que um homem
- tal como Freyre criticava as "biografias triunfais" que
"deixam os grandes homens descansar na sua glória de estátuas", por
quererem vê-los "sempre olímpicos e cor de rosa".