domingo, 31 de julho de 2011

A desilusão política de George Orwell

Hugo Viana



George Orwell (1903-1950) é facilmente catalogado como escritor político, autor interessado na pesquisa dos sistemas de dominação, nas estratégias das instituições do poder para submissão em massa.

Embora seja reconhecido na história da literatura pelas ficções "A Revolução dos Bichos" e "1984", Orwell também teve criação exemplar no gênero ensaio, textos livres escritos em primeira pessoa sobre pequenas situações do cotidiano. A Companhia das Letras tem como projeto editar três compilações do autor: a primeira foi lançada em 2005, "Dentro da Baleia", e a segunda, publicada em junho, se chama "Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios" (416 páginas, R$ 44).

A primeira parte do livro é dedicada a ensaios sobre vagabundos de Londres, iniciando a investigação política de classes, costumes e tradições na Inglaterra no fim dos anos 1920 e começo dos 30 que Orwell continuou em "O Caminho para Wigan Pier" e "Na Pior em Paris e Londres" (também traduzidos pela Companhia das Letras).

São relatos impressionistas, feitos num período de conflitos sociais e ideológicos, depois da Primeira Guerra Mundial, com a Inglaterra economicamente enfraquecida, durante a ascensão de sistemas totalitários. Sobre os vagabundos, Orwell escreve, com algo da ironia de Kafka: "Mendigar é proibido por lei na Inglaterra. É um círculo vicioso: se ele não mendiga, morre de fome; se mendiga, infringe a lei".

Para falar sobre como vivem e morrem os pobres, Orwell estabeleceu uma espécie de ética pessoal do registro. Abandonou periodicamente o conforto financeiro e passou a experimentar o cotidiano como alguém que não tem emprego nem tampouco privilégio de banheiro limpo, um exemplo admirável de artista que, para falar a respeito dos outros, procura antes vivenciar o cotidiano deles. Orwell visitou prisões, hospitais e albergues (instalações que forneciam quarto, pão e chá), e através da descrição curta sugere ironicamente que todos esses lugares são mais ou menos desagradavelmente a mesma coisa.

São textos que parecem constantemente falar para o futuro, um pouco como documentos históricos de uma época passada, registros de denúncia a favor de quem não tem voz política e vive sob regime de dominação. Ao mesmo tempo, a escrita de Orwell não é interessante apenas na instância da descrição, é também carregada de um certo lirismo de escritor, produto de alguém habilidoso com palavras para criar metáforas politicamente sensíveis. "Sujávamos o cenário, como latas de sardinha e sacos de papel na praia", comenta Orwell, numa passagem.

O panorama de assuntos abordados por Orwell é amplo, ele fala também sobre o jornalismo cultural no texto "Em Defesa do Romance" (1936), especialmente sobre o vazio da crítica literária, enfatizando a interferência da publicidade na prática do julgamento, debate que permanece atual no panorama de crítica cultural. Ele escreve: "Cada vez mais os canais de produção estão sob o controle de burocratas, cujo objetivo é destruir o artista ou, ao menos, castrá-lo". Orwell também comenta o potencial do rádio para a comunicação (e para a educação) em massa, debatendo ideias que estavam em processo de amadurecimento no campo da teoria da comunicação.

Em alguns momentos a amplitude do debate proposto pelo autor parece não caber no tamanho de uma frase, ou mesmo no fôlego extra de um ensaio, o que torna em alguns textos o argumento de Orwell algo generalista ou decidido demais sobre o complexo estado das coisas.

No livro, prevalece o perfil de Orwell como um tipo de comunista desiludido pelo andamento da história, intelectual articulador de uma honestidade nada romântica, autor que pensa em cada frase sobre formas políticas de engajamento social.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Raízes da criação literária

Hugo Viana



A crítica cultural pode ser em alguns casos um tipo rudimentar de transmissão de conhecimento, uma certa educação sentimental sobre a expressão artística. James Wood, crítico literário britânico, ensaísta e escritor casual, representa a possibilidade didática da crítica, o ideal de ensino por meio de análises, algo proposto em seu título ambicioso "Como Funciona a Ficção" (Cosac Naify, 232 páginas, R$ 49).

É uma publicação em que Wood investiga a engenharia da escrita mais ou menos como se estudasse um mecanismo que pode ou não funcionar. Ele fala sobre estratégias e subversões da narrativa textual, cita exemplos de cânones da literatura, comenta casos menores de frases que dão defeito, e então nos aproximamos do texto ideal, da escrita que, no julgamento do autor, funciona sem restrições.

James Wood é encarado com certo desprezo por fazer o que a crítica deve em geral tentar, escolher lados, declarar favoritos. Tudo na retórica de Wood é bem explicado e faz certo sentido, embora outro autor possa naturalmente revirar os parâmetros apresentados e utilizar ferramentas de outra natureza, e com isso meio que provar o oposto. O interesse é realmente ver um pensamento autêntico formado e aos poucos desenvolvido, e nisso Wood é certamente exemplar.

Dessa forma o livro também é uma espécie de dedicatória para escritores que o autor claramente admira, especialmente Henry James e Gustave Flaubert, e destruição intelectual da oposição literária que não segue os padrões que Wood desenvolve, como o norte-americano John Updike.

Wood parte de observações mais gerais sobre aspectos intrínsecos à construção do romance para em seguida elevar sua reflexão para um terreno um tanto mais árido de discussão, a respeito da autoria e da formação de um estilo. É um texto que mistura um pouco de teoria literária com observações pessoais num mesmo parágrafo, tudo aparentemente bem conectado.

O livro se divide em dez tópicos, em que o autor desenvolve seu ponto de vista sobre o papel do narrador em diferentes situações (em primeira ou terceira pessoa, além dos casos especiais, dos escritores que trapaceiam regras básicas e investigam novas possibilidades de narração), aborda a função estilística dos detalhes e relata uma breve história da consciência, do diálogo e da própria linguagem.

Para legitimar sua argumentação, Wood recorre a exemplos da própria literatura. Quando quer falar sobre como um detalhe na forma de frase curta pode modificar a forma como entendermos um personagem, por exemplo, o autor cita o ensaio "Um Enforcamento", de George Orwell. No texto, Orwell observa um condenado que se dirige ao cadafalso, e no caminho desvia de uma poça de água. Para Wood, isso representa um tipo de mistério da vida, um fato que dentro do contexto não faz sentido aparente (o personagem a caminho da morte não quer sujar os pés) ou talvez irrelevante no sentido literário ou narrativo, mas seu uso causa um curioso efeito realista.

Talvez seja um tanto redutor catalogar a proposta de Wood como direcionada apenas a escritores ou aprendizes do ofício. Sua argumentação lúcida sugere a identidade de um professor cuja escrita indica maneiras interessantes de ler ou se relacionar com um livro, e meio que naturalmente incita a vontade de conhecer os autores analisados. Wood demonstra um domínio amplo sobre o projeto literário de cânones e operários diletantes ou irregulares, relatando um panorama amplo de referências, uma erudição claramente apaixonada pela escrita, sempre a favor da busca pelo instante sublime na literatura.

domingo, 24 de julho de 2011

Frases da Flip 2011

"Estava dormindo até agora"
João Ubaldo Ribeiro, durante a coletiva de imprensa, quando perguntado sobre o que ele achava da Flip até então

"I would not read a book on the computer anymore than I would fuck a cab in the ass"
James Ellroy

"Agradeçam a Deus por vocês não viverem no Brasil que a América considera Brasil. Eles associam este País à mulher pelada, esquadrões da morte de extrema direita, florestas, 40º de temperatura, sem ar condicionado, esquadrões da morte de extrema direita, música salsa, mulheres de biquíni, sexo indiscriminado e esquadrões da morte de extrema direita"
James Ellroy

"Wasn’t she bad?"
James Ellroy, sobre a participação de Kate Winslet em Mildred Pierce

"Há um clichê teórico que diz que devemos escrever sobre o que conhecemos, um conselho talvez norte-americano. É uma péssima ideia, acho que a escrita vem do espanto ou da ignorância. Nos apaixonamos pelo desconhecido, então surge a necessidade da pesquisa sobre algo que não entendemos e queremos conhecer"
Andrés Neuman

"Preciso antes de debater esclarecer uma coisa. Venho da Hungria, onde as pessoas vivem, dormem, comem, bebem, escrevem e também falam em húngaro. Entretanto aqui estou falando em alemão, por questões práticas de tradução. Mas isso tem sérias consequências, porque não consigo dizer exatamente o que penso, e sim o que posso ou poderia dizer"
Péter Esterházy, em sua fala de abertura na Flip, sobre a linguagem

sábado, 23 de julho de 2011

Desenhos da colônia penal de Kafka

Hugo Viana



O autor tcheco Franz Kafka parece ainda assombrar gerações de escritores, permanecendo na história da literatura como um especialista em falar sobre o cotidiano nos termos do pesadelo. Seus livros transformam a rotina em crônicas do horror, em que forças externas parecem impedir qualquer sugestão de humanidade. A obra de Kafka é inspiração para a história em quadrinho "Na Colônia Penal" (Companhia das Letras, 56 páginas, R$ 33), baseada num conto com mesmo nome do autor, com roteiro de Sylvain Ricard e desenhos de Maël.

A história narra uma breve conversa entre um viajante e um oficial da justiça que está prestes a comandar a execução de um prisioneiro com uma máquina terrível de tortura. O prisioneiro não sabe o crime que cometeu, também não tem direito a se defender em julgamento, mas de qualquer forma é considerado culpado por um sistema que não esclarece suas leis, e é condenado a uma morte dolorosa, um exemplo da ironia de Kafka sobre o funcionamento das instituições de poder.

"É um aparelho singular", diz o oficial, na primeira imagem, fascinado pelo potencial destruidor desse objeto de guerra. Mais ou menos metade da HQ é dedicada à descrição detalhada dos horrores causados por esse instrumento de tortura, explicando todo o processo de morte como se falasse sobre o funcionamento de uma peça mecânica qualquer, num tom mórbido de pouca ou nenhuma humanidade.

Parece curioso transformar em imagens a escrita de Kafka, em que essa sensação de pesadelo parece vir justamente pela ambiguidade das palavras. Em "A Metamorfose", livro que também foi adaptado para uma HQ, o protagonista Gregor Samsa acorda numa certa manhã, depois de um sonho agitado, e percebe que se transformou "numa espécie monstruosa de inseto", "com um dorso duro e inúmeras patas". Essas frases são fortes o suficiente para inquietação imediata, mas ver numa HQ simplesmente a imagem de uma barata assustada parece de alguma forma diminuir o texto original, ou ao menos provocar sensações de outras naturezas, distantes das perturbações originais.

Algo parecido ocorre em "Na Colônia Penal". Boa parte da HQ é composta por diálogos, sendo basicamente uma sequência de quadrinhos preenchidos unicamente por personagens falando, um pouco como se a imagem fosse menor diante da palavra. Essa representação visual meio que desmistifica o grande poder do texto original, mostrando em palavras o que antes era um terror invisível, um produto que de alguma forma dimensiona ambições de homens inebriados pelo poder.

A história é ambientada em um local não definido, um território desconhecido, mas ao mesmo tempo vagamente familiar, talvez uma síntese histórica de situações de dominação do homem pelo homem. A premissa parece ser perfeitamente adaptável para vários momentos da história mundial, sendo as guerras, as ditaduras e o poder da burocracia sobre o indivíduo comum referências naturais.

Contos de fama e anonimato

Hugo Viana



Foi o artista Andy Warhol que disse, em 1968, que "no futuro, todos serão famosos por 15 minutos". Em tempos mais ou menos recentes, a tecnologia parece favorecer essa oportunidade de fama repentina e sem tanto critério, de tornar pessoas visíveis aos sentidos dos outros. Parece ser um pouco essa a tese que o autor alemão Daniel Kehlmann defende no livro "Fama: Um Romance em Nove Historias" (Companhia das Letras, 160 páginas, R$ 39).

O livro é composto por nove histórias independentes que se conectam por pequenos detalhes. No primeiro conto, "Vozes", um trabalhador chamado Ebling compra um celular e por algum motivo passa a receber ligações em busca de um tal Ralf. Quem liga são empresários desconfiados, mulheres com pouca ou nenhuma vergonha. O que no começo era uma tortura social para Ebling aos poucos se transforma num tipo de vício: as ligações erradas fornecem uma fuga da rotina, dos filhos levemente irritantes, da mulher que não oferece conforto. No quarto conto, "A Saída", um ator famoso chamado Ralf Tanner deixa de receber ligações e entra numa queda rumo ao anonimato, um tipo de fantasia sobre a ruína da identidade.

No segundo conto, "Em Perigo", Kehlmann narra a viagem de um escritor, Leo, e sua namorada; ele é aparentemente genial em seu ofício e encantador em suas palestras, mas na intimidade é praticante de uma lista excêntrica de distúrbios. Esse conto, que relata o inferno da etiqueta social, gera outros: "Oriente", em que uma escritora, Maria, aceita o convite de Leo para substituí-lo numa conferência na China, e depois vive o horror de ser esquecida num ambiente hostil; e "Uma Contribuição ao Debate", em que um homem sem vida social, mas extremamente ativo no ambiente virtual, é fã de Leo e, transtornado por não ter seu afeto reconhecido pelo autor num breve encontro, comete um grave erro em sua empresa, o que gera confusão com vários números de celular.

São contos que se cruzam por coincidências destrutivas, nomes que se repetem, lugares revisitados, pequenas ou grandes demonstrações de azar que remetem a outras piadas do destino estabelecidas em contos anteriores. É talvez o tipo de literatura preocupada em criar conexões infinitas, em se afirmar enquanto espécie de exercício literário de rima entre micro eventos dentro de um panorama maior, sugerindo algo como uma teoria do caos adaptada para a rotina de fama e anonimato de pessoas em momentos de crise.

São personagens que representam muito diretamente um catálogo tradicional e algo velho de dúvidas existenciais (família desestruturada, homem feio que busca fuga virtual, dúvidas sobre Deus), algo que na história da arte é constantemente explorado e de certa forma reinventado, ou interpretado na fala pessoal de cada artista. Não parece ser esse o desejo de Kehlmann, e sim cutucar seus personagens como se fossem bonecos de vodu um pouco como carrasco, aparentemente se divertindo ao colocá-los em situações de desgaste físico e emocional e sem saída.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Os reflexos da má companhia

Hugo Viana



A literatura mundial não apenas tem cânones estabelecidos, escritores lembrados em livros de história ou publicações biográficas, mas tem também o outro lado sujo e alternativo dessa mesma história, uma região meio indefinida composta por autores que escrevem sobre certos traumas de qualquer geração, mas se reportam a respeito desses temas com pouco (ou nenhum) pudor.

A editora Companhia das Letras lançou em abril o selo Má Companhia, que tem como proposta inicial resgatar livros ou autores, nacionais ou estrangeiros, que foram injustamente ou talvez ironicamente catalogados como nocivos ou malditos. "Essa categoria 'escritores malditos' é um troço muito dúbio", avalia André Conti, editor responsável pelo selo. "Às vezes esse rótulo parte de algum ressentimento, ou então é baseado na aceitação ou não do público. Nossa ideia é relançar esses autores 'malditos', com livros de bolso, edições populares, a preços camaradas", resume André.

Essa pequena transgressão conceitual que rege o selo esteve presente desde o nascimento da Má Companhia, que não seguiu regras ou análises de mercado - foi meio que por acaso, durante uma conversa banal. "Luiz Schwarcz, editor chefe, estava jantando com os escritores Marçal Aquino e Joca Terron. Joca tinha bebido um pouco de vinho e meio de sacanagem comentou que a gente já tinha a coleção 'Boa Companhia', então deveria ter também a má. No dia seguinte Luiz trouxe a ideia para a Companhia e disse: 'Vamos fazer'", lembra André.

O selo entra no mercado editorial inicialmente com três livros, "O Invasor" (2002, R$ 19), de Marçal Aquino, e duas publicações de Reinaldo Morais agrupadas num único projeto: "Tanto Faz" (1981) e "Abacaxi" (1985), por R$ 25. "Escolhemos começar com esses livros simplesmente porque gostamos deles", justifica André. "O de Marçal estava esgotado e 'Abacaxi' estava fora de catálogo. Não teve um estudo prévio, foi uma escolha que aconteceu naturalmente", explica.

O estilo desses livros desafia esse suposto estigma de produções maléficas, com erupções abruptas de escatologia ou violência, mas tudo meio que conscientemente utilizado para ressaltar um desespero quieto de cada geração. "Tanto Faz" e "Abacaxi" relatam os excessos sem regras do personagem Ricardo de Mello durante uma jornada de São Paulo até a França, e depois Nova Iorque, narrando as aflições de um homem de 30 e poucos anos diante do tédio e da liberdade sexual. Já "O Invasor" é uma pequena crônica de 120 páginas e algumas toneladas sobre as trapaças da cidade grande, São Paulo, enfatizando a repercussão do crime a partir do ponto de vista moral.

"A gente não quer se limitar a livro sobre bebida e vida bandida", alerta André. "Estamos interessados em textos que tiveram algum impacto, foram censurados, causaram algum tipo de furor pela forma ou pelo conteúdo na época do lançamento. Não precisa ser necessariamente um romance, pode ser um soneto, uma poesia ou uma crônica, publicações de todas as épocas e países. Mas também pode ter um pouco de sacanagem e de drogas", ressalta.

Biografia ficcional de uma geração em trânsito

A escrita de Reinaldo Moraes é certamente exemplo irônico do que supostamente seria uma literatura maldita. A história narrada nos livros "Tanto Faz" e "Abacaxi", sequência informal lançada quatro anos depois, descreve com precisão obscena as descobertas sexuais de Ricardo de Mello e suas intensas experiências com cigarros, bebida, drogas e amores expressos quase nunca bem sucedidos, sendo essa mistura de referências uma forma de relatar com dignidade distraída o cotidiano de uma geração perdida entre o fim da ditadura e o início da abertura política, nos anos 1980.

Nesse sentido, o livro pode ser visto como uma biografia ficcional de uma geração em trânsito, atordoada por mudanças sociais e políticas, perseguindo de um jeito um tanto neurótico e torto uma identidade em meio ao caos, sendo o título "tanto faz" algo de revelador desse estado de espírito. Ricardo é um estudante de economia enviado para a França para fazer um doutorado, sendo bancado pela empresa que trabalha em São Paulo. Mas quando chega a Paris, fica perdido entre sessões de filmes clássicos na cinemateca francesa, cafés, dias e noites testando drogas e troca de olhares com cada petite femme qui passe.

No meio disso tudo tem também um exercício literário não só de estilo, com uma verve excêntrica carregada de neologismos, mas também narrativo, já que cada capítulo varia entre uma frase qualquer ("Alguém aí por acaso sabe como é que faz para ser frívolo e brejeiro como um dândi?"), uma cena que dura um pequeno parágrafo e algumas laudas perdidas sobre o labirinto das paixões. Além disso, o próprio autor se insere no livro, às vezes dialogando com seu personagem ficcional, que parece ser uma versão literária do próprio Reinaldo.

O livro passa a sensação de ser escrito por um autor que acredita com certa ironia que está inventando algo raro, uma literatura na forma de história fragmentada em pequenas cenas sem conexão dramática, que narram um cotidiano banal - o que em certo sentido parece questionar a própria herança da grande literatura, com feitos heróicos estridentes. Um relato abertamente despudorado sobre corações perdidos atormentados em igual medida por cigarros, bebidas, mulheres e literatura. Horizontalmente profundo, com uma estrutura aberta a interpretações que cabe tudo e meio que tanto faz.

Crônica urbana fala sobre o abismo social

Se Reinaldo Moraes tem um estilo literário em que ele requebra com a frase até o chão, criando situações excêntricas e narrando essas cenas com um tipo de desprendimento erudito, Marçal Aquino é um autor um tanto mais discreto e economicamente distante, uma escrita pautada por construções curtas e diretas. Seu livro "O Invasor" é uma crônica urbana que tem São Paulo não apenas como ambiente da história, mas também como sensação inominável de sufoco e tormento, como um espaço que domina as ações dos personagens.

O livro fala sobre dois amigos, Ivan e Alaor, que são sócios numa construtora e que se juntam para eliminar o terceiro elemento, que é o chefe da empresa. Eles contratam um assassino profissional, Anísio, mas a imprevisibilidade do cotidiano naturalmente leva o plano original por caminhos inesperados, com o livro se transformando mais ou menos num terror psicológico e trágico sobre as decisões morais do narrador, Ivan.

"O Invasor" é um livro que Marçal começou a escrever em 1997. Ao mostrar o texto ainda incompleto para Beto Brant, o cineasta viu o potencial evidente de cinema. Marçal então começou a trabalhar num roteiro de um longa-metragem, que foi lançado no mercado nacional em 2002, mesmo ano que o autor terminou o livro.

Nesse caso específico, livro e filme são duas expressões diferentes. Enquanto Brant parece interessado na figura do assassino, na narrativa de Marçal o personagem Anísio é meio que um fantasma marginal, à espreita das demonstrações de fragilidade de Ivan, que ocupa o principal foco da narrativa - suas inquietações diante da crise moral de ser responsável pela morte de um amigo.

Surgem muito naturalmente elementos que insinuam a cidade e os personagens presos a uma rotina de caos calmo à beira do abismo social. No meio de uma sequência, de forma orgânica ao texto central, ocorrem pequenas digressões, histórias que de formas múltiplas se conectam ao tema central - a falência das relações e gente que quer superar a concorrência de forma quase sempre desleal. Um livro que chega através da ficção nos problemas não só da cidade grande, relatando o elevado nível neurótico de competição do tipo cão mata cão, mas também sobre como as pessoas desse universo tentam manter a sanidade, coisas que acabam em silêncio.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O mistério literário de Enrique Vila-Matas

Hugo Viana



O autor espanhol Enrique Vila-Matas parece escrever a partir do que observa em seu próprio ofício, a literatura, e suas palavras sobre o mercado e a arte da escrita são em geral dotadas de algum bom humor negro. Enrique fornece a versão irônica dos fatos, relata grandes ou pequenos momentos nem sempre autênticos da história da literatura, temas que também fazem parte de seu novo livro, “Dublinesca” (Cosac Naify, 320 páginas, R$ 59).

O livro é sobre Samuel Riba, 60 anos, ex-alcoólatra e também ex-editor de livros, atualmente habitante recluso de casa pequena. Riba é usuário obsessivo do Google para assuntos banais e prefere não abandonar sua etiqueta pessoal sem uma lista mental criteriosa de motivos que assegurem a necessidade casual do imprevisto. Sua manhã tradicional inclui desvios fortuitos por blogs de literatura, para concordar ou talvez comentar nervosamente contra algum jovem crítico anônimo que esnobou um dos autores que Riba, em seu passado lustroso de editor, publicou. Ou então um passeio saudosista por sua biblioteca pessoal, catálogo afetivo de publicações.

A rotina de Riba inclui também lembranças de tempos distantes, imagens que vêm sem pudor enquanto ele toma um café ou fala ao telefone, memórias de suas noites bêbadas com colegas escritores, quando as coisas pareciam possíveis. São muitos autores citados ao longo do livro, em geral registros nostálgicos, alguns reais outros inventados para servir aos propósitos narrativos de Vila-Matas, escolha que parece reforçar a vontade desse autor em debater a imanência da literatura em termos puramente pessoais, o parâmetro mais interessante.

A escrita de Enrique parece ser aquela do apaixonado pela palavra impressa, pelo cheiro de tinta no papel, pela textura da folha nos dedos. Um livro sobre o amor aos livros, um amor nada romântico e possivelmente trágico. Em alguns momentos “Dublinesca” parece agradável apenas na instância da citação, mas depois entra um tipo de política de oposição aos tempos modernos, à metodologia da era digital, que torna explícito o tema do livro: a passagem do tempo e as mudanças nos valores que acompanham essa transição.

Esse tema integra o desenvolvimento da história a partir de um ponto central: Riba, num acesso imprevisto de mentira, fala para a mulher e para os pais que vai para a Irlanda no dia 16 de junho, quando o país comemora o Bloomsday, em homenagem ao personagem Leopold Bloom, de “Ulisses”, de James Joyce. Essa viagem, explica Riba, seria um tipo de celebração melancólica do fim da era Gutemberg, o funeral da palavra impressa, uma paródia necessária para a passagem para outra época, a era digital, o reinado do Google.

Enrique narra essa história como um fluxo descontrolado de consciência, um texto aparentemente sem rumo sobre um velho um tanto ranzinza perdido nos labirintos da idade; uma escrita em terceira pessoa que acompanha com afeto evidente o protagonista enquanto ele se distancia emocionalmente do cotidiano e se revolta contra suas próprias escolhas.

No meio de uma conversa qualquer, com seus pais ou sua mulher, Celia, sobre viagens passadas ou a respeito de seus livros de cabeceira, Riba se perde em pensamentos diversos, fabulações internas que parecem, em alguma medida, a síntese perfeita entre os livros que ele leu, ouviu falar, ou ainda pretende algum dia encontrar. É como se sua vida fosse na verdade pautada por algum tipo de mistério literário, ideia que talvez Villa-Matas identifique como sua.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A política sentimental de valter hugo mãe

Hugo Viana



O escritor angolano valter hugo mãe é em geral lembrado como autor excêntrico que escreve através de letras minúsculas, profissional que não responde às imposições da gramática tradicional e persegue fórmulas pessoais - argumentos que certamente dificultam o acesso direto a sua escrita politicamente sentimental. Sua publicação mais recente escrita quase toda em letras miúdas foi lançada durante a Flip, pela Cosac Naify, e se chama "a máquina de fazer espanhóis" (256 páginas, R$ 39). O livro parece endereçado àqueles familiares ao sentimento de perda e às circunstâncias do amor louco. O personagem principal é português torcedor do Porto, tem 84 anos, se chama silva, e como tantos outros silva de Portugal que avançam sem impulso rumo à terceira idade, se recolheu à vaidade das palavras pequenas e ao esforço vão da fuga. Depois da morte da mulher, silva é colocado num asilo e passa a protestar contra a permanência na memória daqueles que são essenciais e não estão mais perto. Então o livro passa a sugerir outros temas, acomodar mais interpretações, nostálgicas talvez, certamente políticas, sobre a história e o sofrimento cotidiano. Em entrevista por e-mail, depois de um bate-papo inicial encerrado pelo autor antes do tempo por cansaço devido a uma jornada de oito ou nove entrevistas numa mesma tarde (todas sobre o mesmo tema: as minúsculas), valter hugo mãe falou sobre literatura e política.

Decidi, afinal, não perguntar sobre motivos ou possíveis transgressões no uso de minúsculas e recusa de maiúsculas. O que você acha da ausência dessa pergunta numa entrevista?
Acho maravilhoso. Respondi um milhão de vezes a essa pergunta. Fico imediatamente feliz com uma entrevista diferente. De todo o modo, quem quiser entender esse assunto pode encontrar na internet algumas respostas suficientemente completas. Ah, mas não fico zangado com a pergunta, fico apenas mais relaxado sem ela.

Gostaria que você falasse um pouco sobre a escrita como um meio para abordar perdas reais. Você dedica o livro ao seu pai, "que não viveu a terceira idade". A ficção parece um caminho natural para se aproximar do que não se consegue ou quer calar, talvez?
A literatura é o modo como me recompenso por cada coisa. Uso os textos para entender as pessoas e o que acontece às pessoas. Não serve para substituir, serve para ajudar a pensar, sentir, arrumar melhor as ideias. Perder, e não só alguém mas também alguma coisa importante para nós, solicita muita aprendizagem, e o que quero dizer é que escrevo efetivamente para aprender.

A certa altura do livro passei a ter a impressão de que você debatia outros temas, e talvez a narrativa central fosse alegoria para assuntos pessoais. Por exemplo, o asilo no qual o personagem está não parece apenas um cenário, mas um meio para se chegar à política do cotidiano, ao esquecimento da história, à nostalgia daqueles que se perdem em amores loucos. Era seu interesse elaborar tipos de metáforas?
Sim. Sempre me interessa abarcar as diversas preocupações plausíveis numa determinada personagem. As personagens, como gente que quer ser convincente aos olhos dos leitores, precisam de amplitude. Gosto de as ir completando como se fossem sendo construídas até termos uma panorâmica consistente de quem são. Isso favorece também o retrato mais fiel do tempo da história. Neste livro, por exemplo, o Portugal recente comparece largamente e, creio eu, de uma forma muito honesta.

Seu livro trata um pouco da opressão política na Europa. Gostaria que você falasse sobre a escrita que surge num contexto de dominação, do papel ou talvez da importância da literatura dentro do debate político.
A literatura é uma voz, e mais ainda dotada de alguma perenidade. Quem tem uma voz deve sempre usá-la para o bem coletivo dos homens. Claro que todos os temas são possíveis para um livro ótimo, mas admiro muito quem consegue divertir-me com um texto que também me ensina e alerta. Acredito que isso vale a pena.

Um tema caro a você parece ser a família, especialmente a relação entre pais e filhos, a transição de gerações. O tempo e a velhice parecem de alguma forma fascinar você. É um interesse consciente ou foram assuntos que surgiram naturalmente na escrita?
Foram assuntos que surgiram naturalmente na minha vida. Interessa-me muito a família e angustia-me muito a sua perda. Entendo, contudo, a família como também a nossa eleição, esse grupo de gente amiga que, ao longo dos anos se justifica como íntimo e incondicional. Gosto de amar assim. Incondicionalmente, sem abandono.

Suas frases parecem sempre muito trabalhadas, como o resultado de uma busca pela palavra ideal, pela sonoridade exata, pela sensação precisa. Gostaria que você falasse sobre seu processo de escrita, esse momento tão pessoal e talvez íntimo da criação.
Leio tudo em voz alta e várias vezes. Mas tenho a sorte de escrever com muito prazer e pouca dificuldade. Os textos são o que posso fazer de mais sagrado, e eles são decorrência de uma natureza muito definida em mim: fazem-me bem. Quando escrevo, normalmente, chego quase sem muito perceber ao resultado que está nos livros. Agradeço muito à sorte por isso.