quinta-feira, 27 de outubro de 2011

As propostas urbanas de Calvino

Hugo Viana



Alguns livros permanecem nas estantes e na história da literatura pela força do hábito, por uma repetição coletiva - e muitas vezes justa - que são obras "clássicas", e por isso merecem continuar ciclos de leitura em novas gerações. Não é bem o caso de "A Especulação Imobiliária" (Companhia das Letras, 120 páginas, R$ 32), escrito por Italo Calvino (1923-1985), lançado originalmente em 1957.

O livro é geralmente tratado como uma obra pequena da fase inicial de Calvino, um período marcado por sensações urbanas, neorrealista talvez, dentro de uma bibliografia com muitos "clássicos" pertencentes ao gênero fábula. Talvez por isso "A Especulação Imobiliária" seja avaliado apressadamente como uma leitura menos necessária entre tantas de Calvino, quando realmente não é o caso.

Talvez percebendo essa recepção, é o próprio Calvino que ressalta, na orelha do livro, num trecho retirado de uma entrevista: "De todas as histórias que escrevi, sinto que 'A Especulação Imobiliária' é aquela em que consegui dizer mais coisas; é também a que mais se aproxima de um romance, ainda que breve".

O livro parece em plena conexão com o tempo em que foi escrito, uma ligação profunda com o período que veio depois da Segunda Guerra, nos anos 1950. Especialmente por capturar uma certa tensão da época na Itália, com o ressurgimento econômico do país através do capital estrangeiro, e as mudanças que isso causou na sociedade.

O personagem principal é Quinto, um intelectual de dignidade distraída, nada interessado na abstração do pensamento, voltado em grande parte para afazeres de menor importância. Ele mora no norte, onde há maior conforto financeiro, e raramente visita sua mãe, no sul, numa pequena cidade chamada por Calvino apenas como ***, na Riviera italiana. Quinto tem um irmão, Ampelio, professor de química, e esses três parecem a caricatura rápida e bem humorada de uma família tipicamente italiana de reações muitas vezes exageradas.

Numa dessas idas à cidade natal, Quinto percebe que as regiões verdes aos poucos estão desaparecendo; a bela paisagem natural que Quinto a cada viagem enxergava pela janela do trem passa por transformações feitas pelo homem. Isso ocorre por causa da febre do cimento, o crescimento urbano, o aumento do turismo, a construção cada vez mais frequente de prédios de seis ou oito andares. Descobre também que a mãe está sendo pressionada para vender parte de seu terreno para poder pagar os novos impostos regulamentados após a guerra.

O livro é uma curiosa sátira sobre costumes adquiridos em novos tempos, as formas matreiras de reagir às transformações, a distribuição geográfica da renda, a mudança entre uma burguesia conservadora e um tanto mesquinha para um novo modelo de empresário, representado em Caisotti, homem que não tem cabelo ou escrúpulos. "A triste invasão do cimento tinha a cara achatada e informe do novo homem Caisotti", escreve Calvino.

O material bruto do livro trata de assuntos que em geral deixam pessoas carecas antes do tempo, notas promissórias, burocracia bancária, cláusulas miúdas de contratos, réplicas perfeitas de coisas que asseguram angústias para gente comum. Os personagens são engenheiros, tabeliães, advogados, pessoas de boa educação e ética questionável que direcionam o país para um novo caminho, e Calvino parece comentar através da comédia que esta nova sociedade tem algo de pesadelo.

domingo, 23 de outubro de 2011

A história da Argentina segundo Ricardo Piglia

Hugo Viana



O texto do escritor argentino Ricardo Piglia, 61 anos, vem muitas vezes acompanhado de uma noção ampla de história, um conhecimento (um tanto irônico) sobre as mudanças políticas e econômicas de seu país. Seu novo livro é "Alvo Noturno" (Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 45), em que esses temas aparecem abertamente.

A história se passa nos anos 1970, época em que a Argentina vivia sob ditadura, e ao invés de observar o centro desse sistema de dominação, em Buenos Aires, a briga urbana muitas vezes sangrenta entre operários e militares, Piglia escreve sobre os pampas argentinos, as regiões do interior. Ele parece falar à distância sobre negociações entre política e capital, e como esses temas que repercutem hoje em dia.

Assim como "Dinheiro Queimado", este é na superfície um livro de gênero, um romance de detetive, descrevendo as circunstâncias de um crime seguido por uma investigação policial. Tem um corpo morto em um quarto de hotel; é Tony Duran, porto-riquenho que veio dos Estados Unidos para apostar alto numa pequena cidade do interior. É um povoado onde vivem pessoas desconfiadas, uma região pouco desenvolvida sob qualquer aspecto, onde os que possuem ideais de contestação ou sabedoria popular são encaminhados para manicômios.

O responsável pela investigação é o comissário Croce, um policial do passado, peça antiga e desvalorizada nos tempos modernos, que resolve crimes com tremenda precisão de raciocínio, sem recorrer a métodos científicos. Ele pensa em frases curtas que surgem meio sem querer durante caminhadas, e elas parecem representar uma espécie cruel de verdade sobre não apenas a investigação, mas a situação social de seu país.

Aos poucos a investigação de Croce sugere que esse assassinato esconde mais do que aparenta, e provavelmente envolve interesses comerciais e políticos, vontades de pessoas com poder. Tony se relacionava com a família Belladona, cujo patriarca era um rico fazendeiro. Seus dois filhos homens se afastaram e tentaram entrar no ramo industrial, negociando com norte-americanos, enquanto suas filhas gêmeas de pernas longas eram objetos de desejo, garotas de espírito sexual livre numa época em que calça jeans era artigo proibido para mulheres.

Esses personagens parecem representar uma tensão crescente da Argentina nos anos 1970, símbolos de uma época fundadora de problemas sociais que persistem. Uma versão em escala reduzida da relação hierárquica entre trabalhadores e donos de terra, o panorama periférico da ditadura e da submissão diante de um poder maior.

Piglia trabalha uma interessante relação entre ficção, história e teoria literária (em especial a partir das mudanças de rumo na narração proposta na parte final), e tudo parece conectado num tipo de tese sobre o estado das coisas no capitalismo contemporâneo, uma arqueologia social misturada à literatura.

No meio do livro, durante um de seus passeios noturnos, Croce, dirigindo um automóvel, quase atropela uma lebre, pequeno animal perdido no meio do mato, assustado pela luz do farol do carro em alta velocidade. Essa imagem parece de algum modo representar o argumento de Piglia, um comentário amargo sobre a história de seu país e pessoas sem defesas contra um mal que vem a 100 km por hora.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A música como retrato social da América do Sul

Hugo Viana*



BELO HORIZONTE (MG) - A mostra internacional do Cine BH vem exibindo desde o primeiro dia uma interessante seleção de longas-metragens da América do Sul, filmes que infelizmente com raras exceções circulam apenas em festivais ou mostras especiais, dificilmente chegando a entrar em cartaz no circuito comercial. Na segunda-feira foram projetados “A Viagem do Vento” (Colômbia, 2009), de Ciro Garcia, e “Hiroshima - Um Musical Silencioso” (Uruguai, 2009), de Pablo Stoll.

Os filmes foram programados no mesmo cinema, o Cine Santa Tereza, em sequência, e isso parece sugerir conexões, tornar evidentes reincidências, em especial algumas notas sobre a importância da música e da sonoridade das palavras.

Ciro criou uma história profundamente inspirada na cultura popular colombiana, sendo a jornada do protagonista, o músico Ignacio (Marciano Martínez), uma peregrinação um tanto simbólica e mística por povoados em busca do mestre que o ensinou a tocar acordeão. Lembra um pouco o que os irmãos Coen fizeram com a história de Ulisses em “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”, dessa vez mexendo com mitos de uma cultura periférica.

Em cada cidade Ignacio enfrenta algum tipo de desafio, um pouco como um filme de faroeste, mas em vez de armas há apenas o uso da música feita ao vivo e muitas vezes no improviso. Sérgio Leone parece inspiração distante, em especial numa excelente cena de duelo com facões com trilha ao vivo de Ignacio, uma marcha lúgubre.

A música parece comentar algo maior, uma espécie de respeito pela tradição, pelos antepassados, por um tempo destinado à extinção pela força maior das regiões urbanas. Todos os rostos filmados em close ou em imagens coletivas parecem pontos de exclamação nessa ideia de um tempo passado, um belo e silencioso comentário sobre heranças e tradições.

É também silencioso o filme de Pablo Stoll, mas a ausência de palavras em “Hiroshima” segue outra rota, um caminho para o humor involuntário de uma geração sem rumo. Pablo, reconhecido por seus dois longas anteriores, “25 Watts” (2001) e “Whisky” (2004), volta a falar, assim como em seu primeiro projeto, da juventude, da rotina nem sempre excitante dos jovens adultos de Montevidéu.

O protagonista é um cantor que já na primeira cena pede silêncio para seu amigo, e então o filme o respeita e segue até a última imagem como uma obra sem falas, apenas sons de ambientes, usando a cada diálogo as cartelas do cinema mudo. Vem daí algumas boas piadas, com essas cartelas ganhando autonomia e sendo motivo para humor.

Um perigo real para um filme que pretende relacionar o vazio de uma geração é ser, também, essencialmente vazio, algo sugerido na primeira cena, em que acompanhamos passo a passo o protagonista caminhando pelas ruas ouvindo disc-man (isso mesmo). Mas depois o filme cresce, recorre ao estilo raro de encenação de Jacques Tati, um bom humor silencioso baseado em cenas banais da rotina.

É um tipo de filme que aparenta não ter pretensões, sendo formado basicamente por uma junção aleatória de pequenas cenas sem grande envolvimento dramático. O protagonista vai até o mercado, compra e vende qualquer coisa, e volta para casa; sai mais tarde, encontra a namorada, e depois um amigo. O que eleva o filme é um ótimo senso de humor urbano, ressaltado por técnicas criativas de narração.

*Viajou a convite do festival

As diferentes imagens do cinema

Hugo Viana*



BELO HORIZONTE (MG) - Algo interessante que acontece em festivais de cinema é a oportunidade de ver em sequência filmes de naturezas distintas, e nesse encontro perceber uma estranha relação entre eles, ligações complementares ou opostas que surgem apenas no contexto do festival. No terceiro dia do Cine BH foram exibidos os longas internacionais “Post Mortem” (Chile, 2010), de Pablo Larraín, e “Caminho para o Nada” (EUA, 2010), de Monte Hellman.

Larraín é um realizador jovem, 35 anos, e agora em seu terceiro longa-metragem parece interessado em fantasmas do passado, aspectos talvez de sua formação no Chile. O filme é sobre um homem comum cujo trabalho é anotar descrições médicas durante autópsias. A história se passa em 1973, pouco antes do golpe militar que derrubou Allende e iniciou a ditadura de Pinochet.

Não é um filme diretamente político, a narrativa é guiada por sensações do protagonista, homem frio e de poucas palavras que não tem preocupações relacionadas com o bem coletivo das pessoas. Ele apenas observa apaixonado a vizinha, uma dançarina de bares noturnos, enquanto o tema “opressão” surge naturalmente de acordo com acontecimentos históricos, sendo uma das cenas mais fortes a descrição detalhada da morte de Allende.

As imagens possuem uma interessante textura anos 1970, e isso parece ser a maior força do filme, a capacidade de simular uma época não apenas pelas roupas, carros e penteados, mas através da imagem em 35mm. É uma elaborada concepção visual que em alguns momentos sugere que o filme foi feito nos anos 1970 e encontrado por acaso em 2010.

Hellman, ao contrário, é um diretor experiente, 79 anos. Ele teve participação ativa no momento histórico “Nova Hollywood”, nos anos 1970, fazendo filmes brutos e inteligentes sobre carros em alta velocidade e violência moral. Um dos mais conhecidos é “Corrida Sem Fim” (1971).

Neste novo longa-metragem, Hellman filma com câmera digital, uma revisão moderna do passado do cinema. Já na primeira cena vemos um dvd com um nome escrito com caneta, “Road to Nowhere” (título original do filme), e temos aí a familiaridade de um filme pequeno, quase amador, no sentido da ausência de um tratamento rigoroso da imagem, caso do filme de Larraín.

Enquanto “Post Mortem” se esforça meticulosamente em recriar sensações do passado, temos aqui o caso de um veterano se adequando a ferramentas de última geração, e a sensação visual é a de filmes ruins para a TV, com aquele tipo peculiar de iluminação sem nuances e atuações precárias, aspectos que em alguma medida reforçam o tema central do filme.

A história é sobre o próprio cinema, um filme dentro do filme, em que um diretor fictício serve como fantoche para Hellman falar sobre a indústria e o ato de criar histórias ficcionais a partir do mundo real. Há uma complicada trama sobre assassinato, corrupção e clima policial, mas nada disso realmente importa, o interesse parece ser como o cinema se apropria desses casos reais e cria algo totalmente diferente.

Parece um filme instigante do ponto de vista de um autor explorando novos caminhos, embora o uso de técnicas que podemos chamar de “amadoras”, tanto na forma de atuar quanto na produção de imagens digitais, pareça fechar o filme num tipo difícil de fruição.

*Viagem a convite do festival


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Teses sobre maldade e prostituição

Hugo Viana*



BELO HORIZONTE (MG) - A Mostra Cine BH chega neste ano à quinta edição e fortalece um interessante perfil, apresentando-se como um festival que debate o mercado do cinema, em especial assuntos que poucas vezes chegam ao grande público: produção, difusão e detalhes de políticas de incentivo ao cinema.

Há também curtas e longas-metragens, e embora o Cine BH pareça prejudicado por sua colocação no calendário, sendo um dos últimos festivais do ano, trazendo por isso filmes que já foram exibidos em outros eventos, há um importante direcionamento, ressaltando filmes nacionais de realizadores jovens e longas internacionais que passaram por festivais como Cannes ou Veneza.

Dois filmes internacionais foram exibidos no segundo dia do festival, no sábado à noite, no Cine Santa Tereza. “As Más Intenções” (Peru, 2011), primeiro longa-metragem de Rosario Garcia-Montero, e “L'Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância” (França, 2011), de Bertrand Bonello, que concorreu à Palma de Ouro de Cannes deste ano.

O trabalho de Rosário trata de histórias mínimas dentro de um contexto político que nunca é detalhado no filme: os anos 1980 no Peru, período de baixa econômica e atos descritos como “terroristas”. Há um cuidado em deixar a política fora do quadro, evidente apenas como uma permanência opressora que move os personagens.

Dentro desse panorama social está o olhar infantil de Cayetana, menina jovem e bastante mimada que, quando a mãe regressa de viagem depois de alguns anos, mostra sinais claros e quase sempre cruéis de maldade. É um retrato que parece sugerir a semente do mal na juventude de famílias ricas cercadas por trabalhadores pobres de pele escura.

São algumas boas ideias que não alcançam algo maior por certas deficiências técnicas e, mais para o fim, de roteiro. Há um bom tratamento rústico da idéia de “cartão postal de terceiro mundo”, que em seguida desaparece para dar espaço para a imaginação de Cayetana, embora o filme pareça não ter orçamento para isso, um pouco como uma versão com menos dinheiro de “Labirinto do Fauno”.

O filme de Bertrand, que tem estreia nacional marcada para o dia 21 deste mês, ao contrário, mostra logo nas primeiras imagens um forte poder de fascínio. Há uma incrível organização visual, um pouco como pinturas de época, do fim do século 19, narrando a história de um grupo de prostitutas francesas. Bertrand parece ter uma curiosidade voyeur sobre o cotidiano delas, criando uma narrativa dividida entre técnicas de limpeza e de paciência para aguentar perversões sexuais e pequenos momentos da rotina.

Uma delas é desfigurada por um homem durante algo que parece um pesadelo sexual. Ela fica com cicatrizes no rosto, simulando um sorriso constante, e o filme nos mostra como aconteceu, com algum prazer. A plateia vira o rosto, indício discreto de cinema de horror. Outras cenas têm também carga pesada desse submundo do sexo, uma violência que não é apenas física, sendo talvez por isso uma degradação ainda mais difícil de acompanhar sem reagir.

Não há qualquer aprofundamento nesses personagens masculinos, um pouco como sombras que surgem e vão embora apenas para satisfazer desejos sexuais. A permanência é a das prostitutas, tratadas entre si talvez como modo de sobrevivência com delicadeza sem exageros, e essas parecem as melhores cenas do filme.

Mais para o fim entra um desagradável discurso moral que parece apontar uma tese sobre o estado das coisas na França contemporânea, fechando o filme dentro de uma única forma de compreensão.

*Viagem a convite do festival