terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Os labirintos do cinema pernambucano

    Sérgio Bernardo / Arquivo Folha

Para Paulo Cunha, professor de cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a história do cinema pernambucano é uma espécie de labirinto; os caminhos podem ser truncados ou mesmo sem saída, mas estão essencialmente conectados. Se hoje o cinema pernambucano é elogiado, ganha prêmios e se destaca internacionalmente é porque segue, por rotas incertas, conceitos estabelecidos décadas atrás. "Não tenha dúvidas que o cinema que temos hoje, em termos de qualidade, está vinculado, de maneira intensa, ao que aconteceu entre os anos 1930 e 60", destaca Paulo. "Foi uma época em que se produziu poucos longas-metragens, mas muito conhecimento de cinema", ressalta o professor. 

Paulo lança o livro "A imagem e seus labirintos: o cinema clandestino do Recife 1930-1964" hoje, às 16h, na Biblioteca Central da UFPE. A obra é uma continuação da pesquisa do professor, que estuda a história do cinema pernambucano. "Essa pesquisa ocorre há mais ou menos cinco anos. O passado não está guardado no formol. Ele está concretizado no presente. Comecei focalizando o período pré-cinema, de 1850 até 1931, a primeira fase, a chegada da fotografia. Falei da questão da cidade. Muita gente fala de 'cinema pernambucano', mas em grande medida é, na verdade, 'cinema recifense'. O grosso da produção é muito vinculado à Cidade", diz Paulo. 

Há dois momentos importantes na história do cinema pernambucano: o Ciclo do Recife, movimento que, nos anos 1920, provocou mudanças significativas no modo fazer filmes, com "Aitaré da Praia" e "Jurando Vingar", e, depois, na década de 1970, com o projeto estético Super-8, baseado em narrativas filmadas com a película de 8mm, formato associado a produções caseiras ou independentes. Entre esses dois momentos, a história do cinema pernambucano permanecia pouco conhecida, com ideias fragmentadas e alcance reduzido. 

"Escolhi falar sobre o período entre 1930 e 64 por uma razão particular", justifica Paulo. "Na historiografia do cinema pernambucano, esse momento é visto como uma fase de vazio. Entre o Ciclo do Recife e o Super-8, o cinema daqui ficou praticamente abandonado. Achava essa visão muito enviesada. Comecei a perceber que o que houve foi uma redução na produção de longas-metragens, mas a experiência do cinema como um todo cresceu. A crítica foi sólida, aconteceram visitas dos cineastas Orson Welles e Roberto Rossellini, estreou o primeiro filme sonoro, nos anos 1940, o cineclube 'Vigilante cura' promoveu debates. A experiência cinematográfica não encerrou, apenas mudou de foco. A cidade passou a vivenciar o cinema de outra forma", destaca o pesquisador, que além de professor é também jornalista e cineasta. 

Histórias de cineastas
e eventos culturais

Sobre os filmes da época, Paulo Cunha dedica atenção especial às obras de Firmo Neto e Rucker Vieira, além de Alberto Cavalcanti, realizador importante na história brasileira. "Cavalcanti gerou polêmica no Recife", sugere o pesquisador. "Ele veio quando a Vera Cruz fracassou, estava em decadência, magoado. Fez aqui o filme 'O canto do mar'. Por causa de comportamentos diferentes, atraiu a ira da parte conservadora da Cidade. Tinha gente que não gostava do filme dele antes de ser exibido. Não gostavam dele. Durante a exibição, no São Luiz, assassinaram um político na porta do cinema. Um cineasta que provoca tanta celeuma gera uma energia, positiva ou negativa, que influi no pensamento de cinema de uma cidade", sugere Paulo. 

O livro é composto por reflexões sobre pessoas e eventos culturais do Recife, e como esses fatos influenciaram na construção gradual de um ambiente cinematográfico. "Evaldo Coutinho iniciou em Pernambuco uma crítica diferenciada, erudita, filosófica", avalia Paulo. "Evaldo merece ser revisto, fazia uma crítica incrivelmente sofisticada. Jomard Muniz de Britto teve atuação importante como professor de cinema e depois fez filmes. Em Pernambuco as formas de lidar com o cinema são integradas: escrever, pensar, projetar, programar. Isso é essencial e uma coisa muito nossa, que repercute na qualidade da produção atual", aponta. 

O autor apurou, também, a interferência do pensamento estrangeiro no Recife. "Teve um crítico francês que veio ao Recife e tomou banho nu em Boa Viagem. Rossellini trocou correspondências com Josué de Castro com o intuito de filmar o livro 'Geografia da fome', o que nunca aconteceu. Algumas histórias são aparentemente pitorescas e anedóticas, mas criaram uma energia propriamente de cinema. Cinema é muito mais do que um filme. Por isso a palavra 'labirinto' do título: na história do cinema pernambucano há muitas saídas, algumas fazem com que as coisas circulem, outros caminhos são imprevisíveis", opina. 

Saiba mais 

HISTÓRIA - No livro, Paulo reflete sobre o sistema de exibição do Recife, destaca a importância das salas de cinemas, como o Coliseu, e programadores, como Celso Marconi. 

TRAJETÓRIA - Paulo Cunha é doutor em Artes e Ciências da Arte pela Universidade de Paris I - Panthéon-Sorbonne (1989), fez cinema experimental (em Super-8 e em 16mm) e lançou, recentemente, os livros "A utopia provinciana: Recife, cinema, melancolia" (2010) e "Imagem & cotidiano: ensaios de cultura visual" (2012). 

Serviço

"A imagem e seus labirintos: o cinema clandestino do Recife 1930-1964", de Paulo Cunha
Editora Nektar, 140 páginas, R$ 30

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O cinema segundo Abbas Kiarostami


Os filmes do cineasta iraniano Abbas Kiarostami apresentam características importantes para compreender procedimentos cinematográficos contemporâneos. A partir de obras como "Close-up" (1990), "Dez" (2002) e "Cópia fiel" (2010), Kiarostami investiga vestígios do real na encenação; narra, através da contemplação de uma realidade encenada para a câmera, os modos da vida cotidiana - temas que pautam o cinema independente atual em diferentes regiões.

O livro "Abbas Kiarostami", escrito pelo próprio realizador, com depoimentos do crítico e teórico de cinema iraniano Youssef Ishaghpour, oferece contribuições importantes para compreender a arte de Kiarostami - e, como consequência, concepções sobre o cinema atual. Antes dos textos há uma sequência de 52 imagens - o projeto "As estradas de Kiarostami", feitas pelo próprio cineasta -, que de certa forma antecipa o sentimento de seus filmes; a contemplação, a expansão vagarosa do olhar, a observação sobre eventos da rotina.

Nos anos 1990 o cinema iraniano passou a ser reconhecido; diferentes países perceberam, na cinematografia do país, a urgência de um movimento unificado por valores culturais e propostas estéticas em sintonia com o momento político pós-revolução islâmica, em 1979. "É interessante perceber como, depois das revoluções das décadas de 1960 e 70, os cineastas do Irã elaboraram uma produção consistente, acrescentando ao cinema europeu uma nova fronteira criativa", comenta Ana Farache, jornalista e fotógrafa, doutora em comunicação pela UFPE. "Esses diretores conseguiram desmontar a ideia de que a contemplação como dimensão do olhar não teria mais espaço na nossa cultura, pela quantidade de tentações visuais e velocidade de distribuição", destaca.

No livro, o autor explica sua perspectiva sobre o cinema, revelando, através de seu gosto cinéfilo, sua proposta de estilo. "Não suporto o cinema narrativo. Abandono a sala. Quanto mais se esforça por contar, e quanto mais sucesso tem nisso, maior é minha resistência. A única maneira de prefigurar um cinema novo reside em um maior respeito pelo papel do espectador", destaca o autor. Em seus filmes, a noção de cinema narrativo, em que a história é contada de maneira linear, é abandonada; o que permanece é um exercício consciente de identidade, uma espécie provocação, através de sensações abertas à interpretação.

"O primeiro plano de 'Five', que, como os demais, dura uns dez minutos, reduz-se à imagem de um pedaço de madeira à deriva na arrebentação das ondas do mar. É algo absolutamente insignificante e desprovido de qualquer nuance dramática", diz o cineasta pernambucano Marcelo Pedroso. "Mas a rigorosa insistência em centralizar o plano nessa situação banal, a temporalidade desconcertante que o cineasta consegue articular na ação e a infinitude de sentidos conotados que o simples recorte do quadro (e fora-de-quadro) sugere são capazes de introduzir uma tensão propriamente dramática a uma situação que seria justamente a negação desses mesmos princípios. Mas para senti-la, é preciso se permitir, aderir à frequência do filme", destaca Marcelo.

Pedroso é autor de obras como "A balsa" (2008) e "Pacific" (2009), filmes que desafiam por reformular características tradicionais do cinema narrativo. "Quando exibi 'Balsa' nas escolas, os jovens se amotinavam durante a sessão tentando fugir, o professor tinha que praticamente armar uma barricada na porta. Um dos estudantes, ao final de uma sessão, esperneou: 'Professor, você não disse que a gente iria ver um filme?!' Acho que essa fala resumia a situação: aquilo não era filme, não podia ser filme, não correspondia à ideia que eles tinham de filme", diz Pedroso.

"É preciso desconstruir essa ideia do filme de ação (que não é necessariamente ruim; o ruim é quando este modelo se impõe como único, quando ele se configura como determinante do que é cinema e do que não é). Lembro que [o diretor Emir] Kusturica disse que há dois tipos de cinema: o de Spielberg e o de Kiarostami. Acho que é isso, de forma caricata: o cinema do contra-campo e o cinema do extra-campo. Um não é melhor do que o outro, é preciso compreendê-los e saber desfrutar do que cada um oferece enquanto experiência aos sentidos", destaca o cineasta. 

A contemplação como 
proposta conceitual


   Marcelo Pedroso

O cinema de Kiarostami toca em aspectos essenciais da produção contemporânea; trata-se de um autor que sintetiza questionamentos sobre técnicas e identidades de países periféricos, marcas de estilo de geografias com tradições relativamente recentes de cinema. Uma dessas características é a contemplação; a observação como meio de sensibilizar.

"Acho o termo 'cinema contemplativo' um pouco perigoso", opina Marcelo. "Em geral, tende a afastar pessoas. Contemplativo pode sugerir um certo vazio, uma rarefação de acontecimentos e normalmente o público associa a filmes chatos. O que acontece é, na verdade, um descompasso de regimes sensórios. Nossa relação com a imagem em movimento é moldada pelo que a televisão e o cinema industrial nos convidam a experimentar", sugere o diretor.

A forma como vemos filmes se modificou; a tecnologia, primeiro através do rádio, em seguida da televisão e hoje da internet e meios digitais, interferiu na relação com as imagens. Kiarostami é exemplo de autor que trabalha, através da câmera e da montagem vagarosa de planos, a ideia da sublimação a partir do olhar. "Minha predileção pelo plano-sequência resulta da necessidade de poder acreditar no que se passa à frente da câmera. Não se pode acreditar em certos acontecimentos se não os filmamos em profundidade de campo e em plano-sequência, evitando os cortes de montagem", escreve o cineasta.

"Nossa relação com as imagens se funda a partir dos códigos que esses modelos nos oferecem: narrativas esquematicamente elaboradas, com uma mensagem a passar, um conflito estabelecido, um clímax", diz Marcelo. "O que esses 'filmes contemplativos' propõem é uma ruptura nesse código, um convite a uma atração a partir de outra percepção sensória. O tempo age de outra maneira, ele não condensa os acontecimentos, mas os expande, os conecta a seus aspectos aparentemente irrelevantes, situando os fatos dentro de uma arquitetura que não é exaustivamente elaborada em privilégio da ação. Não são filmes que mimetizam o tempo real, eles se aproximam do cotidiano, de uma certa desdramatização do mundo, mas fazem isso para introduzir curvas de tensão onde elas aparentemente não existiam", sugere o realizador.

A contemplação, nos filmes de Kiarostami, torna-se uma espécie de ação criativa. "Essa atitude segue o fluxo do pensamento de filósofos, como Plotiono, por exemplo, que postulam não haver contradição entre ação e contemplação. Ao observar seus personagens e suas ações, Kiarostami abre espaço para uma narrativa estabelecida no silêncio. Quando contemplamos, o silêncio se apossa de nós. Nossa mente se cala. Nas palavras de Plotino, 'a alma, então, atinge a tranquilidade e nada busca por estar plenificada, e a contemplação, nesse estado, repousa no interior, por confiar possuir'", reflete Ana Farache, cujo doutorado reflete sobre o espaço reservado à contemplação no contemporâneo.

Serviço

"Abbas Kiarostami", de Abbas Kiarostami e Youssef Ishaghpour
Cosac Naify, 328 páginas, R$ 95

Filme-propaganda contra os russos


Durante a Guerra Fria, parte de Hollywood serviu como uma espécie de arma contra o comunismo, colocando os russos como vilões, ameaças ao american way, apontando o dedo para pessoas de ideologias diferentes. Essa ideia parece ter voltado, talvez motivada pelo ataque terrorista de 2001; o cinema torna-se, então, ferramenta para instigar medo e revolta.

"Jack Ryan: operação sombra", filme ruim de Kenneth Branagh, parece resgatar o desconforto contra estrangeiros. O filme, uma ação nada original, é baseado em personagem criado por Tom Clancy (1947-2013), especialista em literatura de espionagem. Jack Ryan (Chris Pine), que apareceu em diferentes livros do autor, é um analista de dados da CIA - este filme, no entanto, não é baseado em nenhuma obra. 
Na primeira cena o vilão (interpretado pelo diretor) demonstra que é mau e estúpido; espanca um médico por ter aplicado errado uma injeção em seu braço. 

Quer destruir os Estados Unidos para vingar a Mãe Rússia. Ele e outros falam inglês errado, sem conjugar direito os verbos, embora negociem com empresários americanos. A construção do protagonista é ainda pior, um homem que combina inteligência e força extrema. Seu maior sonho é salvar o mundo e apertar a mão do presidente; um herói sem complexidade.


Há uma cena que ameaça transformar um filme num exemplar decente de ação, uma sequência de espionagem que, através da montagem em diferentes perspectivas, injeta adrenalina. Logo em seguida, no entanto, cenas que tratam os EUA como salvadores colocam este filme como peça descartável de propaganda.