segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A permanência de Gilberto Freyre

Hugo Viana



As propostas de Gilberto Freyre (1900-1987), especialmente as ideias apresentadas no livro Casa-Grande & Senzala - publicação que, em 2013, completa 80 anos de lançamento - permanecem sendo ferramentas relevantes para discussões. O intelectual pernambucano será debatido em duas mesas na programação de hoje da Expoidea: "Relendo Casa-Grande & Senzala: Gilberto Freyre, Roges Bastides e o conceito de democracia racial", com Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de pós-graduação em Letras da UFPE, às 16h; e "O Recife de Gilberto Freyre", com Maria Lúcia Pallares-Burke, autora do ensaio biográfico "Gilberto Freyre: Um vitoriano nos trópicos", às 18h. Os eventos, gratuitos, acontecem no Centro Cultural Correios.

"Minha mesa vai mostrar que não foi Freyre que criou o termo 'Democracia Racial' (esta palavra não se encontra em nenhuma das suas obras dos Anos 1930, 40 e 50), mas Roger Bastide, que escreveu, na década de 1950, um estudo sobre a condição do negro em São Paulo", adianta Anco. "Quando perguntado se o Brasil era uma 'Democracia Racial', Freyre negava. O que ele mostrava é que nosso preconceito racial era menor do que os registrados nos Estados Unidos e África do Sul, e que as bases da nossa formação racial (a miscigenação) habilitava o Brasil - mais do que outros países que tiveram formação semelhante -, a ser, no futuro, a primeira democracia racial. É um sonho generoso? Sim. E é um sonho que todos nós deveríamos lutar para que venha a ocorrer", ressalta o professor.

A atualidade de Freyre pode ser percebida na maneira como suas ideias continuam relevantes, na forma como oferecem, ainda hoje, contribuições valiosas. Temas atuais, como representação, identidade e sustentabilidade, foram abordados por Freyre em estudos que observam temas complexos de maneira profunda. "Sua insistência para que os brasileiros se aceitem como uma mistura de grupos étnicos e de culturas, ao invés de se fragmentarem entre ítalo-brasileiros, afro-brasileiros, ainda é uma questão atual. Seu precoce interesse pelo meio ambiente, sua preocupação com a perda de árvores, com os efeitos maléficos das monoculturas, inclusive a poluição do Capibaribe estão no livro 'Nordeste', de 1935", aponta Maria Lúcia.

A mistura social e cultural - e as maneiras como diferentes religiões, crenças e orientações habitam o cotidiano brasileiro - também foram discutidas por Freyre. "Se a miscigenação de raças e de culturas é talvez o nosso maior capital social, como usar essa miscigenação como base para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna? Como usar esse diálogo de culturas e ideias que nos formou e continua presente como antídoto contra políticos messiânicos e ideias reacionárias que tentam impor ao Brasil um modo único de comportamento (seja religioso e ideológico-político, seja no campo da orientação sexual)? Nestes dois pontos, a obra de Freyre tem muito a nos dizer e muito a nos ajudar a pensar a nossa contemporaneidade", atesta Anco.

"Quisemos ressaltar a 
originalidade de Freyre, mas
também apontar fraquezas"
Maria Lúcia Pallares-Burke

Os 80 anos de Casa-Grande & Senzala sugerem refletir sobre o pensamento de Gilberto Freyre. Qual a importância das ideias apresentadas na obra?
Uma das características mais importantes do pensamento de Freyre, e que o torna extremamente atual, é sua preocupação em minar as oposições binárias que ele originalmente estabelece entre casa-grande e senzala, sobrados e mocambos, ordem e progresso, senhores e escravos. O que ele faz com maestria é chamar atenção para o que existe entre essas oposições e o que as une. Daí sua busca de mediações entre opostos, que se revela no rico vocabulário que usa para descrever essas mediações, como acomodação, adaptação, conciliação, mistura, hibridismo. Essa é uma abordagem valiosa que pode ser utilizada para quaisquer outras oposições binárias, e que é facilmente exportável para problemas contemporâneos. Pensando na oposição herói e vilão, por exemplo, o que Freyre faz é apontar para o que não é tão heroico no herói e o que não é tão vil no vilão. O que é extremamente valioso no pensamento de Freyre é sua ênfase em não se ver o mundo em preto e branco, mas buscando nuances nas idéias, pessoas, instituições.

Como foi o processo de pesquisa para "Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos" e "Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre"? Que tipo de imagem é de Gilberto Freyre é possível notar nos livros?
Nossa pesquisa se baseou numa variedade de material: cartas, recortes de jornal e anotações feitas por Freyre em seu livros. Especialmente curiosos foram os quatro volumes organizados por Magdalena contendo artigos hostis a ele. Para mostrar seu desagrado com as críticas ao marido, Magdalena deu aos volumes o título de WC. Para o meu "Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos", fiz uma pesquisa detetivesca na Inglaterra para identificar o jovem com quem Freyre teve, como descreveu, uma "breve aventura de amor homossexual, no melhor sentido da expressão sem canalhice alguma". Descobrir Linwood Sleigh, suas origens e interesses estéticos ampliou minha compreensão da personalidade do jovem Freyre, seu empenho por legitimar e enobrecer o episódio de sua juventude, rejeitando qualquer insinuação de vulgaridade. Nesses livros, quisemos construir a imagem de um Freyre complexo, diferente de um modelo de perfeição, que mais parece uma estátua de mármore do que um homem - tal como Freyre criticava as "biografias triunfais" que "deixam os grandes homens descansar na sua glória de estátuas", por quererem vê-los "sempre olímpicos e cor de rosa". 




segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Memória da literatura pernambucana

Hugo Viana


Tarcisio Pereira tem uma relação profunda com a literatura pernambucana: fundou, em 1970, a Livro 7, livraria que, até 1998, ofereceu publicações raras, e abriu espaço para lançamentos de escritores do Estado. Tarcisio é um dos homenageados da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que termina hoje. "É muito gratificante ver o trabalho reconhecido", diz livreiro. "Em janeiro, completo 50 anos de trabalho com literatura. Então é muito bom ser lembrado numa Bienal como a nossa, a terceira maior do Brasil", ressalta. 

Durante a Bienal, Tarcisio divulga um projeto que destaca a relevância da história literária de Pernambuco e a importância da memória cultural: a coleção Geração 65, composta por escritores que frequentavam a Livro 7. "Nossa proposta é chegar a 15 volumes", avisa Pereira, que lançou as duas primeiras edições na quinta-feira - obras de Ângelo Monteiro e José Mário Rodrigues - e apresenta três obras hoje: "Haikais", de Joca de Oliveira, "Frutas de arribação", de Wilson Vieira, e "O corpo em composição", de J.C. Marinho, às 16h. 

"Quero fazer uma antologia de cada membro da Geração 65, que foi importantíssima na poesia", diz Tarcisio. "Vejo isso como uma obrigação minha. Essa é a minha geração, esses poetas viviam dentro da Livro 7, então sei naturalmente o conteúdo da poesia de cada um. Sei que são poetas que em qualquer circunstância representarão bem a poesia pernambucana. Até dezembro, pretendo lançar obras de Almir Castro Barros, Gladstone Vieira Belo, Marcus Accioly, Jaci Bezerra, Alberto da Cunha Melo, Severino Silveira, entre outros", adianta Tarcisio. 

A história da Livro 7 está intrinsecamente conectada com a produção e fruição literária em Pernambuco - tanto na maneira como apresentou obras importantes sobre filosofia e política durante a Ditadura, período em que debater esses temas era um risco, quanto na forma como apresentou escritores pernambucanos. "Fui aluno de Jacob Berenstein, fundador da Livraria Imperatriz. Ele era um dos melhores livreiros do Brasil. Depois de trabalhar sete anos com ele, abri minha livraria, em 1970, vendendo livros de arte, literatura e ciências humanas", lembra Tarcisio. 

"Naquela época havia muita repressão. Os livreiros tinham receio em trazer obras de filosofia, política. Mas eu sabia da necessidade do mercado, da procura dos leitores. No Brasil não se publicava quase nada de política. Comecei a importar de Portugal, França, Espanha, Argentina. Obras de interesse para estudiosos, políticos, leitores. Com o crescimento, em 1972 duplicamos o tamanho, para 50m². Em 74, nos alojamos em um casarão no Centro. Nesse espaço, além de livraria, tínhamos loja de discos, artesanato, galeria de arte, um pequeno teatro e uma cervejaria", detalha. 

A Livro 7 encerrou as atividades em 1998, resultado de uma mistura de razões. "O fim foi muito difícil. Tinha me espalhado pelo Nordeste, abrindo lojas em Fortaleza, Campina Grande, João Pessoa e Maceió. Além da matriz tinha filiais em Boa Viagem e Cidade Universitária. Não existe um fato que possa dizer que definiu o fim, não tem um motivo. Mas uma das coisas que mais afetaram foi que, naquela época, aconteceu um achatamento muito grande do salário dos professores, e a Livro 7 vivia, em geral, da vida acadêmica", explica.

Atualmente Tarcisio trabalha com livros, mas numa posição diferente: como editor, tentando lançar novos nomes e escritores consagrados no mercado. "Sempre dei muito valor à cultura local. Sempre procurei estimular e descobrir novos autores. O ápice da minha luta em divulgar a cultura nordestina foi a participação, em 1991, da Feira de Frankfurt. A comissão organizadora queria levar autores do Sul e Sudeste, então fiz uma proposta para levar também autores do Nordeste. Mandei um projeto, eles apoiaram, o governo alemão bancou a passagem e a hospedagem. Levei 150 livros, vendi o copyrights de alguns, deixei nas universidades, no Centro de Literatura Luso Brasileira. Plantei sementes da nossa literatura na Alemanha", destaca o livreiro. 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Gilvan, o mestre da imaginação

Hugo Viana


Gilvan Lemos nunca visitou Olinda. Aos 85 anos, o escritor pernambucano, que nasceu em São Bento do Una, vai à cidade pela primeira vez para receber homenagem da 9ª edição da Bienal, que começou na última sexta-feira e segue até o próximo domingo. "Achei que ninguém sabia que eu existia. Fiquei famoso", brinca o autor, que além da distinção terá dois livros relançados, pela editora Cepe, na Bienal: "O anjo do quarto dia" e "Emissários do Diabo" (na próxima sexta-feira (11), com presença do autor). 

A trajetória de Gilvan apresenta indícios de paixão e força de vontade - o interesse por narrar histórias e a necessidade de vencer obstáculos. "Me tornei escritor de teimoso", diz Gilvan. "Em São Bento não tinha nada, colégio, livraria, biblioteca. Não tinha ninguém para ensinar. Estudei até onde pude sem sair de lá. Meus pais não tinham dinheiro para me mandar estudar fora. Então fiquei em casa sem fazer nada. Até que comecei a ler gibi. E depois comecei eu mesmo a fazer histórias", explica o autor. 

Nesse ambiente em que a produção cultural e o pensamento libertador pareciam recursos dos obstinados, a resistência essencial dos insistentes, Gilvan encontrou amparo na família. "Minha irmã me ajudava nos quadrinhos. Quando eu desenhava lá em casa ficava assim de menino pra ver. Ainda guardo esses gibis. Minha mãe era semi-analfabeta. Se você pegasse uma carta que ela tinha escrito encontraria muitos erros. Mas ela lia Machado de Assis, Dostoievski, adorava Érico Veríssimo", detalha. 

Dessa juventude em que os interesses permaneciam além do horizonte, a vontade de criar era o único avanço possível - a agitação crescente de uma mente imaginativa. "Quando eu tinha 15 anos li 'Conde de Monte Cristo'. Era um livro muito grosso e de letra miúda. Eu adorei. Depois pensei que eu mesmo poderia escrever. Publiquei meu primeiro conto na Revista Alterosa [em março de 1948]. Fiquei conhecido como gênio em São Bento", lembra o escritor. 

O primeiro romance de Gilvan a conquistar espaço no mercado editorial foi "Emissários do Diabo". "A primeira edição foi publicada por empréstimo", diz. "Naquela época, no Recife, existiam três suplementos literários. Mandei para todos, mas não teve nenhuma repercussão. Eu sendo um matutão do Interior ninguém deu bola. Um dos jornalistas me disse depois: 'Livro daqui eu nem abro'. Osman Lins, meu amigo, comentou: 'Não perca tempo, Recife é um cemitério'. Mandei o livro para a Editora Civilização e foi publicado no mesmo mês. Só comecei a ser notado aqui quando fui publicado no Rio de Janeiro", destaca. 

Depois da publicação de "Emissários do Diabo", Gilvan passou a ser reconhecido como autor relevante, um escritor que a partir da realidade, dados do cotidiano, criou histórias que se destacam pela capacidade de revelar aspectos da sociedade, a política psicológica de personagens em crise. Temas presentes também em "O anjo do quarto dia", narrativa que questiona heranças sociais do Interior, o poder de famílias ricas e a sujeira política de corruptos. "Escrevi o livro muito ligeiro. Ouvi uma história de família e achei extraordinária. As pessoas liam e pensavam: 'Esse Gilvan é um mentiroso arretado'", comenta. 

Ao longo de sua trajetória, Gilvan conquistou reconhecimento ao ser publicado por editoras e vencer disputas literárias - negociou contrato com a editora Civilização e ganhou prêmios. "Meu editor na Civilização nunca recusou um livro meu. Até ele morrer e eu ficar na mão", recorda o autor. "O primeiro prêmio literário que ganhei foi 30 mil cruzeiros. Na época papai falou: 'Nunca ganhei tanto dinheiro na minha vida'", diz. 

Atualmente Gilvan ressalta que lê apenas jornal - escrever parece fora de cogitação. "Hoje pego um romance e não lembro se li. Vejo um livro meu e penso, 'Meu Deus, eu escrevi isso'. Não escrevo mais nada. Quando tentava, ficava procurando a palavra que queria usar e não lembrava. O pior castigo de Deus para o homem é a velhice."

Livros

"Emissários do Diabo"

O centro da história é sobre conflitos pela posse de terras. Camilo cultiva pequena propriedade perto da fazendo do tio, o major Germano, que tenta roubar a terra do sobrinho. A partir de um drama social com base realista, motivado por ambição e justiça, Gilvan desenvolve o drama interior de homens duros. 

"O anjo do quarto dia"

Concebido a partir de uma história que o autor ouviu, o livro narra a história de habitantes de uma cidade chamada Logrador, onde vivem à mercê de uma família, os Rezendes. A obra traça paralelos entre personagens e figuras bíblicas, analisando criticamente a religião, a hipocrisia social e a política. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Bienal discute geografia e identidade literária

Hugo Viana

A 9ª edição da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, organizada pela Cia. de Eventos, começa amanhã, no Centro de Convenções, programando encontros literários, lançamentos, oficinas e a tradicional feira de livro - todos os eventos têm entrada gratuita. A primeira mesa será com o autor Xico Sá, às 14h, seguida por uma homenagem ao escritor pernambucano Gilvan Lemos, às 16h, e uma conversa com a autora infanto-juvenil Paula Pimenta. 

Encerrando o primeiro dia acontece o encontro "Do exílio e seu avesso: identidades da jovem ficção brasileira", com os autores gaúchos Paulo Scott e Carol Bensimon, e o crítico pernambucano Thiago Corrêa, às 19h. O debate abordará temas recorrentes na literatura contemporânea: o aumento no número de publicações, a influência da geografia - o centro no Sudeste -, o impacto de eventos literários (nacionais e estrangeiros) na produção atual. Depois, às 20h, Scott autografa exemplares de seu novo romance, "Ithaca Road".  

"A literatura brasileira contemporânea vive um ótimo momento", avalia Carol, que prepara o lançamento do romance "Todos nós adorávamos caubóis". "A geração anterior, nos anos 1990, tinha de lidar com um cenário menos profissionalizado. O sistema literário não estava montado como hoje. Atualmente, as editoras investem, há eventos literários, há até certa projeção no exterior, embalada pela Feira de Frankfurt. Em razão do número de autores, de idades e contextos diversos, não acredito em uma única 'identidade'. Podemos dizer, claro, que ela costuma ser urbana, branca e de classe média. E masculina. Ainda assim, isso não diz muita coisa", ressalta. 

Embora o centro econômico brasileiro, o Sudeste, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, sejam influentes na produção literária, é possível notar o surgimento e amadurecimento de novas vozes, de diferentes regiões. "Há consequências sutis na localização geográfica, mas isso não impede que, com as possibilidades de divulgação e circulação existentes, um trabalho de qualidade seja notado", comenta Scott. "A geografia interfere, mas é importante separar a literatura propriamente dita do tal 'sistema literário' que, esse sim, tem São Paulo como centro", afirma Carol. 

No encontro da noite de amanhã, Paulo e Carol debatem com o público, forma de diálogo que aprimora o conhecimento sobre os autores. "Nos eventos literários, o autor é obrigado a constituir uma persona bem diferente das quais se vale para articular uma história e escrevê-la. O contato com o público produz um lugar que desestabiliza a rotina da criação, forjando um arejamento, uma chance de não se levar tão a sério", destaca Paulo. "A gente lida com um público diverso. Há pessoas que são familiares com nossa obra, perguntam, e outras que não fazem a menor ideia de quem somos, o que é igualmente bacana. A troca é sempre produtiva para os dois lados", ressalta Carol.  

Pré-Balada Literária
abre a Bienal do Livro

A Bienal começa apenas amanhã, mas hoje o evento organiza a Pré-Balada Literária, encontro que acontece em São Paulo, criado pelo escritor pernambucano Marcelino Freire. Para esta apresentação, Marcelino participa com Flávio Magalhães, Gero Camilo, Nelson Maca, Helder Santos, Vertim Moura, Allan Jones e Ícaro Tenório. A apresentação acontece no Teatro Arraial, às 19h, com entrada gratuita. 

A Balada Literária, criada em 2006, é composta por conversas, leituras poéticas e música ao vivo. "Escritor precisa sair das páginas, do fundo das gavetas, das academias, das associações, dos fóruns enfadonhos e aristocráticos dos debates on-line e ganhar a prática, tomar as ruas... Literatura é coisa muito chata. Se a gente não agita a coitadinha, ela fica dura, engessada, sem vida... Literatura é vida. E ela tem de carregar com ela essa festa, essa alegria", ressalta Marcelino. 

Neste ano, entre os dias 20 a 24 de novembro, em São Paulo, o encontro chega à oitava edição. "Enquanto outras festas são feitas com 'um milhão', a nossa é feita com 'humilhação'", diz Marcelino. "O homenageado deste ano é Laerte. Vai ser uma festa cheia de quadrinhos. E trataremos da diversidade, discutiremos gêneros literários e sexuais. Vêm este ano, entre outros, Angeli, Arnaldo Antunes, Pedro Lemebel (do Chile), Washington Cucurto (da Argentina). E ainda, do Recife: Jomard Muniz de Brito, Miró, Wilson Freire", detalha. 


terça-feira, 1 de outubro de 2013

A aventura como testemunho histórico e ficcional

Hugo Viana


Foto: Fred Cabral

Hugo Viana

A aventura é um gênero que parece ter como princípio o interesse em incentivar gerações a expressarem desejos secretos, medos obscuros; eventos históricos são transformados por imaginações sem limites, insinuando a presença enigmática de animais bizarros, geografias remotas, etnias desconhecidas no mundo. 

"Quatro soldados", do escritor gaúcho Samir Machado de Machado, envolve sentimentos associados a grandes aventuras, homens que desbravam terras desconhecidas em busca não apenas de reconhecimento ou ouro, a gratificação emergencial dos marginalizados, mas a própria procura, o percurso encenado, como recurso para compreender a natureza humana.

O livro se divide em quatro partes e se passa no Brasil do século 18, observando o cotidiano de soldados, índios e jesuítas num período de guerras. Aspectos da história do Brasil, da formação da identidade nacional, são protagonizados por quatro personagens: um jovem soldado, fragilizado por traumas passados e pela pouca idade, um desertor idealista que vive de contrabando de livros, um capitão melancólico e um tenente de motivações ambíguas. 

"A atração da aventura é a atração pelo mapa, é a ideia de imaginar uma paisagem e fazer a travessia, fazer o personagem se descobrir confrontando com o desconhecido", sugere o autor. Em seu texto, Samir aplica essa proposta de aventura como uma espécie de ritual de passagem através de sequências baseadas em sentimentos primevos: o que se esconde no escuro, os sons de um terror à espreita. "Talvez o mais atraente na ideia de escrever uma história de aventura seja trabalhar o conceito do prazer da descoberta", ressalta.

Samir recorre a mudanças que simulam o português antigo, alterações na grafia e na fala de acordo com as regras de gramática e normas de conduta social de Portugal e Brasil Colônia do século 18, adequando a escrita ao contexto da história. Há não apenas a tradução de um período histórico, a representação subjetiva do cotidiano de 200 anos atrás, mas a caracterização de uma época essencial na formatação social brasileira, a observação sobre acontecimentos que desenvolveram a política e a geografia nacional. 

As histórias são protagonizadas por personagens de surpreendente profundidade dramática; ao mesmo tempo em que fogem de perigos que desafiam a lógica, investigam cavernas escondidas pelo tempo, o autor insere trechos que apresentam a constituição ética e o rigor moral dos personagens. Samir explica seus métodos para compor os personagens: "Pesquisa, referências (também conhecido como 'roubar ideias de escritores melhores e adaptar às necessidades da minha história'), e alguns toques de experiências pessoais". 

O autor cria ainda um narrador curioso, uma voz que ao mesmo tempo em que relata fatos estranhos interfere nos eventos, optando o que dizer e, também importante, a maneira como contar - uma figura ambígua, que remete à problematização recorrente do narrador fingidor, que não é imune a mentiras ou omissões. Um narrador cuja personalidade interfere na própria concepção da história, e o leitor pode - e deve - desconfiar de seu relato.  

Dessa forma Samir parece conceber uma história única na literatura nacional, um enredo que cativa pela noção de aventura - sugerindo a herança do romance capa-e-espada, narrativas populares que prendem pelo suspense da página seguinte - misturada a uma composição madura de personagens. 

"Nossa visão da História 
é filtrada por intenções, 
omissões e manipulações"

O livro se passa no século 18 e trata da relação entre portugueses, índios e jesuítas. O que te atraiu para escrever sobre esse período? Como foi a pesquisa?
Eu tinha ideias, personagens, arco para desenvolver com cada um. A opção era partir para o fantástico ou o histórico. Acabei pendendo mais para o histórico. O século 18 é um período de grandes transformações, como qualquer outro século, contudo ele tinha um elemento que me interessava mais do que qualquer outro: o nascimento do romance de ficção, da noção de "ficção" como um gênero. Do momento inicial até a última alteração, foram 8 anos e meio trabalhando no livro. A internet me ajudou muito, por dar acesso a obras que, em outra época, seria dispendioso ou impossível, como os dicionários setecentistas digitalizados pela USP. 

Você mostra apreço pela linguagem portuguesa. Como foi a pesquisa sobre o português antigo? Em que medida esse interesse moldou a narrativa?
A descoberta desse português antigo, em desuso, foi uma consequência natural do processo de pesquisa. O momento-chave, o deus ex-machina, foi quando entrei em contato com a tradução do Paulo Henriques Britto para "Mason & Dixon", de Thomas Pynchon. Dali veio a conclusão lógica, mas que não tinha me ocorrido até então, que meus personagens deveriam se expressar e agir de acordo com o mundo em que viviam, incluindo as limitações linguísticas - ou seja, cortei todas as palavras que não fizessem parte do vocabulário português do século 18. Por exemplo, havia escrito que o personagem "reagira de modo histérico", mas o revisor atentou para o fato de que a noção de histeria só viria com Freud no século 19. Troquei por "temperamental". Outro personagem não fala em "fantasmas", mas em "abantesmas". Depois de um tempo, substituir essas palavras se tornou uma diversão.

O narrador chama a atenção pela maneira como interfere na história. Em que ponto da escrita você pensa sobre o narrador? Como foi a criação desta voz? 
O narrador foi se construindo ao longo do processo, tornou-se uma necessidade: se a narração usa as mesmas limitações linguísticas dos personagens, então é contemporâneo a eles. Como ele tomou conhecimento da história que narra? Pra quem ele narra? E, se no universo dele, o que ele conta é "real", certamente deve haver momentos em que ele aumenta, mente, inventa, para ajustar a realidade do que ele viu com a intenção do que ele quer dizer - em suma, para impor ordem ao caos, interpretação aos fatos, e lembrar que nossa visão da História é filtrada por intenções, omissões e manipulações. Há pessoas que acreditam ter sido Sherlock Holmes uma pessoa real, e outras que pensam que o Titanic só existiu na ficção. No final, não importa diferenciar, mas extrair deles um sentido pessoal.

Saiba mais

AUTOR - Além de escritor, Samir Machado é roteirista, designer gráfico e um dos criadores da Não Editora, pela qual, desde 2007, organiza a coleção Ficção de Polpa, voltada à literatura de gênero. 

"Quatro soldados", de Samir Machado de Machado
Não Editora, 320 páginas, R$ 37,9