quarta-feira, 28 de março de 2012

8. Os artistas esquecidos



Hugo Viana

Na entrevista abaixo Joca Reiners Terron comentou a influência de Valêncio Xavier (1933 - 2008) em seu novo romance, "Guia de ruas sem saída". Terron ressaltou como Xavier é um autor de certa forma esquecido e sem editoras com projeto de recuperar sua interessante produção literária. Esse é um problema cada vez mais comum no meio artístico contemporâneo: a necessidade de preservar a memória cultural de mestres do passado, encontrar meios adequados para arquivar de forma orgânica as obras que fundamentaram transformações importantes na maneira de pensar sobre arte. No caso de Xavier, além de circular por sebos e meios alternativos, alguns de seus livros foram reeditados pela Companhia das Letras no fim dos anos 1990, em especial "O mez da grippe e outros livros" e "Minha mãe morrendo e o menino mentindo". É realmente notável a proposta literária desse escritor paulista; seus livros parecem feitos por alguém livre de qualquer imposição de regras previamente estabelecidas, essa rara capacidade para criar algo novo num meio de expressão tão antigo e tradicional. Essa sensação é confirmada ao observar o projeto gráfico de seus livros, a intervenção nos textos e o uso criativo de imagens como integrantes da narrativa, além da incrível capacidade de escrita.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Guia para a desconstrução de um autor

Hugo Viana


A certa altura do novo livro de Joca Reiners Terron, "Guia de ruas sem saída" (Edith, 258 páginas, R$ 35), vemos imagens de um personagem em processo de desconstrução; ele tira o olho, puxa o braço e em seguida desmonta completamente em pedaços. Na página seguinte esse homem barbudo e careca está inteiro de novo, em frente ao espelho, aparentemente nada admirado com o pequeno lapso fantástico. O que Joca procura neste novo e estranho romance composto por texto e imagens (feitas por André Ducci) parece não estar na materialidade das coisas e sim nas pulsões indefinidas e nem sempre admiráveis do corpo. A história trata de dois homens em estado de suspensão; um é desenhista, criou o interessante super-herói Homem-Escada e está gradualmente perdendo contato com a realidade, enquanto o outro viaja para muito longe com a esposa em busca de cura para uma doença possivelmente terminal. Textos e imagens parecem diagnosticar um certo desgosto sobre os modos da vida contemporânea, o mundo digital e o humanismo decadente das grandes cidades, e descrever mais é sugerir encaminhamentos para uma narrativa necessariamente aberta a interpretações, que ruma meio sem querer para um pequeno e incompreendido espaço na literatura nacional, as obras "experimentais".

Algumas pessoas vêm tendo dificuldade de catalogar este livro, decidindo por fim pelo rótulo "experimental". O que acha dessa definição? Parece saída nem sempre adequada para livros que possuem linguagem diferente e narram histórias sem desenvolvimento convencional.
Essa dificuldade é resultado do velho duelo entre realismo convencional e qualquer outra tentativa de expressão narrativa. É compreensível, pois sempre é difícil nomear o que ainda não existe ou acabou de nascer. Não existem muitos manuais dedicados aos críticos como aqueles que auxiliam os pais a batizarem seus filhos. Os críticos andam órfãos da imaginação.

Ao mesmo tempo em que existe um nível talvez "experimental" na escrita, a história é essencialmente a de homens em crise, falando sobre memória, finitude, amor. Para você, o experimento na linguagem é legítimo apenas quando a história tem essa carga humana?
Exato. Você respondeu pra mim: os temas do livro são tão velhos quanto Adão e Eva. Já sua forma expressa os meus limites como escritor ou minha incapacidade. Escrevo assim porque só sei escrever assim, não tenho saída. De algum modo também expressa as indefinições dos dias de hoje. Pelo menos assim espero.

Embora trate de temas existenciais, há no todo um interessante uso de humor negro, algo como rir de tragédia absurda. Como foi o processo de escrita, essa combinação curiosa entre densidade e humor?
Os temas, como você os descreveu, são bastante pesados. Mas eu quis rir deles, e diminuir a solenidade que em geral é adotada ao se falar da morte. Já o humor negro em meu caso nem é recurso de estilo, mas traço de caráter. Quanto ao processo de composição do livro, devido à presença das imagens, lembrou a feitura de um filme. A montagem foi essencial.

Sobre os desenhos do livro, a proposta não parece ser apenas ilustrar o texto, mas também oferecer uma segunda forma de se relacionar com a história. Como veio a ideia de um livro com imagens? E como foi o contato com André Ducci?
As imagens no livro estão a serviço da narrativa. Para você fazer idéia, o roteiro era mais volumoso que o texto do livro propriamente dito. Ou seja, foi um trabalho exigente para o Ducci, que teve de traduzir minhas idéias em desenhos. A presença das imagens no livro se impôs pelo fato de o narrador principal ser um quadrinista, alguém que pensa através de imagens. Desse modo, as sequências de desenhos traduzem outros planos da história: o lembrado, o imaginado, aquilo que nunca aconteceu.

O livro tem metáforas curiosas, como a cidade chamada "Nãohorizonte", os chips que um personagem vomita, o super-herói Homem-Escada. Essas ideias não têm significação imediata, mas ao mesmo tempo falam sobre um certo estado de espírito de hoje, a internet, uma cidade (talvez São Paulo) caótica.
O Homem-Escada é uma espécie de Caronte, um super-herói cujo único poder é ajudar as pessoas a chegarem a algum lugar. Afinal, essa é a função das escadas, não? Os chips eletrônicos que o personagem vomita no livro são utilizados pelos açougueiros que roubam seus órgãos para o localizarem no caos de Nãorizonte, que pode ser São Paulo, mas também pode ser Xangai. Nós todos estamos sendo seguidos, não? Nossos celulares e computadores são as coleiras pelas quais nossos donos nos mantém acorrentados.

Você já demonstrou um certo interesse pela preservação da memória literária do Brasil, escrevendo sobre autores injustamente esquecidos. Como acha que este romance se localiza na literatura nacional? Acredita em algum grau de parentesco com os "autores malditos", como você já os chamou?
Não existe maldição maior do que a língua portuguesa. Quer dizer, existe sim: ser um autor brasileiro, escrever num país de cegos que se tornou novo rico, mas que não tem nenhum planejamento para a educação. A literatura nacional é uma piada triste na qual todos somos os piadistas e a plateia está vazia. Meu livro só existe porque antes dele existiu Valêncio Xavier, um escritor brasileiro de linguagem única e original que anda esquecido, sem nenhuma editora que recupere seus livros essenciais.

Em entrevista com Marcelino Freire [criador da Edith], ele falou que a publicação desse livro foi "uma ajuda", "um socorro" a você. Ele disse que esse livro estava atrasado, e isso era uma "longa história". Pode explicar melhor as etapas desse livro e como foi a aproximação da Edith?
É verdade. Foi simples: eu precisava fazer um livro bem maluco e do jeito que bem entendesse a tempo de cumprir o prazo estabelecido pela patrocinadora Petrobras, que me premiou com uma bolsa de criação literária. E a Edith, um coletivo de autores, me permitiu isso sem a burocracia que uma grande editora exigiria.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O efeito do tempo nas pessoas e na história

Hugo Viana


Alguns livros parecem astutamente construídos, obras que a cada página revelam algo do enredo e ao mesmo tempo conectam alguma ideia sugerida parágrafos antes. É quase um encanto particular do autor pela técnica, o orgulho por tornar necessários para o desenvolvimento da história artifícios rebuscados de narração. Parece ser o caso de Jennifer Egan em "A Visita Cruel do Tempo" (Intrínseca, 336 páginas, R$ 29,90), vencedor prêmio Pulitzer de ficção em 2011.

A autora norte-americana (que confirmou presença na edição deste ano da Flip) construiu um complexo panorama que descreve 50 anos na vida de um grupo de pessoas de São Francisco e Nova Iorque, dos anos 1970 até 2020. É uma opção cada vez mais comum, não apenas na literatura mas também no cinema, usar textos que abordam um grupo a partir de diferentes pontos de vista e por um largo período de tempo; textos que funcionam com a autonomia de contos ao mesmo tempo em que compõem um autêntico romance.

A própria origem do livro revela essa natureza ambígua, já que alguns capítulos foram inicialmente publicados individualmente como pequenas histórias em revistas como The New Yorker e Harper's Magazine. Egan já comentou em entrevistas que essa estrutura foi especialmente inspirada em duas fontes, o livro "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, e a série de TV "Os Sopranos". A notícia de que a HBO está trabalhando em uma adaptação para a TV de "A Visita Cruel do Tempo" parece coerente.

Cada capítulo trata de um determinado personagem, que depois reaparece em tópicos seguintes como coadjuvante ou figurante de luxo incentivando novos caminhos dramáticos para a história. Uma adolescente se relaciona com um homem mais velho, foge de casa com promessas discretas de aventuras em rumo ao perigo, e então na próxima história conhecemos mais sobre esse mesmo homem, seu passado na década anterior, e embora não exista uma conexão direta entre as duas histórias uma sensação constante de como o tempo atualiza ou aprofunda personalidades parece correr pelo subterrâneo.

Um tema do livro que funciona como ligação entre essas diferentes histórias é a mudança dura na indústria fonográfica, uma certa nostalgia pela maneira analógica como o negócio da música se desenvolveu nos anos 1970 e algum cinismo sobre o contexto atual de pirataria, download e compartilhamento de arquivos digitais. É esse ponto de partida para Egan desenvolver uma narrativa que cresce e passa a falar diretamente sobre a própria passagem do tempo, o efeito de décadas sobre pessoas e ideias, algo que esclarece a influência de Proust.

A escrita de Egan parece se apropriar bem dessa ideia de "livro sobre grupo de pessoas", trabalhando com eficiência não apenas esse panorama geral mas também o efeito do tempo sobre as pequenas situações do cotidiano que logo quando ocorrem passam despercebidas, momentos que não se distinguem de outros e só depois se tornam reconhecíveis na lembrança, pelas cicatrizes que deixam. Num pequeno trecho do livro, em que um problema comum da adolescência é delicadamente confrontado parece expressar a medida exata de como a autora consegue abordar sutilezas do tempo passado.

O livro parece se destacar por esse impressionante repertório de técnicas, o que sugere uma escritora ao mesmo tempo apaixonada por um manual de fórmulas e maneiras de aplicá-las à construção emocional personagens.

quinta-feira, 15 de março de 2012

7. 50 anos de Mafalda

Hugo Viana



É possível que a personagem Mafalda comentasse com ironia delicada o contexto de sua criação, no dia 15 de março de 1962, há 50 anos, como peça de uma campanha publicitária para máquinas de lavar que nunca foi lançada. Na época, seu criador, o cartunista Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido pelo apelido, Quino, trabalhava com publicidade. Foi pouco mais de dois anos depois, em setembro de 1964, que Mafalda estreou na revista semanal Primera Plana. A tirinha durou até 1973, terminando, segundo o próprio autor, por "esgotamento de ideias". Nesse período de quase 10 anos Mafalda serviu como meio para crítica sensível não apenas do contexto político e econômico da Argentina, mas também da evolução social, dos novos tipos de relações formadas entre as pessoas e o mundo, uma mistura incrível entre pessimismo e humanismo de certa forma universal. Quino criou habilmente metáforas para falar sobre assuntos que se encarados de frente poderiam ser censurados pelo sistema da época, personagens enterrados na burocracia de seus erros, a influência muitas vezes absurda da hierarquia social em questões pequenas do cotidiano, assuntos tratados por Quino com um tipo delicado e criticamente desperto de inteligência. No Brasil, um dos bons lançamentos com Mafalda é "10 Anos com Mafalda" (Martins Fontes, 2010).

terça-feira, 13 de março de 2012

Todos os dias da biografia de Andy Warhol

Hugo Viana



É um pouco irônico que o homem que criou a frase "No futuro todos terão 15 minutos de fama" permaneça justamente como personagem tão importante e lembrado na história da arte. Andy Warhol (1928 - 1987) morreu há 25 e como forma de pensar sobre a data a editora L&PM lança três livros: a biografia "Andy Warhol" (240 páginas, R$ 18), de Mériam Korichi, e dois volumes dos "Diários de Andy Warhol" (1088 páginas, R$ 58), editado por Pat Hackett.

Warhol é normalmente reconhecido como expoente da Pop art, movimento que provocou a tradição da arte clássica ao trabalhar com novos signos visuais, imagens com origem em meios de expressão na época não tão nobres como publicidade e quadrinhos. Entre os projetos mais elogiados de Warhol estão exemplos desse tipo desafiador de obra de arte, a reprodução de imagens da atriz Marylin Monroe e as latas de sopa Campbell.

Além de seu trabalho como artista plástico, Warhol também ficou conhecido por seus filmes, nos anos 1960, quando existia em Nova Iorque um interessante movimento de cinema independente. Eram curtas, médias e longas-metragens de baixo orçamento, filmados com película levemente estragada e com métodos alternativos de revelação - aspectos que davam texturas especiais para as imagens -, entre os quais é possível destacar "Blow Job" (1964) e "Vinyl" (1965).

Foi nesse período que se tornou conhecido o local "A Fábrica", espaço administrado por Warhol onde circulavam livremente artistas, drogas, sexo e vagabundos. Nesse estúdio/set de filmagem Warhol conheceu Pat Hackett, sua jovem secretária, que anos mais tarde se tornaria a responsável pela edição dos diários relançados agora pela L&PM (publicados originalmente no fim dos anos 1980).

Na introdução do primeiro volume Pat escreve um interessante perfil do artista, revelando a personalidade ao mesmo tempo efusiva e polida de Warhol, destacando aspectos importantes de sua biografia, como a criação da revista "Interview" e quando ele foi baleado e quase morto por uma mulher que tinha atuado como figurante num de seus filmes.

Os diários são divididos em dias, com pequenos textos falando sobre o que aconteceu em determinada data, citando grandes estrelas e anônimos notáveis. Alguns trechos são maiores e se estendem por duas ou três páginas, enquanto outros se resumem a pequenas frases (como o relato de 11 de março de 1978: "Eu tinha uma porção de convites mas decidi ficar em casa pintando minhas sobrancelhas").

Os dois livros (o primeiro volume aborda de 1976 a 1981, enquanto o segundo de 1982 a 1987) parecem descrever com exatidão o pensamento de Warhol, suas manias e em especial seu fascínio por um tipo decadente de glamour, sempre no tom de confissão em primeira pessoa. É uma ótima oportunidade de avaliar a trajetória de Warhol a partir das ideias do próprio artista.

segunda-feira, 5 de março de 2012

A expressividade literária de Leonard Cohen

Hugo Viana



A carreira de Leonard Cohen é (merecidamente) reverenciada por seus discos, testamentos quase sempre melancólicos sobre a perda e o possível desapego, mas sua trajetória artística inclui também experiências na literatura, obras que são curiosamente pouco conhecidas.

A editora Cosac Naify lançou neste mês, pouco depois da divulgação do novo disco de Cohen, seu romance de estreia, "A Brincadeira Favorita" (R$ 39,90, 248 páginas), escrito originalmente em 1959, mas publicado apenas em 1963. Três anos depois ele redigiu seu segundo livro, "Adoráveis Perdedores" (ainda inédito no Brasil), encerrado sua curta participação no gênero romance.

O protagonista do livro é Lawrence Breavman, personagem que possui certas semelhanças com Cohen, o que sugere conexões sinuosas entre a criação ficcional e a realidade biográfica. Assim como o cantor e compositor, Breavman nasceu no Canadá, vem de família de judeus, enxerga criticamente a construção social ao seu redor e as imposições de sua crença religiosa. Como numa canção de Cohen, Breavman parece movido pelo amor às mulheres, a dor do desencontro e a procura permanente por algo especial.

A obra pode ser descrita como "livro de geração", o tipo de publicação que fala sobre anseios de uma comunidade através da biografia de um personagem. Essa ideia está no começo do livro, uma primeira página maravilhosamente breve e bem humorada sobre a juventude, com a descrição de ferimentos de guerra, orelhas com furos infeccionados, cicatrizes geradas por acidentes caseiros - supostas imperfeições físicas apresentadas pelo narrador ainda desconhecido como "medalhas", "segredos a serem revelados". "O difícil é ter espinha", diz Breavman, em seguida.

Aos poucos os questionamentos de Lawrence se tornam menos pueris e passam a incluir dúvidas existenciais sobre a legitimidade da religião numa época marcada por consequências da guerra (anos 1950 e 60) e a instabilidade social gerada a partir da evolução econômica dos subúrbios canadenses. A certa altura Lawrence e seu melhor amigo vão a uma festa popular e a tensão que surge quando alguns descobrem a origem judaica (e financeiramente saudável) dos amigos situa esse desconforto, estabelecendo distinções sociais a partir da linguagem e das atitudes.

Dividido em quatro partes, o livro narra mais ou menos linearmente a vida de Breavman, destacando aspectos que aqueles familiares às músicas de Cohen talvez possam reconhecer - não tanto pela repetição de situações, mas pela sensação de continuidade de estilo. É realmente notável o que Cohen é capaz de criar usando poucas palavras, sendo interessante perceber no texto uma certa poesia musical, talvez a herança de quem é habituado a narrar através da estrutura de canções e ainda assim parece capaz de transpor sem perdas sua expressividade para uma narrativa longa.