segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Letras brasileiras sob o céu da Alemanha

Hugo Viana

Neste mês a literatura brasileira é protagonista de um dos principais eventos literários do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt, entre os dias 9 e 13. Antes, desta terça-feira até 29 de outubro, o pernambucano de Petrolândia radicado em Berlim Edney Pereira organiza a primeira edição do Festival de Literatura Brasileira em Berlim, mostra que reúne 19 autores (além dos brasileiros estão 3 da Alemanha e um de Angola). Entre os convidados, estão os pernambucanos Raimundo Carrero e Marcelino Freire, que também participa do evento em Frankfurt. 

"A ideia para o evento surgiu quando visitei o Festlatino, organizado pelo professor Humberto França, e a Fliporto, do advogado Antônio Campos", explica Edney. "No início, queria fazer não apenas um evento de literatura brasileira, mas de língua portuguesa, pela afinidade que tenho com autores de Moçambique, Angola e Portugal", detalha o produtor, que contou com apoio da Fundação Biblioteca Nacional, instituição que também coordena os encargos da homenagem que será prestada ao Brasil no evento em Frankfurt. 

"A Fundação Biblioteca Nacional está cobrindo as despesas de seis escritores: Paulo Lins, Ferréz, Marcelino Freire, Raimundo Carrero, André Sant'Anna e Daniel Galera - autores convidados através de um projeto que enviei à Fundação e que foi aprovado. O orçamento é bancado pela Biblioteca Nacional, Fundação Rosa Luxemburgo (Alemanha) e por editoras alemãs. Temos a parceria com a Embaixada do Brasil, no sentido de espaço: eles nos cedem o local para as leituras", ressalta Edney.

Esses dois eventos parecem indicar um crescente interesse estrangeiro pela literatura nacional, uma curiosidade que se intensifica ao longo do ano através de fatos que, nesta quantidade, são inéditos em nossa história literária. Ano passado, foi publicada a primeira edição em português da prestigiada revista britânica Granta, que reunia os "melhores jovens escritores", provocando reação imediata no mercado de língua inglesa - o aumento no número de escritores traduzidos para o mercado estrangeiro. 

Agora, esses dois eventos na Alemanha - cujo impacto é difícil de prever - parecem ratificar o bom momento não apenas da literatura, mas a cultura produzida no País - reflexo da atenção internacional dada ao Brasil também em termos políticos e econômicos. "Agora os escritores estão mais exigentes", sugere Raimundo Carrero, de Salgueiro. "Estamos passando por um momento muito bom. A crítica é exigente, assim os escritores oferecem mais e melhor. Acho que poucas vezes na literatura nacional tivemos um momento assim. Talvez nos anos 1930, 40 e 50, nosso apogeu depois de Machado de Assis. Temos uma geração que cresce a cada momento", opina o autor.  

Carrero destaca como esse atual momento é resultado, entre outros fatores, de políticas culturais. "Nossa situação melhorou depois que a Fundação Biblioteca Nacional criou bolsas. Isso facilitou a comunicação entre Brasil e Europa. Não quer dizer que esteja tudo fácil, mas é mais fácil do que antigamente. Eles agora percebem a altíssima qualidade na nossa literatura, então debatem e analisam. O impulso do Governo Federal, através da Fundação, foi importantíssimo", atesta. 

"Só o fato de a literatura estar em pauta já é bom demais", opina Marcelino Freire, natural de Sertânia. "Essa homenagem na Alemanha é fruto da agitação que está acontecendo por aqui. Claro que é ilusão dizer que os estrangeiros estão lendo loucamente os brasileiros. Há traduções, sim. Há ebulições, sim. Mas tudo ainda está no começo. Antes da gente, muitos autores ainda precisam reverberar por lá. Penso no Osman Lins, no Lúcio Cardoso e até, sei lá, no Graciliano. Movimento há. O importante é se movimentar", diz o autor. 

Marcelino destaca ainda a importância do diálogo com o leitor estrangeiro. "O bom é conhecer gente. Em setembro, apresentei em Frankfurt o show 'Cantos Negreiros' que, desde 2006, faço ao lado da cantora Fabiana Cozza. Rapaz, a receptividade foi excelente. Soltei meus contos e o pessoal viu aquilo como música, rap, vexame, repente. E havia, na plateia, creia, alemão que conhecia o meu trabalho, muitos que estudam, por lá, a literatura contemporânea brasileira. Gostei dessa troca de energias", diz o autor. 

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FRANKFURT Foram selecionados 70 escritores para participar da Feira do Livro de Frankfurt. Além de Marcelino, destaque para Ronaldo Correia de Brito (CE), Andrea del Fuego (SP), Carola Saavedra (RJ), Cristovão Tezza (SC) e Michel Laub (RS). 

LISTA Galeno Amorim, presidente da Fundação Bliblioteca Nacional, e Manuel da Costa Pinto, um dos curadores da seleção, ressaltaram, na época da divulgação dos nomes, em março, que a lista busca mostrar a diversidade da produção nacional. 

Jornada de Petrolândia para Berlim

Nesta primeira edição do Festival de Literatura Brasileira em Berlim, Edney promove encontros entre autores e leitores, conversas sobre literatura contemporânea. "Organizamos leituras, o autor lê parte do seu último livro, ou fazemos uma viagem entre os livros publicados. Depois, abrimos para o debate com o público - esta é a melhor parte, quando o autor interage com os leitores", explica Edney. "Esta é a primeira edição do festival, mas há oito anos organizamos leituras em Berlim", ressalta. 

O evento tem como proposta divulgar a produção literária nacional, ampliando o alcance de livros e autores brasileiros. "Nosso objetivo é principalmente tornar pública a literatura brasileira para o leitor alemão. As leituras e as conversas serão feitas nos dois idiomas", ressalta. "Além das leituras e oficinas, teremos concertos: a cantora de fado portuguesa Mariza, o percussionista de Olinda João Alencar e a violinista alemã Lilli Wassemann", comenta Edney. 

Edney visitou a Alemanha pela primeira vez em 2003 e se mudou em 2005. "Até então só conhecia o trajeto de Recife para Petrolândia, e de Petrolândia para o Recife", diz. No ano seguinte, Edney, que no Recife estudava Letras, abriu uma livraria com sua esposa. "Fizemos um projeto, para conseguir apoio. Depois, o gerente de um banco nos informou que a proposta tinha sido aprovada. Nunca acreditei que um banco iria dar dinheiro sem garantias que iria receber de volta. Ainda lembro a pergunta do gerente: 'O que você nos dá de garantia? Tem automóvel, casa?', e eu respondi: 'A única coisa que temos são duas bicicletas velhas', ele sorriu e nos pediu para assinar os papéis. Abrimos a livraria em novembro de 2006", conta. 

Escritores convidados

Raimundo Carrero (PE)
Marcelino Freire (PE) 
Bernardo Kucinski (SP) 
Willi Bolle (USP) 
Daniel Galera (RS) 
Ferréz (SP) 
André Sant'Anna (MG) 
Paulo Lins (RJ) 
Ricardo Domeneck (SP) 
João Paulo Cuenca (RJ) 
Ruy Castro (RJ) 
Heloisa Seixas (RJ) 
Flavio Wolf Aguiar (RS) 
Daniela Galdino (BA) 
Guiomar de Grammont (MG)
Kalaf Angelo (Angola) 
Professor Henry Thorau (Alemanha ) 
Peter Reinhold (Alemanha) 
Eckhard E. Kupfer (Alemanha)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Épico nacional cai nos clichês do melodrama



É curioso notar como a história do Brasil, a formação da identidade cultural nacional, geralmente aparece no cinema em sua forma precária e pitoresca, através de um conjunto exótico de etnias - portugueses, bandeirantes, índios - exercendo costumes clichês atribuídos a eles, sem no entanto demonstrar qualquer característica que sugira a ambiguidade moral relativa a processos históricos forjados em suor e sangue. 

Estreia hoje "O tempo e o vento", versão da Globo Filmes para o século 19, período em que o Rio Grande do Sul passava por conflitos entre índios, espanhóis e famílias gaúchas, que lutavam para decidir o futuro político e geográfico da região. O filme é uma espécie de épico e começa com Bibiana (Fernanda Montenegro) no leito de uma mansão, enquanto sua família está em guerra. Ela então vê o fantasma do Capitão Rodrigo (Thiago Lacerda), seu grande amor da juventude, que surge para conversar sobre o passado. 

Esse argumento ruim é pior ainda em cena. O filme é um longo e doloroso flashback de duas horas sobre o surgimento da família protagonista. Há uma narração que insiste em inserir abusos dramáticos, frases de efeito, descrever com muitas palavras a qualidade indecifrável que no cinema poderia ser repassado através de imagens e sons. 

Todos os atores parecem exagerar de diferentes maneiras; Thiago Lacerda é uma espécie de boêmio bandoleiro, excessivamente canastrão, indeciso entre herói e vilão, acentuado nos dois extremos. Cléo Pires é Ana Terra, avó da protagonista, interpretando emoções com os olhos, esbugalhando ou apertando, dependendo da situação; Marjorie Estiano é Bibiana jovem, parece atuar pintando as unhas, uma mocinha cujo conflito - amar um homem capaz de atrocidades - é ignorado em seu potencial dramático. 

"O tempo e o vento" prova que nem todas as experiências na vida são positivas, um filme que parece condensar todas as características negativas atribuídas ao gênero melodrama. A obra é baseada no livro "O Continente", trilogia escrita por Érico Veríssimo, composta ainda por "O Retrato" e "O Arquipélago". 


Descompasso entre intenção e execução

Hugo Viana


"R.I.P.D. - Agentes do Além" é o tipo de filme que pode gerar franquia. Mistura humor popular, efeitos especiais, crime e drama. Parece inspirado em "Homens de Preto", mudando apenas os inimigos, que representam obsessões culturais de cada época (nos anos 1990, alienígenas, atualmente, zumbis). 

No enredo, o policial Nick (Ryan Reynolds) é assassinado por seu parceiro, Hayes (Kevin Bacon). Ele é convocado pela Rest In Peace Department (Departamento Descanse em Paz), instituição que pede para homens da lei continuar o serviço depois de mortos, caçando mortos-vivos na Terra. Lá, Nick se torna parceiro de Roy (Jeff Bridges). 

A proposta é comprometida por um roteiro incapaz de criar sequências de ação, eventos dramáticos ou personagens interessantes. Há um descompasso entre intenção e execução. Os protagonistas não conseguem manter perfis; Reynolds aparenta ser o herói intempestivo, mas interpreta como adolescente mimado, enquanto Bridges, suposto xerife durão, é um tipo decadente de hippie. Boas ideias que se perdem em péssimas escolhas. 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A narração como um mecanismo imprevisível

Hugo Viana


César Aira, uma criança de seis anos, é o narrador do livro "Como me tornei freira", do escritor argentino César Aira. Ele se apresenta como uma menina, uma doce garota que interpreta com sensibilidade aguçada a realidade a sua volta, mas é vista por todos os outros como um menino, um rapazinho que sofre, entre outras situações insólitas, com a prisão do pai, que num acesso de raiva matou um vendedor de sorvete, e a visita secreta de uma anã, na ala infantil de um hospital. 

Talvez a principal característica de Aira seja a imprevisibilidade, a maneira como eventos complexos, irônicos, bizarros e levemente adocicados pelo horror manejam o destino improvável do personagem César Aira. É uma narração que se destaca pela ambiguidade, pela maneira como fatos estranhos são relatados por uma criança - além da própria condição desse narrador, uma criança que muda de gênero de acordo com a situação, transforma a realidade como mecanismo de defesa e adaptação. 

O livro vem ainda com outro romance do autor: "A costureira e o vento", que também trata a narração como uma sombria e estranhamente debochada análise social. Logo no começo do texto Aira expõe os bastidores da criação, a voz reveladora do autor-narrador: "Desta vez, quero me permitir todas as liberdades, até as mais improváveis... Embora o mais improvável, devo admitir, seja que este projeto funcione", avisa o autor, no primeiro parágrafo, tornando evidente as estruturas do romance que geralmente permanecem nas entrelinhas.

O talento do autor argentino se confirma ao passar, sem alarde, desse ponto em que o narrador se abre para o leitor, como uma confissão, para algo mais raro e indefinido - a habilidade para, através da narrativa, criar enredos sucessivos, guiados por um instigante senso de imaginação. Para o autor, o livro parece surgir do contato entre escritor e página em branco; a narração como um ato em que a surpresa e a imprevisibilidade são as ferramentas à disposição. 

Nos dois livros é possível notar como certos atributos da lógica parecem encaminhar uma sequência de possibilidades infinitas. Fatos estranhos são acionados pela banalidade do cotidiano: tomar sorvete pode levar à prisão, ao lado obscuro da humanidade. Aira parece adaptar conceitos de vanguarda, do surrealismo e do dadaísmo, para então criar histórias de estilos próprios, aventuras que subvertem expectativas prévias, enredos em que a realidade - a vida política e cultural da Argentina - é uma misteriosa fonte de referência. 


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Comédia sobre o homem contemporâneo

Hugo Viana

Foto: Mari Lopes

"Fingidores", novo livro do escritor gaúcho Rodrigo Rosp, é um testemunho sobre a existência, um depoimento sobre a complexa rede de possibilidades que acossam o homem contemporâneo. Mas esses temas densos, que sugerem certo desgaste emocional, são tratados através do humor; como Woody Allen, referência imediata, Rodrigo recorre à ironia para compreender hábitos excêntricos em relacionamentos, religião, morte. 

Mesmo presente na literatura nacional, o humor, a comédia sobre o cotidiano, é um gênero pouco explorado - um artifício que, na hierarquia da escrita ficcional, é opção que raramente surge como incentivo principal. "Acho que a comédia assumida, aquela com a intenção primeira de fazer rir, talvez apareça pouco em nossa produção, mas a ironia, o deboche e o sarcasmo estão presentes na literatura contemporânea", opina Rodrigo. 

O livro reúne histórias curtas que parecem encenar equívocos recorrentes em relacionamentos - e, para Rodrigo, nada mais apropriado do que rir do desastre. "Me parece que a maior parte dos autores com menos de 40 anos tem olhar irônico sobre o mundo, a sociedade, as relações humanas. Pode ser um retrato dos tempos atuais, quando o homem falhou, a ciência falhou, a religião falhou, o socialismo e o capitalismo não resolveram nada, e resta um olhar niilista e de pouca esperança sobre a existência - e, então, o que resta é rir disso", ressalta.

O enredo é a vida e a morte de Caio, um professor de literatura com hábito de sabotar as próprias conquistas, um tipo desastroso de apostador, que costuma sacrificar relacionamentos e a estabilidade em troca desejos e pulsões do momento. Através deste personagem, Rodrigo investiga dilemas atuais, uma perspectiva masculina e comicamente machista sobre amor, política e cultura. 

A narrativa é dividida em nove cenas, textos que parecem desafiar a classificação por gêneros - podem ser catalogados como contos, romance em nove capítulos, novela ou dramaturgia teatral. A união entre os trechos está na perspectiva de Caio sobre os acontecimentos, análises em que sobressai o humor, a visão cínica sobre eternas dúvidas existenciais e fatos ordinários do cotidiano. 

No texto, lembrando edições que reúnem peças de teatro, há apenas os diálogos, com o mínimo de intervenção de um narrador. É uma opção que coloca o diálogo como forma única de contato com os personagens: não temos acesso à construção emocional distante, acompanhamos apenas uma vaga e cômica sequência de conversas e encontros. 

"Desde o começo, minha ideia era fazer um livro de contos baseado em diálogos, em que não houvesse a necessidade de um narrador e com o mínimo possível de interferências ou marcações", lembra Rodrigo. "Na minha cabeça, a ideia não era ser uma peça de teatro, mas uma falsa peça, usando apenas a estrutura formal, mas colocando recursos como juízos e pensamentos nas rubricas. Foi aí que os contos passaram a ser chamados de cenas, e resolvi deixar a classificação do livro aberta (em nenhum lugar se fala em contos, romance, ou teatro)", ressalta o autor. 

"Escritores que usam
ironia e sarcasmo 
me interessam"

Como temos apenas diálogos, o ritmo da conversa torna-se essencial. Quais suas técnicas para diálogos? 
Gosto de escrever diálogos, e a minha preocupação com o ritmo e a fluência foi grande. É difícil falar em técnica, mas acho que dois fatores contribuíram: o gosto pela leitura de peças de teatro e pelos filmes com grandes diálogos, como produções da Hollywood dos anos 1940 e 50 - Woody Allen, Billy Wilder e Tennessee Williams. O segundo fator é o teste constante: mostrei para muita gente, li em aulas, li alto para mim mesmo. Precisei ver o texto sair do papel e ganhar a boca dos personagens. Acho que isso serviu para evitar problemas de ritmo, frases travadas.

Caio é um tanto canalha. Parece um meio para você fazer piadas sobre a existência. Como concebeu esse protagonista? 
A ideia do personagem surgiu de um conto, em que queria testar a forma com diálogos. Quando fui escrever outro conto, que, na minha cabeça, não tinha nenhuma conexão com o anterior, a voz do personagem tomou conta e vi que era o mesmo do primeiro texto. Criei contos com esse personagem, que ia ganhando características (mais ácido, mais irônico) de acordo com o contexto. Eu anotava piadas no trânsito, na rua, saindo do banho, antes de dormir. Depois tive o imenso trabalho de encaixar tudo, descartando o que parecia não ter conexão com as histórias.

Woody Allen parece referência forte. Que outros artistas citaria na construção de sua voz autoral?
O tipo de humor de Woody Allen sem dúvida é influência. Outra influência é Nelson Rodrigues, pela ironia, cinismo, a intenção de apontar a hipocrisia e a falsidade das relações. Essas são as influências que me vêm naturalmente, embora a leitura - e os filmes - de toda a vida sempre acabem ecoando. De um modo geral, escritores que fazem uso da ironia e do sarcasmo (lembrei agora também de Machado de Assis e de Nabokov) me interessam.

Saiba mais

AUTOR - Rodrigo Rosp é escritor e editor da Não Editora e da Dublinense. Lançou os livros de contos "A virgem que não conhecia Picasso" (2007) e "Fora do lugar" (2009) e organizou a antologia de contos "24 letras por segundo" (2011) - todos pela Não Editora.

"Fingidores", de Rodrigo Rosp
Não Editora, 176 páginas, R$ 29,90

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Melodrama e política em "Tabu"

Hugo Viana


Alguns filmes contemporâneos parecem procurar no passado, nos vestígios arqueológicos dos primeiros anos do cinema, a essência das imagens, o aspecto imponderável que constitui a arte cinematográfica. O filme português "Tabu" (2012), de Miguel Gomes, vencedor do Festival de Berlim, explora o gênero melodrama de coração doloroso, usando de maneira original ferramentas do cinema contemporâneo e descobertas de grandes diretores do passado.

A história é dividida em duas partes: "Paraíso Perdido" e "Paraíso". No começo há três personagens: a senhora Pilar, sua vizinha, Aurora, e a empregada desta última, Santa (as três igualmente ótimas). O segundo trecho narra a juventude de Aurora, na África, em preto e branco e sem som, apenas a narração de um dos personagens; um passado romântico e político, tratando de amores impossíveis e, de maneira indireta, da dominação colonial. Além disso, há uma abertura que, com rara beleza, apresenta o sentimento geral da história, com humor e grande coração.

É um filme que sugere nostalgia ao modelo de cinema praticado nos anos 1920, mas ao mesmo tempo consciente de métodos contemporâneos de captação e reconstrução de imagens. Gomes faz homenagem ao diretor alemão F.W. Murnau - o título é o mesmo de um longa de Murnau de 1931, além de a personagem principal ter o mesmo nome de outro filme do diretor alemão (1927), também uma sofrida história de amor.

O filme tem um humor sutil, uma espécie de comédia sobre relações humanas. Há ainda uma dimensão política curiosa: comenta discretamente a crise atual de Portugal ao mesmo tempo em que observa o passado colonialista, a dominação sobre países africanos e os modos de permanência de um sistema baseado na hierarquia da cor e no dinheiro.


O susto mora na cena ao lado

Hugo Viana


Desde "Bruxa de Blair" (1999), filme que revisou os parâmetros das narrativas de horror, que a chancela "baseado em fatos reais" parece agregar um sentimento urgente de tensão ao gênero. "Invocação do Mal", de James Wan, recorre a elementos da religião, aos mitos sobrenaturais, num enredo protagonizado por um casal que, entre os anos 1950 e 80, ficou conhecido por validar o folclore de demônios e fantasmas: Ed (Patrick Wilson) e Lorraine Warren (Vera Farmiga). 

Ele é demonólogo, conhecedor da natureza de demônios, ela é uma espécie de médium, capaz de sentir a história de ambientes e pessoas através do toque. Eles são chamados pela família Perron, no começo dos anos 1960, para encerrar um ciclo de fatos estranhos e progressivamente violentos numa casa abandonada no meio do nada. Lá, enfrentam uma história que "apenas agora", como ressalta uma cartela no início, se torna pública. 

As reações da família, composta por cinco garotas entre 8 e 14 anos, é o que movimenta o enredo. São mocinhas que encaram uma casa abandonada, que range a cada passo, e às 3h07 da madrugada, quando coisas estranhas acontecem, são acordadas por fatos assustadores. 

É um filme que mantém o espectador atento ao enredo usando recursos de surpreendente simplicidade. Quase não há intervenções digitais nas imagens; os sustos, a crescente atmosfera de tensão, o intenso envolvimento com a história está essencialmente na fotografia escura, na direção de arte, nos móveis antigos, no posicionamento dos espelhos, sugerindo um terror à espreita, e especialmente no som, na capacidade de sugerir terror ao repetir certos ruídos, sem no entanto mostrar nada em cena. 

Reflexão sobre a natureza da ambição

Hugo Viana


Existe algo nos esportes que não pode ser explicado através de palavras ou a partir da razão; o sentimento de por um breve momento presenciar acontecimentos fora de série, feitos por homens e mulheres de carne e osso, corpos que superam limites. "Rush: No Limite da Emoção", de Ron Howard, parece interessado justamente nesse desafio existencial, em reproduzir o sentimento de heroísmo e fragilidade que há em grandes feitos esportivos.

O enredo é sobre a temporada de 1976 da Fórmula 1, transformando a rivalidade histórica do piloto austríaco Niki Lauda (Daniel Brühl), que disputava o bi-campeonato, e o britânico James Hunt (Chris Hemsworth), em uma reflexão sobre a natureza da ambição e da inveja. Desde a Fórmula 3, liga inferior, os dois eram rivais; na Fórmula 1, espaço nobre do automobilismo, com os carros mais rápidos do mundo, as disputas se tornaram mais intensas.

James é alto, forte, loiro dos olhos azuis, pacote completo de exageros, arrogante, irônico, habilidoso e imprevisível no volante. Acredita que sexo é o café da manhã dos campeões. Niki é mal-humorado, grosso, incapaz de fazer amizades, tem dentes pontudos, parece um rato. Comprou com alguns milhões de dólares um lugar na Fórmula 1 e se manteve ativo na Ferrari por ser extremamente genial.

O filme sugere a sensação de risco de vida através do som, o volume exagerado dos motores, e imagens, com movimentos rápidos de câmera e montagem que privilegia ações (dos pilotos) e reações (da torcida). Ao mesmo tempo, a câmera abelhuda de Ron Howard registra sequências absolutamente desnecessárias, como o funcionamento interno dos carros, com enquadramentos que tentam a criatividade ao desafiar a gravidade, colocando estilo e uma marca autoral renitente acima do enredo.

Há um excesso de frases de para-choque, clichês absolutos da cartilha de vencedores, bobagens como "quanto mais perto da morte, mais vivo nos sentimos", "mais forte do que o medo da morte é a vontade de vencer", "para ser um campeão você precisa realmente acreditar". Um filme sobre homens brutos, que sentem muito mais do que falam, mas que recorre a um tipo óbvio de sentimentalismo.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

"Só podemos escrever sobre aquilo que nos pertence"

Hugo Viana

Foto: Renata Massetti

Em seu novo livro, "Aos 7 e aos 40", o escritor paulista João Anzanello Carrascoza recorre à memória, aos efeitos do tempo, para observar a constituição emocional de um homem. A narrativa se divide em duas partes, que se alternam: um personagem aos sete anos, uma criança que aos poucos descobre a doce complexidade existencial, e esse mesmo homem, flagrado aos 40, casado e com um filho, num cotidiano oprimido por obrigações que refletem experiências do passado. Ao observar dois pontos extremos, Carrascoza parece sugerir como nuances da rotina moldam o caráter, a maneira como a soma de amores, desafios e frustrações, com os anos, formam uma personalidade. Neste seu primeiro romance - escrito depois livros de contos e narrativas infanto-juvenis -, o autor parece aproveitar o conhecimento textual adquirido com narrativas curtas para transformar a história num testemunho poético sobre a existência. 

Você divide o livro em tópicos, a infância e vida adulta. Como chegou a essa estrutura? Parece colocar o tempo, a passagem dos anos, como aspecto essencial. 
A estrutura nasceu do processo ininterrupto de ressignificação da memória. A cada minuto, a compreensão do já vivido se modifica, se amplia ou se estreita, se ilumina ou se ensombrece, como uma pedra girando entre os vidros de um caleidoscópio. Só se pode resgatar o passado com a experiência e a solidez do presente. Daí fazer uma história em quadros, embaralhando fatos e sentimentos, para que o leitor os organizasse - já que assim é nossa existência, a ordem e a coerência, se existem, somos nós que damos. 

Chama a atenção seu estilo: um texto que parece recorrer à poesia para falar sobre um cotidiano subjetivo. Seria talvez herança do conto, a necessidade de precisão e brevidade, através de metáforas?
Procurei um registro elegíaco, capaz de relevar a preciosidade do instante em tensionamento com a nossa finitude. Procurei investir mais em quadros de sentimentos do que na narrativa de relatos sucedidos em dois períodos da vida do personagem. Este tipo de linguagem não é mesmo dominante no romance canônico, no qual há um encadeamento de ações e seus autores se apegam, em geral, a um estilo mais documental e prosaico. 

O livro narra um delicado amadurecimento existencial. Em que medida questões biográficas entraram no livro?
Me senti impelido a narrar a infância de um homem numa pequena cidade do país, na década de 1970, ainda sob a influência da vida rural, mas com o avanço dos meios de comunicação, em especial a televisão. E, em contrapartida, desejava flagrar este mesmo personagem no tempo atual, vivendo numa metrópole, representante do homem contemporâneo, fragmentado. Como todo escritor, que aciona a memória para construir a sua obra, levei em conta minhas vivências de menino e de habitante de uma grande cidade. A gente só pode escrever sobre aquilo que nos pertence.  

Assim como seus livros anteriores, está em pauta o silêncio. Como percebe a capacidade de sugerir sentimentos através da escrita?
O silêncio é constitutivo do dizer. E o dizer está encharcado de silêncio. Me interessam as camadas de não-ditos entre o rio dos ditos. Porque elas também estão dizendo, de maneira subentendida. Também me interessa o que pode ser dito por meio de outras linguagens, que não as palavras. Cada um de nós é um texto em progresso, que se faz e se refaz, e não o lemos unicamente por meio das palavras que verbalizamos ou escrevemos. Fazemos a leitura de nós mesmos e dos outros pelos gestos, pelos movimentos, pelas expressões do corpo.

A diagramação parece complementar o texto: a posição na página, a cor. Você participou deste setor de criação?
Concebi a história buscando tratamentos distintos para as duas idades do personagem. Primeira pessoa e texto blocado para o período dos sete anos. Terceira pessoa e texto com espaçamento livre para o período dos quarenta. A ideia de usar a cor verde e sobrepor os quadros da infância na parte clara das páginas, e os da maturidade na parte escura, no entanto, foram da editoria de arte da Cosac Naify. Essa sugestão contribuiu para acentuar as diferenças entre as duas vozes narrativas, mas deixando entrever partem de uma mesma raiz. A forma acolheu com sensibilidade o conteúdo. 

GÊNEROS Carrascoza é reconhecido por narrativas curtas ("O volume do silêncio") e histórias do gênero infanto-juvenil ("Aquela água toda"). 

ESTILO Nos textos do autor, geralmente são narradas situações em que afetos e desconfortos são intensificados através do silêncio. 

"Aos 7 e aos 40", de João Anzanello Carrascoza 
Cosac Naify, 224 páginas, R$ 39,90

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Quanto mais embaraçoso, melhor

Hugo Viana


É através do humor, da comédia do cotidiano, que o ilustrador carioca Bruno Maron investiga um fenômeno estranhamente comum no comportamento humano, a timidez, o medo de falar em público, os receios que envolvem conversar com estranhos. No livro "Manual de sobrevivência dos tímidos", Bruno observa como mecanismos da timidez, quando enxergados de perto, são comicamente envolventes.

É um livro que, através de textos e ilustrações, comenta o pensamento de um tímido, a rotina de quem tem como hábito fugir de eventos sociais, escapar de conversas fiadas, evitar confrontos. Não se trata de auto-ajuda, narrativas que supostamente ajudam pessoas a superar a timidez; é uma publicação que fala sobre medos comuns com dicas irônicas para suportar diferentes situações sociais.

"O humor é o intervalo entre as notas musicais, a respiração de alívio", sugere Bruno. "Eu não consigo ignorar a importância do humor na experiência humana. Analisar o humor sob critérios sisudos fornece mais combustível para a chacota", ressalta o autor.

O livro é escrito em primeira pessoa, opção que gera interessante vínculo entre autor e leitor. Bruno é o protagonista comicamente trágico de seus enredos; lembra autores como Woody Allen ou Saul Steinberg, comediantes que são alvos das próprias piadas, heróis desastrados e de bom coração - artistas que compartilharam, com humor, percepções sobre dramas universais.  "Quando você coloca em jogo sua própria carcaça na zona humorística, a vida fica muito mais leve. Se a angústia de ser tímido atingiu um ponto insustentável, é hora de rir de si mesmo", avalia.

As imagens do livro parecem inspiradas em ilustrações de natureza informativa, cartelas de segurança encontradas em aviões ou hospitais, criando um humor especial ao recuperar lembranças dessas imagens e sugerir novos e inesperados significados para os desenhos. "Fiz uma pesquisa enorme em cima desse tipo de desenho", diz Bruno. "É impressionante como esses desenhos são involuntariamente engraçados, de uma simplicidade atroz e ao mesmo com uma expressividade pitoresca", comenta o autor.

Bruno parte de uma coleção de imagens reconhecíveis, transformando elas com interferências pessoais. "Usei uma técnica mista de colagem e desenho", diz o autor. "O meu traço está ali pra deformar aquele desenho mais durão. Tentei injetar uma precariedade sem comprometer a linguagem universal daquelas cartelas de segurança", explica Bruno.

"Se a angústia de ser tímido atingiu um ponto
insustentável, é hora de rir de si mesmo"

Como surgiu a ideia para o livro? Desde o começo a proposta era unir imagem e texto?
O ano exato é 2001. Eu estava numa fase horripilante da minha vida, tinha chegado num ponto de massa crítica da timidez, tomando esporro quase diariamente num estágio completamente inadequado, de webdesign. Posso afirmar que estava rolando uma sinergia de equívocos em todos os setores da minha existência. Por sorte, dois grandes amigos também estavam passando por algo semelhante nesse território de inaptidão. Criamos um encontro sagrado num restaurante pra discutir "projetos que iam salvar a vida", pois a pressão para prosperar estava começando a deixar a gente numa sinuca. Não sei por que, mas o encontro adquiriu um tom confessional sobre coisas que cada um fazia pra evitar o contato humano. A gente simplesmente chorava de rir quando descobria que usava as mesmas táticas. Vimos que existia um arcabouço teórico pra defender a timidez, daí surgiu a ideia do manual. Os textos vieram primeiro. As imagens vieram depois, pra potencializar o texto.

Chama a atenção o humor em que você se inclui como uma espécie de protagonista trágico, como os filmes de Woody Allen. Como avalia esse humor em primeira pessoa? Que outras referências você citaria?
Woody Allen é um grande mestre, com certeza. O cara fez algumas obras-primas da autodepreciação como o "Desconstruindo Harry", meu favorito dele. Nos quadrinhos, eu diria que o Allan Sieber fez esse tipo de humor como poucos. Outro cara que me influenciou demais foi o Henry Mencken com seu maravilhoso "Livro dos Insultos". Aí é o rebaixamento da vida humana no nível mais rocambolesco possível. Até hoje nunca li nada tão engraçado quanto esse livro.

Saiba mais

ENDEREÇO Bruno mantém um site que reúne toda sua produção artística: www.brunomaron.com.

EDITORA Esta é a terceira publicação da Lote 42. Os primeiros livros da editora foram "Já matei por menos", de Juliana Cunha, e "O pintinho", de Alexandra Moraes.

SERVIÇO

"Manual de sobrevivência dos tímidos", de Bruno Maron
Lote 42, 128 páginas, R$ 39,90