domingo, 3 de novembro de 2013

Como ler um escritor?

Hugo Viana


Enquanto a literatura nacional está aquecida, com o número elevado de lançamentos por ano e a quantidade crescente de obras que entram no mercado estrangeiro, parece importante retomar questões basais sobre leitura e escrita, refletir sobre etapas do processo literário contemporâneo. São alguns dos desafios do escritor e crítico literário norte-americano John Freeman, ex-editor da Granta - publicação que reúne "os melhores jovens escritores" -, no livro "Como ler um escritor". Freeman entrevista 55 autores, como Ian McEwan, David Foster Wallace e Norman Mailer, observando a maneira como esses escritores trabalham e o que move suas produções.

Você foi o editor da Granta por quase cinco anos. Depois de ler e julgar muitos jovens escritores, quais as características de um bom autor?
As características são mais ou menos as qualidades que fazem as pessoas amarem alguém. Você talvez pense que goste de um certo tipo de pessoa, e então conhece alguém que é o completo oposto. E então você não consegue parar de pensar nessa pessoa. Um bom escritor é assim. Eles impressionam de uma maneira difícil de ignorar. Mostram coisas sobre o mundo que você não sabia que queria conhecer. Eles tornam a vida mais misteriosa e reconhecível ao mesmo tempo. E escrevem frases que apenas eles poderiam escrever. Há muita proficiência mascarada de profundidade por aí. Os verdadeiros grandes escritores têm algo importante a dizer, e o fazem em histórias impossíveis de esquecer.

Agora parece um bom momento para a literatura brasileira: o número crescente de autores com estilo pessoal e o aumento de autores traduzidos para o mercado estrangeiro. Qual o impacto da Granta para o mercado editorial? O que mais acha que influencia esse movimento atual da literária brasileira em outros países?
Acho que o perfil emergente do Brasil no mundo, como uma força econômica e cultural, ainda possuía uma lacuna - a literatura não era empurrada para o mundo da mesma maneira. Antes da Granta, existiam grandes romancistas brasileiros - como Machado de Assis, Jorge Amado e Clarice Lispector, modernistas como Oswald de Andrade e Mário de Andrade -, mas poucos, além deles, eram traduzidos. Havia uma geração faltando, e com romances é preciso escutar a voz de jovens escritores, pois eles percebem a atualidade de uma maneira diferente. Desde a Granta em português, muitos escritores da lista negociaram traduções - e alguns foram comprados por editoras de língua inglesa. Espero que isso continue a acontecer. O que é ainda mais interessante, para mim, é que a edição da Granta com autores brasileiros saiu em edições em sueco, chinês, espanhol. Acho que o governo brasileiro merece crédito, por estarem empurrando as artes - e ajudando a bancar traduções e viagens de escritores de uma maneira que coloca outros países em vergonha.

Você entrevistou grandes escritores contemporâneos. O que compartilha sobre essa experiência?
Acho que o que mais me atingiu falando com escritores como Haruki Murakami e Philip Roth foi um sentido de implacabilidade no processo de escrita. O romance não é uma corrida de velocidade, é uma maratona, e todos os melhores escritores pareciam quase destruídos fisicamente. E, ainda assim, não conseguiam imaginar fazer outra coisa. Isso significa jogar fora o que não é bom o suficiente, começar de novo, escrever múltiplos rascunhos, revisar com editores, talvez até apagar o texto, e escutar aquela voz interior; uma busca incansável pela linguagem de um personagem, o som de sua voz. É uma tarefa estranha, se sentar sozinho, escutando vozes, mas os melhores escritores pareciam ser capazes de fazer esse salto entre o que saiu de suas cabeças e o que filtram a partir de suas culturas.

Como crítico literário, quais aspectos você presta atenção durante a leitura?
Primeiro eu quero me sentir bem. Acho que é fácil para críticos, por lermos tantos livros, nos tornarmos uma espécie de assassino. Procurar, nos livros, momentos frágeis e atacar. Mas quem lê desse jeito? Quem vai à livraria e diz: quero encontrar um livro que eu realmente odeie! Seria um leitor estranho. Então procuro uma história que me incentive a continuar a leitura, uma voz que agarre minha orelha. Quero encontrar frases que nunca li antes - e o menor número possível ou nenhuma das que já tenha lido, os clichês. Finalmente, quero que o livro mexa comigo. Eu não digo isso de maneira vaga. Acho que estilistas podem ser tocantes, como Nabakov, por exemplo, porque ele tem um jeito de usar a linguagem que é muito bonito. Quero, enquanto crítico, encontrar um escritor que me faça esquecer que estou lendo, me puxando para mim mesmo e para o mundo ao mesmo tempo.

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TRAJETÓRIA - Freeman já escreveu para publicações como The New York Times Book Review, Los Angeles Times, The Guardian, e The Wall Street Journal. Foi presidente da instituição norte-americana National Book Critics Circle, que reúne editores e críticos.

Como ler um romance?
Incentivados pelo livro de Freeman, levamos uma questão basal sobre literatura a professores, escritores e críticos literários.

Anco Márcio Tenório Vieira, professor

Deve se ler um romance, assim como qualquer obra literária, com a mesma disposição que se vai para a cama para dormir: sem medo do que se vai sonhar, do que o nosso subconsciente nos reserva. 1. Assim como os sonhos, a literatura duplica os homens e a vida, criando outras realidades, outras respostas para a nossa realidade empírica; 2. Assim como os sonhos, a literatura pode nos dar prazer, medo ou nos ser indiferente. A literatura nos permite sonhar acordado. A literatura é o brinquedo lúdico do adulto. Devemos ler um romance como quem vai sonhar, como quem vai descobrir todas as possibilidades lúdicas de um novo brinquedo.

Sidney Rocha, escritor

Ninguém assiste a um Grande Prêmio de F1 porque os carros são como foguetes luminosos. Mas sim porque esperamos que numa daquelas curvas a vida atue pra valer. Ninguém assiste às lutas de boxe somente pela técnica dos jabs, mas para que a técnica resulte em um dano real qualquer à ordem das coisas. Assim se deve ler um romance: é como pedir um sonho emprestado, na esperança de que, ao devolvê-lo, a realidade tenha se alterado para os inquilinos daquele sonho, para nós que o roubamos e, de alguma forma, para nocautear quem sonhou aquele delírio pela primeira vez.

Eduardo Cesar Maia, crítico literário

Não acredito que haja uma fórmula ou regra para se ler um romance. Entendo o romance como um espaço narrativo aberto a uma pluralidade, à polifonia, à incerteza. Por isso a dificuldade que os teóricos - esses obsessivos - sentem em estabelecer definições sobre um gênero caracterizado pela fluidez. Prefiro um leitor "sem método", porém atento e receptivo, do que um crítico que está limitado por uma metodologia inflexível: os métodos são modificados, reformulados e, muitas vezes, abandonados com o passar do tempo, mas a experiência individual de leitura autônoma e "impressionista" é insubstituível.