quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Em busca de uma identidade


Hugo Viana


Em seu novo livro, "Barba ensopada de sangue", o escritor paulista Daniel Galera parece amadurecer temas presentes em sua obra pregressa: amores desfeitos, famílias em desacordo, personagens nos limites de uma crise existencial - uma espécie de antologia de um mal estar contemporâneo influenciado pela cultura pop. No enredo, o protagonista procura notícias sobre a misteriosa morte do avô, décadas antes, em Garopaba, ao mesmo tempo em que lida com o suicídio do pai. Aos poucos o livro se transforma numa espécie existencial de romance policial, como se Daniel investigasse as evidências de um crime não pelo interesse por respostas, mas pela necessidade de encontrar ordem ou razão nos fatos. O protagonista, um professor de educação física, tem uma condição neurológica peculiar: não é capaz de lembrar de rostos das pessoas que conhece, não apenas amigos e familiares, mas também ele mesmo (atrás de suas fotos ele anota: "EU"), o que sugere o enredo também como uma simbólica busca por identidade. É um livro que se destaca por elementos tradicionais da literatura: história que envolve o leitor e diálogos que ampliam o panorama emocional dos personagens. Nesta entrevista, o autor explica seu processo de escrita e a notoriedade internacional depois da Granta. 

O primeiro capítulo é uma conversa entre pai e filho, um diálogo forte em que muito é explicado e mais ainda sugerido. Gostaria que falasse sobre esse primeiro trecho e se essa versão (que foi enviada à Granta) sofreu alterações. 
Foi resultado de quase um ano e meio de anotações mentais e rabiscos em caderninhos. O objetivo era desenvolver a figura do pai do protagonista, que sumiria depois na narrativa, e ao mesmo tempo colocar os trilhos para a jornada do personagem, estabelecendo a obsessão com a figura do avô e seu destino obscuro. Escrevi o capítulo em 48h, em Garopaba, algumas semanas antes de ir embora da cidade, e o texto já saiu praticamente na forma final. Eu já tinha quase todo o livro planejado quando escrevi essa abertura. Fiz algumas alterações ao longo da escrita, e uma revisão mais séria antes de enviar à Granta. Quase nada mudou entre a versão que saiu na revista e a que está no romance.

Os diálogos parecem especialmente eloquentes na capacidade de sugerir sentimentos e o perfil dos personagens. Como você trabalha os diálogos?
Minhas diretrizes para escrever diálogos: 1) confiar no meu "ouvido literário" e transcrever fielmente as falas que funcionam na minha imaginação; 2) tentar escrever como as pessoas realmente falam, mas tendo em mente que uma transposição direta da fala coloquial nem sempre soa convincente. Por escrito, é preciso seguir as regras peculiares da leitura; 3) Diálogos ricos precisam alternar entre o explícito e o insinuado, entre o dito e não dito, entre o grosseiro e o elevado, entre o monossílabo seco e o monólogo descontrolado; 4) Nunca usar o diálogo como muleta ou ênfase da narração, e sim como um complemento dinâmico.

O protagonista investiga a misteriosa morte do avô. Nessa busca você parece transformar num tipo criativo de romance policial. Como foi construir novas possibilidades ao gênero? 
De fato, eu pretendia usar elementos e o clima dos romances policiais e de mistério, mas sem me preocupar em seguir rigorosamente as convenções desses gêneros. A investigação policial em si é frouxa e o mistério que está no centro da história não é propriamente resolvido. As versões sobre o assassinato nunca são como peças que se encaixam, elas vão se sobrepondo de forma difusa, se misturando a mitos e superstições. Uma das ideias do livro é que não há versões definitivas para a realidade, para a identidade das pessoas, para o passado. São narrativas sempre em progresso, às quais atribuímos variados graus de crença.

O livro parece especialmente interessante em algo que permanece pouco visto em autores contemporâneos: o prazer por contar histórias, envolver o leitor através do enredo. Seu interesse na literatura está mais ligado a uma noção clássica do que experimental? 
Como leitor, tenho uma certa preferência por uma literatura mais focada no enredo, e como escritor sou praticamente limitado a essa abordagem. Mas também gosto da literatura centrada na exploração da linguagem, do intextexto, da metaficção. No fundo, os bons livros precisam triunfar nas duas medidas, no enredo e na linguagem. Um livro centrado em enredo precisa demonstrar um trabalho cuidadoso na linguagem para ser envolvente, e a literatura experimental precisa de alguma espécie de fio condutor narrativo para não perder o leitor. Existe algo precioso no enredo, algo que não se encontra em meios que predominam agora, como a televisão, os games e as redes sociais. Se a literatura for competir nos termos desses concorrentes, está perdida. 

No enredo, alguns trechos parecem testemunhos de experiências vividas, como se a inspiração surgisse do seu contato com a realidade. Existe alguma separação entre a imaginação e a literatura que vem do real na sua escrita?
O texto ficcional em si não é realidade nem imaginação, é uma invenção alicerçada nessas duas bases. Encaro meu trabalho desse ponto de vista. Não hesito em usar a experiência pessoal ou narrada por terceiros na composição da história, mas faço uso totalmente livre desses elementos e os combino com a fabulação sem me preocupar demais com a distinção dessas esferas. Esse é o ponto de vista do trabalho. De um ponto de vista mais distanciado, é claro que há uma separação entre vida e literatura, entre realidade e imaginação. No fundo tudo são narrativas, mas para fins práticos, a distinção entre vida real e ficção é essencial. Não me confundo com meus personagens e coloco uma separação clara entre a ficção dos meus livros e minha vida particular.

Você faz parte de um grupo de autores jovens que vinham recebendo elogios, e agora, com a Granta, iniciam carreira no exterior. O que diria sobre esse momento da literatura nacional, e que possíveis repercussões prevê com essa circulação internacional?
Viajei um pouco nos últimos meses para divulgar a Granta e o meu novo livro, e fiquei surpreso com a influência da revista no exterior. Nos EUA, Inglaterra e em outros países, o pessoal presta muita atenção. É claro que a seleção da Granta é somente um recorte entre muitos possíveis, mas acredito que a edição vai ser importante para a visibilidade da literatura brasileira no exterior. O momento é muito animador. Com a aproximação da feira de Frankfurt de 2013, que terá o Brasil como país homenageado, as editoras estrangeiras estão procurando saber mais sobre nossa cena contemporânea e tentando transcender os estereótipos ultrapassados que são associados à nossa literatura. 

"Barba ensopada de sangue"
Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 39,50

Top 10 2012

Hugo Viana

Fim do ano chegando e mais uma mania: listas. Hoje escrevo sobre dez livros particularmente bons de 2012, mas é importante ressaltar que estas são opiniões pessoais e abertas para debates sobre livros que eu li, parcela bastante pequena em relação ao grande volume de lançamentos do ano. 

10. Cães heróis

Os livros do mexicano Mario Bellatin envolvem uma estranha mistura entre religião, sexo e fé - espécie de grito a favor dos excluídos. Em "Cães heróis", o autor fala sobre um "homem imóvel" que mora com a mãe e a irmã, que passam horas catalogando sacolas vazias (?). Esse é o mote para uma misteriosa (e fascinante) história de sugestão política e indefinição moral do atual estado da América Latina. 

9. Céu dos suicidas

O livro surgiu depois de um processo de luto de Ricardo Lísias. Um amigo do autor tirou a própria vida, e Ricardo lidou com a morte através da literatura, escrevendo sobre perder alguém querido, o desejo de descanso para aqueles movidos pela ternura mas que encontram tragicamente o fim. O protagonista se chama Ricardo Lísias, escolha que reforça uma jornada biográfica sobre fé, culpa e amor. 

8. Bonsai

História de amor jovem, do tipo garoto conhece garota e se apaixona como nunca antes. Já na primeira página o autor avisa que ela morreu e ele terminou triste e sozinho. O nome "bonsai" parece sugerir a pretensão do chileno Alejandro Zambra: um romance pequeno, idealmente cortado, como se as páginas fossem todas escuras e o trabalho do escritor fosse na verdade apagar em busca de um enredo. 

7. Barba ensopada de sangue

Assim como em livros anteriores, Daniel Galera escreve sobre personagens nos limites da crise, uma espécie de antologia de um mal estar contemporâneo influenciado pela cultura pop. No enredo, o protagonista procura notícias sobre a misteriosa morte do avô, décadas antes, ao mesmo tempo em que lida com o suicídio do pai. Aos poucos o livro se transforma numa espécie existencial de romance policial. 

6. patrimônio

Em novembro Philip Roth anunciou que não irá escrever mais livros. Roth se aposentou depois de mais de 30 romances, mantendo uma unidade de estilo. Nos últimos anos sua literatura parecia procurar flagrar o tempo, entender a memória, as mudanças físicas e emocionais. Um pouco disso tudo está em "Patrimônio", dura história real em que Roth acompanha os últimos dias de seu pai. Difícil ler sem gerar muitas lágrimas. 


5. Antiquários

"Antiquários" é um livro de vampiros que em momento algum traz a palavra "vampiro". O autor argentino Pablo de Santis usa a condição do vampirismo, a necessidade de sangue para manter a consciência, como uma espécie de alegoria para pessoas que se apegam ao tempo, à memória do passado e passam anos juntando peças para formar coleções que apenas ressaltam a ausência de algo essencial. Contagiante exemplar do gênero fantástico. 

4. Crônica de um vendedor de sangue

O chinês Yu Hua escreveu a história da família Xu, alguns altos e em geral muitos baixos, pequenas situações que sugerem a dificuldade de permanecer unido quando as decepções se acumulam. Hua tem bom humor, faz observações singelas sobre o comportamento humano, relata o desastre como um tipo delicado de comédia da vida privada, e ainda revisa aspectos da história de trabalhadores da China, que décadas atrás vendiam sangue para pagar contas. 

3. Nihonjin

Imigrantes japoneses chegam ao Brasil guiados pelo desejo de juntar dinheiro para voltar ao Japão e abrir negócios próprios, mas aqui conseguem apenas o suficiente para sobreviver. O livro transcende questões panfletárias: é um testemunho sensível sobre choque cultural, manter tradições e criar raízes. O livro de Oscar Nakasato ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance cercado por polêmicas, mas é uma das grandes novidades no mercado nacional. 

2. País sem chapéu

Na verdade "País sem chapéu" foi lançado em 2011 e está incluído nesta lista por capricho. Dany Laferrière, 59 anos, é haitiano, mas na década de 1970 foi para o Canadá, fugindo da ditadura de Duvalier. Este livro narra o regresso do autor ao Haiti, 20 anos depois, um incrível relato quase biográfico sobre tradição, herança cultural, retorno, família e política, usando a morte como sintoma ao mesmo tempo fantástico e real de um país em crise. 

1. O filho de mil homens

Valter Hugo Mãe é um escritor humanista; em seus livros existe um tipo sincero de ternura mesmo quando trata de sentimentos sombrios. Nesta obra, o autor narra a história de pessoas que formam laços que embora não sejam oficiais parecem tão sagrados quanto os que ligam uma família tradicional. Ao mesmo tempo em que procuram conforto esses personagens são enxotados a cada página por uma turba que sente raiva por eles exercerem de forma inofensiva exatamente aquilo que os torna humanos. São colocados à margem pelos vizinhos por serem homens maricas ou mulheres enjeitadas, mas convocados por Valter Hugo com um tipo raro de delicadeza. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A necessidade de um posicionamento crítico


Hugo Viana


No meio literário, polêmicas, bobas ou ideologicamente complexas, parecem sugerir a necessidade de refletir sobre os diferentes setores do mercado. A controvérsia mais recente foi a premiação da 54ª edição do Jabuti, em que o Jurado C (o crítico literário Rodrigo Gurgel) deu notas baixas para os principais concorrentes na categoria melhor romance, como Ana Maria Machado (entre 0 e 1,5), e elevadas para o estreante Oscar Nakasato (estratégia possível graças a mudanças nas regras do Jabuti: até o ano passado a nota mínima era 8). A atitude de Rodrigo gerou discussões sobre a crítica literária, a relevância de festivais, a legitimação de prêmios. De 18 de outubro, quando foi revelado o resultado do Jabuti, até 28 de novembro, dia em que foi oficialmente anunciada a identidade do Jurado C (a Folha de S. Paulo antecipou a informação no começo de novembro), Rodrigo não podia se pronunciar, por questões éticas de contrato, sobre os ataques que recebeu; leitores, escritores e editores questionaram seus métodos de análise e sugeriram, com certa desconfiança, que Gurgel quis destacar autores que ele gosta e criticar por rebeldia escritores de prestígio. Nesta entrevista Rodrigo explica sua noção de crítica literária e sua participação no Jabuti. 

Durante parte de outubro e novembro sua participação no Jabuti foi exaustivamente comentada, e você, no entanto, não podia defender suas perspectivas. Gostaria de deixar este espaço livre para você comentar qualquer aspecto que sinta necessidade particular de falar.
Obrigado. As críticas agressivas, sarcásticas ou descabidas que recebi fizeram-me lembrar do grande crítico inglês Samuel Johnson. Ele dizia: “É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter”.  

Como é seu método de análise literária? Você possui regras de conduta como crítico que são testadas ou cada obra sugere uma maneira particular de apreciação?

O romance é, por excelência, o gênero para onde convergem todas as possibilidades da criação literária. Aliás, a literatura é a arte do possível, no sentido de concebível. Tudo o que existe ou pode existir cabe nesse universo. Assim, o crítico deve estar aberto a diferentes leituras. Quando inicio um livro, procuro estar livre de ideias preconcebidas. Quero que a obra fale, dialogue comigo. Mas é preciso que ela seja uma estrutura coerente, com vida própria. É preciso que a obra responda a todas as questões que ela mesma se coloca; e deve fazê-lo com tal perfeição que, quando chegamos à última página, temos certeza de que o autor jamais existiu – e que a obra é uma espécie de geração espontânea.   

De acordo com seus valores de análise, poderia explicar as notas do jabuti, o zero de Ana Maria Machado e o 10 de Nakasato? 
Minhas notas nascem de uma leitura fria e imparcial desses romances. "Infâmia", de Ana Maria Machado, é um romance de propaganda ideológica. A autora tem algumas teses que ela pretende defender, comprovar a qualquer preço. Para fazer isso, torna o enredo esquemático e cria personagens sem dúvidas, que, durante todo o livro, ficam repetindo os mesmos julgamentos políticos e históricos. A narrativa possui um didatismo escancarado - e o discurso indireto livre, recurso fartamente utilizado no romance, não consegue tornar a autora invisível. Além disso, há várias cenas inverossímeis. É um romance proselitista, nada mais. Quanto a "Nihonjin", de Oscar Nakasato, que mereceu nota dez, é uma narrativa que trata da imigração japonesa no Brasil, transformando dramas individuais ou familiares em sínteses dos conflitos humanos. O autor trabalha com diferentes pontos de vista, com quebras de continuidade e distintos eixos de tempo. Nakasato quer apenas contar uma história - e não fazer panfletarismo. As personagens, principalmente as femininas, são construídas de forma admirável. O autor sabe trabalhar os aspectos líricos sem desprezar a dramaticidade. E domina muito bem a linguagem. 

Em seu livro "Muita retórica - Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha)" você promove uma espécie de revisão da história da literatura nacional, dos cânones estabelecidos. Acha que autores do passado são geralmente tratados com excessiva reverência? 
Meu livro é fruto do projeto que desenvolvo, desde 2010, no jornal Rascunho. Um projeto cujo objetivo é reler os principais autores da prosa nacional, começando pelos românticos e chegando aos dias atuais. Nesse primeiro volume, publiquei os ensaios que tratam dos prosadores do século XIX. Respondendo à sua pergunta, sim, há excessiva reverência em relação a certos autores. Aliás, não canso de me surpreender com o fato de algumas avaliações críticas se repetirem ao longo de décadas. É curioso que ninguém diga, por exemplo, o quanto Raul Pompeia pode ser pernóstico ou que Adolfo Caminha escreve realmente muito mal. Tenho a impressão de que parcela da crítica pretendeu criar um cânone brasileiro à força. Foram escolhendo os autores que pareciam menos piores e passaram a enaltecê-los de maneira exagerada, a fim de satisfazer uma necessidade meramente nacionalista. Ao agir dessa forma, referendaram uma literatura na qual, dentre outros defeitos, a eloquência prepondera. E ainda hoje encontramos esse problema: o autor que se enamora do seu próprio discurso e não percebe o abismo que separa a literatura da eloquência.

O que diria sobre o momento atual da crítica literária? Não apenas nos jornais, mas também na internet e na academia. 
A hegemonia do estruturalismo e do desconstrucionismo tem causado grandes dificuldades ao sistema literário nacional. Em primeiro lugar, esses estudiosos usam um jargão acadêmico hermético, incompreensível ao leitor comum. Esqueceram-se de que a crítica literária é, antes de tudo, um instrumento a serviço do homem – ou seja, acham que a crítica tem um fim em si mesma. Tal comportamento afasta os leitores. Em segundo lugar, por valorizarem excessivamente a forma, a linguagem, deixaram de acreditar que a obra literária deve dialogar com o mundo. Para eles, a obra é autossuficiente. Ora, uma literatura que dialoga apenas consigo mesma acaba se transformando num eterno exercício artificial de vanguardismo, nada mais. Esses dois problemas levam a um terceiro: se a obra não deve dialogar com a realidade e se o que realmente importa são os malabarismos linguísticos que o autor inventa, então não há necessidade de julgamento – e a crítica torna-se, assim, apenas um exercício de narcisismo. Dessa forma, chegamos ao quarto e último problema: se não há necessidade de julgamento, vivemos numa espécie de permanente bom-mocismo, de hipocrisia generalizada, em que o crítico se restringe a passar a mão na cabeça dos escritores e tratar todos da mesma forma, inclusive os medíocres. Há críticos, evidentemente, que fogem desse padrão de comportamento, mas formam a minoria. Com relação à segunda parte da sua pergunta, não me estenderei. Digo apenas que um crítico como Álvaro Lins faz muita falta nos dias de hoje.     

Ao dar uma nota zero, num evento importante, a uma autora prestigiada, você motivou revolta de autores, leitores e editores. Acha que o meio literário nacional suporta um posicionamento crítico de ideologia firme?
Minha resposta acima, sobre a crítica atual, explica um pouco as patologias que afligem o nosso sistema literário. Compreendo que um editor defenda seus escritores dos críticos severos. Mais que compreensível, é um belo gesto. Também compreendo os autores que desejam ser sempre bem avaliados, pois faz parte da nossa natureza almejar só elogios. Entretanto, não se pode exigir que os críticos não valorizem os escritores que consideram bons. Ou que não deem zero numa votação em que o zero era uma das notas possíveis. Análises duras, firmes, fazem parte de qualquer sistema literário sadio.

Você já foi jurado no Jabuti em outras ocasiões, além da experiência como crítico. Poderia, através do que você  leu, fazer uma avaliação sobre a literatura contemporânea brasileira? 
Apesar de estarmos impregnados da cultura contemporânea, relativista, materialista, de um niilismo que muitas vezes chega a ser atroz, alguns escritores têm, pelo menos, abandonado o vício de recriar um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido por eles e meia dúzia de amigos. Há ótimos escritores, dispostos a simplesmente contar boas histórias, corajosos a ponto de desobedecer o que ensinam os departamentos de Letras das universidades, abandonar o pedantismo e, por que não?, escrever inclusive com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. Logo, logo eles começarão a perceber que a literatura não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Revisão política e afetiva de Pernambuco


Hugo Viana


José Luiz Passos, 41 anos, nasceu em Catende, morou em Pernambuco e atualmente reside nos Estado Unidos, onde trabalha como professor de literatura na Universidade da Califórnia (UCLA). Essa condição de trânsito, mudanças geográficas (e o consequente amadurecimento emocional) integra seu novo romance, o segundo, "O sonâmbulo amador", que será lançado hoje (com presença do autor), no auditório da Livraria Cultura do Paço Alfândega, em evento às 19h. 

O livro é dividido em quatro partes, segmentos que possuem formas e estilos distintos. O foco da narrativa é o protagonista: Jurandir, pequeno funcionário da indústria têxtil pernambucana. "Ele é um homem que, na iminência de se aposentar, é forçado a prestar mais atenção aos seus sonhos e rever suas amizades", explica José Luiz. "Os cadernos de Jurandir reúnem suas memórias, suas atividades no presente e notas evocando seu passado. A estrutura da história, que se passa no final dos anos 1960, é consequência da situação do protagonista, oscilando entre presente e passado, numa tentativa de ora esconder e ora enfrentar demônios pessoais e lembranças", comenta o autor. 

A história de Jurandir sugere notas sobre a condição social e política de Pernambuco nos anos 1960, perspectivas que alinham o personagem a um momento particular da história do Estado. No enredo, Jurandir parte de uma cidade do agreste pernambucano rumo à Capital para resolver uma questão trabalhista. "O translado do campo à cidade já frequentou muito a literatura brasileira do século XX. No meu caso, tentei dar a Jurandir, pouco a pouco, a descoberta de uma vida mais urbana e uma maior familiaridade com relação a questões políticas que ele próprio se recusava a ver", explica o autor. 

"Mas sua jornada é levada adiante quase que exclusivamente no plano das amizades, em seu sentido doméstico, erótico e coletivo. Jurandir aprende a narrar sua vida interior num contexto em que a intimidade torna-se matéria pública; ou seja, no contexto da análise em grupo e das utopias de salvação espiritual e política", aponta o autor. "A Recife e a Olinda que Jurandir testemunha são ao mesmo tempo, para ele, presentes e passadas; é matéria afetiva e também política", explica. 

Um dos aspectos interessantes do livro é a construção dos personagens; não apenas Jurandir, mas também os coadjuvantes parecem apresentar um notável conjunto de emoções. "A criação dos personagens é, na minha opinião, o aspecto mais sedutor do gênero do romance", diz o autor. "Quando o personagem se desenvolve no contato com outros, temos a progressão do enredo. Procuro desenvolver uma visão clara dos personagens que irão fazer parte dos meus textos. A partir de uma convivência imaginada, começo a compor suas histórias, que resultam na elaboração de uma pequena sociedade. O enredo é a dinâmica de amizade e tensões entre eles. Em seguida, escolho um deles como foco da narrativa e crio uma estrutura, a fim de que um narrador organize os eventos para o leitor", ressalta. 

Embora Pernambuco tenha uma tradição crescente na literatura, o espaço urbano e a geografia do Interior é marca narrativa de poucos autores com alcance nacional. "'O sonâmbulo amador' não está longe dos demais autores que retratam a região", sugere José Luiz. "A literatura feita por pernambucanos ou por autores radicados em Pernambuco é rica e variada. Exemplos de grande originalidade no tratamento da relação entre campo e cidade, entre elite e povo, estão em escritores de diferentes gerações, como Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito, Marcelino Freire e Bernardo Brayner - autores que leio com prazer", diz.

"Gosto de me dedicar a projetos longos"

Como é seu processo de escrita, sua rotina de criação literária?
Gosto de me dedicar a projetos longos. Escrevo cortando muito; tipicamente meus romances e contos saem com a metade do tamanho das suas versões originais. Levei em média cinco anos para escrever cada um dos meus dois romances. Tento escrever sempre que posso, principalmente logo após acordar ou depois do almoço. Minhas histórias começam sempre como notas à mão, em cadernetas: um diálogo, uma cena, um traço para um personagem. Depois, os nomes, um passado e, a partir daí, um drama que se desenvolve entre mais de um deles.

Você já foi selecionado para a Granta (volume 8: trabalho), que neste ano fez a primeira edição em português, com escritores que vinham sendo elogiados e agora entram no mercado estrangeiro. O que diz sobre esse momento particular da história literária nacional?
Acho o momento atual excelente. Finalmente parece haver uma maior atenção à necessidade de se apoiar traduções e divulgar dentro e fora do País a ficção contemporânea. As revistas, os suplementos e os prêmios literários têm um papel importante. As mídias sociais também. Espero que tudo isso permita uma maior profissionalização da atividade do escritor no Brasil. Mas não tenho certeza de que um único número da Granta em inglês, dedicado ao Brasil, vá influenciar a distribuição da nossa literatura lá fora. O que está havendo este ano e, possivelmente, no próximo, com a feira de Frankfurt homenageando o Brasil, é um reflexo no campo das artes da nossa posição de maior visibilidade em pautas globais. Isso não necessariamente se traduz em melhor literatura. Porém, a difusão das obras e dos autores permite, ao menos, que uma pequena parte do que se faz em português circule entre leitores de outras línguas. Vejo essa possibilidade com otimismo, mas sem grandes esperanças de que, a curto prazo, isso vá transformar radicalmente a literatura brasileira.

Você é professor de literatura da Universidade da Califórnia. Que tipo (se é que existe) de influência a carreira acadêmica possui em criação literária?
A carreira acadêmica demanda tempo e paciência; é tempo, portanto, que não pode ser usado para fazer ficção. Por outro lado, passo meus dias lendo, escrevendo, preparando aulas e corrigindo trabalhos sobre textos literários que admiro. Compartilhar essas leituras e discutir o lugar delas em nossas vidas me ajuda a ter maior clareza sobre o que quero fazer como escritor. Então, a carreira dá trabalho, mas, por outro lado, ensinar literatura é um modo de aprender a escolher os exemplos que quero seguir e, também, os que quero evitar quando tento participar naquilo que gostaria que fosse um pouco mais de mim.

SERVIÇO
O sonâmbulo amador
Alfaguara, 248 páginas, R$ 39,90

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Monstros invadem praia de Santos!


Hugo Viana

foto: Josi Vicentin 

Gustavo Duarte, 35 anos, tem um gosto peculiar pelo gênero "filme de monstro", e foi essa preferência por lagartos gigantes destruindo cidades que inspirou o cartunista a criar "Monstros!" (Companhia das Letras, 88 páginas, R$ 34,50), HQ de charme nostálgico, que narra de maneira discreta e um tanto cômica uma história sobre criaturas gigantes que invadem a cidade de Santos, em São Paulo. 

"Gosto muito de histórias de monstros, então queria fazer uma homenagem aos monstros japoneses, gigantes e bizarros, que povoaram minha infância", diz o autor. "Eu assistia a esses seriados, via as séries 'Ultraman', 'Godzlia' e 'Spectreman', além dos clássicos de terror da Universal. São programas que eu cresci gostando e admiro até hoje. Mas talvez a maior influência seja 'Indiana Jones', a sensação de aventura misturada ao horror japonês", comenta Gustavo. 

Esse interesse gerou uma obra curiosa, uma história de pouco mais de 80 páginas que apesar de ter origem na cultura japonesa e norte-americana parece especialmente interessante por introduzir tradições e humor brasileiro ao enredo. Há no trabalho de Gustavo a tentativa de transformar a paisagem normalmente vista nesse tipo épico de história, inserindo características da cultura popular nacional e o "jeitinho" brasileiro. 

"Apesar de ser uma coisa 'japonesa', são histórias que influenciaram várias pessoas e passaram a ser mundiais", diz o autor. "Quando escrevi queria que fosse a mais familiar possível, e para mim 'familiar' é Santos. Se morasse no Recife, talvez ambientasse aí, talvez fizesse com que os monstros fossem para Olinda. Mas tenho ligação afetiva com Santos", explica o cartunista, que tirou fotos da cidade como inspiração. 

A HQ reúne imagens que sugerem uma espécie de arqueologia do gênero "monstros", trabalhando com imagens reconhecíveis de filmes novos ou antigos. "Referências não são voluntárias", diz Gustavo. "Acho excelente 'Cloverfield' (2008), um filme moderno de monstro. Pode ser que algumas cenas do filme tenham servido de inspiração. Tem outras imagens icônicas, como a de um monstro saindo da água. Isso não é intencional. A gente é o que consome", comenta.

Não há diálogos em "Monstros!", a história é narrada apenas através de imagens, dando continuidade ao estilo de Gustavo, que em trabalhos anteriores - "Birds", "Taxi" e "Có" - também não usou palavras. "Quando sentei para criar pensei em como contaria a história, se teria um narrador ou diálogos. Resolvi desenhar sem nada, sem nenhum texto, como os cartuns que mais tinha gostado de fazer. Quando conversei com meu editor ele me perguntou se eu conseguiria. Você acaba ficando preocupado em segurar o leitor numa narrativa sem texto. Mas estou achando minha linguagem, meu caminho, e aprendendo com isso", diz.

O trabalho com histórias em quadrinhos ainda é visto com algum preconceito, como se fosse um meio de expressão menor no meio artístico. Ao mesmo tempo, dentro dos gêneros, Gustavo trabalha no terreno de "histórias de monstros", forma narrativa vista como prazer gorduroso e pouco reflexivo. "Preconceito na minha vida nunca funcionou direito", diz o autor. "Eu acho que o quadrinho bem feito é equivalente a um ótimo livro bem feito. Sou cartunista há 15 anos, ilustrei textos de pessoas que acho que escrevem mal ao mesmo tempo em que trabalhei com desenhistas que considero geniais. Não é questão de que um seja melhor do que o outro, tem coisas boas e ruins de cada lado. Fazer bem feito é difícil, qualquer que seja o gênero", opina o autor. 

SERVIÇO
"Monstros!", de Gustavo Duarte
Quadrinhos na Cia
Preço médio: R$ 34,50

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O macanudismo de Ricardo Liniers


Hugo Viana


Foto: Allan Torres / Folha de Pernambuco

O desenhista argentino Ricardo Liniers, 39 anos, é um pouco como seus personagens, criações que misturam lirismo humorado com uma certa consciência melancólica da existência. Liniers ganhou uma exposição na Caixa Cultural, "Macanudismo", uma interessante antologia de sua obra, que encerrou domingo, e na sexta-feira veio ao Recife lançar o livro "Macanudo #5", que reúne tirinhas que foram publicadas originalmente em jornais argentinos. 

"Meu interesse por desenho começou quando garoto", lembra Liniers. "Eu gostava de Mafalda, e depois sempre encontrei histórias em quadrinhos de acordo com a minha idade. Na infância eu lia Asterix, na adolescência gostava de Robert Crumb, quando adulto passei a conhecer Art Spiegelman", detalha o autor, listando uma espécie de genealogia de sua influência artística - todos esses autores são, em diferentes níveis, presenças fundamentais em sua obra. 

A transição entre esse primeiro momento de leitor aprendiz para o grupo de criadores aconteceu quando Liniers superou expectativas familiares, mudou o rumo da carreira profissional e entrou no jornalismo como ilustrador. "Consegui ser desenhista mesmo com o código genético de advogado", explica Liniers. "Meu pai era advogado e eu cheguei a estudar direito. Mas quando eu tinha 20 e poucos anos conheci outros com a mesma 'doença' que eu, desenhistas, e eles me ajudaram", comenta. 

"Quem me deu confiança nessa época foi Maitena [Burundarena, desenhista do jornal Página 12]. Ela me convidou para trabalhar no 'Página 12', dizendo: 'Você é um gênio', mas eu sequer sabia se conseguiria fazer uma tirinha diária", revela. "Quando comecei no Página 12 eu criei a tira Bon Jour, em que desenhava as ideias mais bizarras e freaks para chamar a atenção", lembra o autor, comentando sua primeira série de envolvente humor nonsense. 

Liniers parece ter entrado no mercado num tempo particularmente especial da cultura pop, um momento fértil em que o compartilhamento de dados suprime facilmente largas distâncias geográficas e políticas. "Tive muita sorte em aparecer justo agora", diz Liniers. "Um editor uma vez me disse que para um desenhista ser publicado deve passar primeiro pelo jornal. Mas com a internet isso mudou, a internet cruza fronteiras. Muita gente usa meus desenhos, em redes sociais e páginas pessoais. Sou a favor do compartilhamento gratuito", ressalta. 

Os quadrinhos de Liniers representam uma espécie triste de alegria, comentários universais sobre os modos da vida contemporânea e a existência um tanto acelerada da sociedade. "Meus desenhos são muito pessoais. Quando comecei não achava que as pessoas teriam paciência para ler. Mas os livros foram sendo publicados em outros países, na Itália, no Brasil, na República Tcheca. Não esperava ter tantos leitores. Eu me belisco todos os dias. Acho que tem gente estranha em todos os lugares", brinca. 

Liniers também revela um prazer especial por autores brasileiros, ilustradores de traço pessoal e reconhecível. "Fábio Zimbres, um desenhista de Porto Alegre, é o autor mais livre que conheço", opina. "Gosto muito do trabalho de Angeli e Laerte. Me dá raiva não existir livros deles na Argentina. Nós temos mais visibilidade na Europa que nos países vizinhos. Ao mesmo tempo, há como um movimento de comics na América Latina que os europeus ainda não conhecem. Eu gostaria de editar esses trabalhos em países latino-americanos", ressalta. 

Hoje em dia Liniers experimenta um projeto mais ousado: se juntou ao escritor mexicano Mario Bellatin para uma proposta em que imagens e palavras se juntam de maneira única. "Ele está adaptando os textos dele aos desenhos, e eu também estou me adaptando ao estilo dele. Acho que há 30 anos isso não seria publicável", comenta. 

INFÂNCIA

"Quando eu vi Guerra nas Estrelas pela primeira vez eu pensei: eu tenho que ter isso em casa. A maneira que encontrei foi fazendo desenhos do filme, versões muito estranhas que criava com meus amigos", comenta o desenhista, que lista, entre outros filmes importantes, "Rocky" e "Tubarão", "porque tinham sangue" 

JORNAL

"Quando comecei as tirinhas 'Macanudo' a Argentina passava por um momento intenso de crise, todas as páginas do jornal eram pessimistas, tivemos cinco presidentes em uma semana. Na última página tinha 'Macanudo'. No Brasil significa algo como 'supimpa', e em Pernambuco acho que significa 'arretado'. É uma palavra meio fora de moda e também irônica, pelo momento particular da Argentina"

ESTILO

"Gosto de um tipo de humor de contracorrente, que tenha tristeza, que fique entre rir e chorar ao mesmo tempo. Um pouco como Charles Chaplin" 

TRADUÇÃO

"Em Praga a personagem Henriqueta se chama Indrishka. Eu perguntei a tradutora se era esse o correspondente, e ela me disse que não, que deu esse nome porque era o de alguém da família dela. Os tchecos são gente muito interessante"

MERCADO

"As HQs estão num momento incrível. Nos anos 1960 e 70 você só podia fazer humor e aventuras de super heróis. Depois começou um processo de liberação. No começo era tudo muito adolescente, depois os autores começaram a amadurecer alguns gêneros, até que hoje finalmente os desenhistas podem fazer o que querem. A HQ se aproximou da literatura. Ninguém diria a Virginia Wolf sobre o que ela devia escrever. Hoje acontece isso com desenhistas"

SERVIÇO

"Macanudo #5" (Zarabatana Books, 96 páginas, R$ 39)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Literatura e memória na escrita de Paloma Vidal


Hugo Viana


(foto: Renato Parada)

Os jovens escritores brasileiros, além de autores, geralmente também são críticos e professores de literatura, condição que parece favorecer uma relação de intensa proximidade com a história das palavras e o ofício de criador. É o caso de Paloma Vidal, 37 anos, autora que nasceu na Argentina e aos dois anos veio para o Brasil, morar no Rio de Janeiro. Esse aspecto de deslocamento, um certo embaralhamento geográfico, o sentimento distante de ausência parecem marcas especiais em seu novo livro, o quarto, "Mar Azul". A história começa de maneira criativa: duas meninas, nomes e idades não revelados, conversam sobre aspectos da intimidade, amores sem correspondência e uma espécie de inocência num complexo mundo de adultos. Em seguida, a história muda de ritmo, uma das personagens aparece mais velha. O livro adquire então uma atmosfera de reflexão melancólica sobre os dilemas físicos e emocionais da idade avançada, uma exposição dramática que coloca o tempo, a memória e a natureza (o mar) como fatores carregados de emoção. A protagonista registra seus dias em diários, assim como seu pai fazia anos antes, uma rotina lenta marcada por um tipo de cruzada a favor do esquecimento. Nesta entrevista, Paloma fala sobre aspectos da criação literária e seu trabalho no mercado como professora e crítica literária.  

As primeiras 40 páginas têm apenas diálogos; você não revela nomes ou idades, apenas escreve a conversa entre duas jovens amigas. Gostaria que falasse sobre essa maneira de começar a história.
A forma da primeira parte está relacionada a uma experiência com a escrita de teatro e com a necessidade de criar uma indefinição entre as duas amigas, como se fossem tão próximas que suas vozes quase se confundissem. Daí não aparecerem nomes nem descrições das personagens. A ideia é que tudo vá surgindo na conversa entre elas. 

Anos depois, a personagem, mais velha, enfrenta dilemas da idade avançada. São dois momentos que parecem em choque: o receio do futuro, quando jovem, e as ideias sobre o passado, quando idosa. Por que esta maneira de tratar o tempo?
Acho que mais do que um choque há uma espécie de suplementação. Algo que se acrescenta e que vai modificando o sentido de cada um dos tempos. Minha ideia era que o leitor pudesse ir e voltar de um tempo ao outro, passando da juventude à velhice e vice-versa, de modo que a protagonista fosse jovem e velha ao mesmo tempo.

Como avalia a importância do tema "tempo" no livro? A estrutura fragmentada tem relação com as reminiscências imprecisas da personagem?
A fragmentação é a forma da memória. Procurei segui-la na escrita do livro. Na verdade, durante a escrita, foi um movimento duplo: seguir a linearidade do diário, dia após dia, e ao mesmo tempo estar aberta para as intervenções da memória da personagem, que foi se delineando sem muito planejamento prévio.

Gostaria que falasse sobre a relação entre escrita, esquecimento e lembrança, temas fortes na história.
A imagem inicial era a de uma mulher que não para de lembrar. Isso tem a ver com uma frase do filme "As praias de Agnès", de Agnès Vardas, que acabou virando epígrafe do livro: "Eu me lembro enquanto eu vivo". Depois comecei a trabalhar com a ideia de que ela na verdade não queria lembrar, mas também não conseguia evitar a lembrança. Era um movimento contrário ao do pai que via sua memória se perder, então escrevia para guardar as lembranças. Ela escreve de alguma maneira para se livrar delas.

Qual a importância do mar como elemento na construção do enredo? Que simbologia você pensou em criar?
A presença do mar tinha um motivo sobretudo plástico. Pensei inicialmente numa cor que pudesse percorrer todo o livro. Depois ele foi se relacionando cada vez mais com algumas imagens da memória da personagem, principalmente em relação à ausência do pai. Mas não pensei em trabalhar isso simbolicamente.

Você nasceu na Argentina e hoje mora no Brasil. No livro também existe a condição de trânsito, de deslocamento. Talvez não propriamente "biográficas", mas no livro há experiências ou emoções pessoais? 
Há muito neste livro de experiências minhas no que se refere a uma condição de deslocamento, mas, mais até do que em livros anteriores, a experiência está separada das vivências propriamente autobiográficas. Quer dizer, entendo que há uma separação entre a condição e os acontecimentos. E neste livro experimentei muito com isso.

Assim como outros jovens autores dessa geração, você, além de escritora, também pratica a crítica literária. Em que sentido um trabalho favorece o outro? Existe alguma divisão?
Para mim pensar e escrever sobre literatura é sempre uma maneira de estar atenta ao que eu mesma estou buscando no que escrevo. Não acho que haja propriamente uma divisão, porque as duas atividades estão bastante conectadas, mas é claro que são diferentes, com tempos e formas diferentes, inclusive porque no meu caso é como professora e crítica que ganho a vida, então nesse sentido não me relaciono com elas da mesma maneira e talvez possa dizer que sinto mais liberdade no trabalho como escritora.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

História e política na escrita de Robert Darnton


Hugo Viana

A escrita do norte-americano Robert Darnton, 73 anos, possui a natureza dupla de ficcionista e historiador; ao mesmo tempo em que existe o rigor da pesquisa histórica e da reflexão acadêmica, Darnton procura seduzir o leitor como um autor de gênero policial. O escritor, que participou da Fliporto na sexta-feira, lançou recentemente "O diabo na água benta", publicação em que exercita sua perspetiva de pesquisador, falando sobre a importância da calúnia e da difamação como ferramentas de agitação política na França do século 18. Enquanto observa o passado, narrando detalhes do processo social que antecedeu a Revolução Francesa, Darnton parece revelar conexões com o período atual - a maneira como a calúnia e a difamação se manifestam no jogo político contemporâneo. Em seu texto existe a fascinação criativa do ato de narrar histórias, afastando-se de uma noção didática da escrita, buscando aproximação com o gênero policial; o autor fala, como um investigador que pesquisa evidências de um crime, sobre temas importantes da história. Darnton, que desde 2007 é diretor da livraria de Harvard, também é um dos pensadores da nova era do mercado editorial; seus textos refletem sobre a relação entre digital e analógico, o panorama de mudanças rápidas a partir da digitalização e a dúvida sobre o futuro do impresso. Nesta entrevista, o autor fala sobre seu novo trabalho e opina sobre os livros eletrônicos (e-books).

O senhor é diretor da livraria de Harvard desde 2007, e nesse período digitalizou parte da coleção da biblioteca, facilitando o acesso aos livros. E-books são tópicos de debates entre leitores e escritores, com argumentos positivos (fácil de carregar) e negativos (possível fim dos impressos). Poderia opinar sobre essa rápida mudanças e explicar sobre os valores em jogo nesse cenário?
Eu acho que as pessoas dramatizam uma suposta oposição entre e-books e impressos. Verdade, o uso de e-books aumentou muito nos EUA. O site Amazom reporta que vende mais e-books do que livros tradicionais. Mas o consumo de impressos também aumentou - 6% - no ano passado. Além disso, a venda de e-books frequentemente aumenta a de suas versões impressas. O leitor prova uma novela ou não-ficção no Kindle; se gostar, compra a versão impressa. Nós temos agora livros híbridos. Meu livro mais recente, "Poesia e a polícia: rede de comunicação no século 18 em Paris", é uma monografia tradicional impressa, mas tem um suplemento eletrônico no qual o leitor pode ouvir músicas cantadas na melodia que preenchia o ar em Paris 250 anos atrás. Uma coisa que os livros de história nos ensinam é que um meio não invalida outro durante o processo de troca tecnológica. A impressão de manuscritos aumentou depois de Gutenberg (1400-1468), e continuou muito bem nos dois séculos seguintes.

O senhor é conhecido por estudos da França no século 18. No Brasil acabou de ser lançado "O diabo na água benta", em que você fala sobre a força da calúnia e da difamação naquele período político da história francesa. Já que no Brasil acabamos de ter eleições - e também nos EUA, para presidente - o senhor acha que elas continuam sendo poderosas ferramentas políticas?
Com certeza, a calúnia ainda é uma eficiente arma em batalhas políticas. Quando meu livro apareceu na França, muitos jornalistas disseram que as ideias poderiam ser aplicadas à política francesa. E tendo acabado de testemunhar uma eleição nos EUA, eu diria o mesmo que os franceses. Acredito que a calúnia existe em quase todo sistema político, mas alguns sistemas podem lidar melhor com isso do que outros. Na França pré-revolucionária, isso tocou um nervo e contribuiu muito, na minha opinião, para a radicalização da opinião pública. Na Inglaterra nesse mesmo período, isso foi ainda mais difundido, mas foi encolhido pela elite política. Portanto, acho crucial situar a calúnia dentro do contexto de sistemas políticos particulares, prestando atenção cuidadosa ao contexto da hora e do lugar.

Lendo o livro é possível fazer conexões com a literatura policial, pela maneira como o senhor narra eventos, com investigações e conspirações. Isso foi intencional? Ao mesmo tempo, há muitas informações e detalhes históricos. Como foi o processo de pesquisa?
Como você notou, eu passei um longo tempo fazendo pesquisas para este livro. Eu tentei reconstruir em detalhe as atividades da polícia e dos autores que eles perseguiam. Nesse sentido acabou se transformando numa espécie de história de detetive, que eu espero que divirta os leitores ao mesmo tempo em que informe um pouco sobre um muito diferente e fascinante período da história.

"O diabo na água benta"
Companhia das Letras, 632 páginas, R$ 74,50

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Tradição e memória na literatura de J. Rentes de Carvalho


Hugo Viana

A Fliporto, que chega à 8ª edição (entre os dias 15 e 18 de novembro), vem fortalecendo um perfil interessante: uma programação que ao mesmo tempo reforça a relevância de grandes autores e mostra uma dedicação especial ao apresentar escritores pouco conhecidos. Neste ano, este tipo de revisão política do mercado rendeu o convite ao português J. Rentes de Carvalho, 82 anos, selecionado pelo curador Mário Hélio para participar da mesa "Palavras: as implicâncias, as preferências e as esquisitices". Rentes não tem nenhum livro publicado no Brasil, embora tenha escrito mais de 10 obras em português. Ele fez o serviço militar em Lisboa e foi obrigado, por razões políticas, a abandonar Portugal; viveu então no Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque e Paris, até se fixar em Amsterdã em 1956. Essa condição de trânsito e revisão memorialista de tradições está presente em sua literatura; em obras como "La coca" e "A amante holandesa" Rentes escreve histórias de emoções discretas, em que lembranças e costumes nacionais são meios para repassar sensações. Nesta conversa o autor fala sobre a língua portuguesa, que deixou de ser sua forma primordial de comunicação, e temas como tempo e amor em seus livros.

Na Fliporto o senhor vai falar sobre o material para a construção literária, as palavras. Gostaria de saber primeiro se tem, como sugere o título da mesa, "preferências" ou "esquisitices" sobre certos termos da língua portuguesa.
Nem preferências, nem esquisitices. As palavras são instrumentos de que necessito. Acontece, claro, que uma se adapte melhor ao que quero dizer, mas que outra possua um som ou um "colorido" mais interessante. De modo geral a "preferência" ou a "esquisitice" que lhes posso atribuir deixa de ser tomada em consideração se o sentido ou o decorrer da história o exige. A qualidade vem primeiro, para as idiossincrasias pessoais põe-se o travão a funcionar. Pessoalmente, em matéria de preferências, enfrento como escritor o problema particular de que, sendo poliglota, e há mais de 50 anos a minha língua corrente seja o holandês, me aflige, por vezes, que certas palavras estrangeiras me "sirvam" melhor do que as da minha língua-mãe.

Como é sua rotina de escrita, a relação com as palavras e o processo de criação?
As palavras é que se relacionam comigo, mas, francamente, não faço ideia de que modo. E isso de rotina de escrita e processo de criação, ultrapassa-me. Imagino uma história (estória, se quiser), sento-me a pensar, escrevo o que penso, reescrevo, corrijo, volto a corrigir, gasto anos nisso. Nada de especial ou esotérico. Só trabalhinho, muito trabalhinho.

O que acha do processo de unificação das línguas em português? Li seus livros em português de Portugal e pensei que, caso fossem adaptados para o brasileiro, iriam perder algo de tradição. Acha que podemos ser compreendidos sem a unificação?
Claro que sim, e nunca a unificação será  possível. Temos duas línguas com a mesma  raiz, e é bom e enriquecedor que se mantenham as diferenças. Desde menino li boa porção de autores brasileiros, e continuo a ler, escrevi uma tese sobre "Menino do Engenho" de José Lins do Rego; Graciliano Ramos, Machado de Assis, o grande Guimarães Rosa, Trevisan, Bandeira, Vinicius, não sei quantos mais, a todos sou devedor. Do mesmo modo seria bom que no Brasil houvesse muita gente a ler autores portugueses, o que certamente contribuiria para melhor conhecimento mútuo.

Você morou em Portugal e, boa parte de sua vida, na Holanda - fato que entra em seus livros. Existe fronteira entre realidade e ficção?
Não há fronteiras, há osmose, e para complicar a questão tudo se dilui e funde, em certo momento nem o autor consegue saber se é ele próprio, ou se se transformou no outro e nos outros.

Em "La Coca" existe um interessante exercício narrativo: parte significativa do enredo permanece sem explicação direta. Diria que é uma marca de estilo, um interesse por narrar através da sugestão?
Um dos grandes pecados de quem escreve é, por vezes, ter a ideia de que o leitor é um bocadinho fraco de espírito, e tudo se lhe deve explicar. Bem ao contrário, são muitos os leitores mais inteligentes e mais sensíveis que o autor. Explicar e explicitar é o equivalente de fazer a papinha para o bebê, supondo que ao leitor ainda faltam dentes para mastigar a prosa. Aliás, muita dessa prosa, mais das vezes nem o esforço de engoli-la se justifica.

Já em "A Amante Holandesa" existe uma história de amor em que o tempo também é importante. O que diria sobre o tema “amor” em seus livros?
Diria que é um tema funcional, e que raro tenho abordado. E quando o abordo é com o cuidado de, ao contrário do sapateiro da conhecida estória, não ir além da chinela. É tema que, talvez mais do que todos, e refletindo o que Mário Vargas Llosa intitula “a civilização do espetáculo" a literatura tem banalizado, a ponto de que o que deveria ser tratado como um sentimento superior e exclusivo, essencial e querido em todos nós, é tantas vezes rebaixado e reduzido à animalidade.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Exemplar bruto de cinema de gênero


Hugo Viana*


BELO HORIZONTE (MG) - William Friedkin, 77 anos, é geralmente lembrado por dois grandes filmes, "Operação França" (1971) e “O Exorcista” (1973). Depois desses sucessos no início da carreira, a trajetória de Friedkin foi relativamente incerta, alternando bons projetos e peças desastrosas de cinema. Seu trabalho mais recente é "Matador de Alguel", exibido no encerramento da 6ª edição da Mostra Cine BH.

O filme é autêntico exemplar do cinema B, um produto nostálgico de um gênero popular especialmente nos anos 1970, quando Friedkin estava no topo. É um filme sujo, grosseiro e turrão, sangrento e bruto, uma atmosfera facilmente reconhecível de cinema de gênero, especialidade do diretor.

A história é comicamente ordinária; um rapaz novo se meteu com gente errada, deve dinheiro a um mafioso local, e para pagar U$ 6 mil inventa um plano que é claramente equivocado. Por motivos que não podem ser explicados pela lógica, ele convence outras pessoas a entrar na jogada, seu pai, sua irmã e um matador de aluguel (Matthew McConaughey, em atuação excelente).

Revelar mais pode estragar um enredo que prende justamente como um tipo de prazer gorduroso de cinema. A história pertence ao subgênero pulp, lembra romances baratos vendidos na banca de revista por menos de R$ 10, produtos que antes não eram tratados como arte, até Tarantino confundir os limites do bom gosto com os ótimos "Cães de Aluguel" (1992) e "Pulp Fiction" (1994).

Não é preciso esperar muito de sentido ou coerência do roteiro; a história parece existir pelo desejo de brutalidade, por um sentido de encenar coisas que chocam ou geram curiosidade, um bem feito e algo sensacionalista show de horrores. É provável que depois ver o filme ninguém coma uma coxa de galinha da mesma maneira.  

Ao mesmo tempo em que depois de um soco na cara vai jorrar muito sangue, prazeres do cinema de gênero, existe humanidade nos personagens, especialmente no matador de McConaughey, excêntrico responsável por manter o espectador preso ao filme.

*Viagem a convite do Cine BH

História de amor e política


Hugo Viana*


BELO HORIZONTE (MG) - No mercado atual do cinema independente o diretor português Miguel Gomes vem, através de seus dois últimos longas-metragens, estabelecendo-se como um dos realizadores mais especiais. Depois do belo "Aquele querido mês de agosto" (2008), o Cine BH apresentou na segunda à noite "Tabu", vencedor do prêmio de crítica do Festival de Berlim deste ano.

O filme é exemplo elaborado de melodrama de coração doloroso, gênero que geralmente é criticado por falta de originalidade. "Tabu" parece escapar desse argumento usando métodos do cinema contemporâneo, um tipo contemplativo de cinema, e uma combinação de imagens em preto e branco e edição de som que remete ao período do cinema mudo.

É um filme que sugere nostalgia ao cinema do passado, ao modelo de cinema praticado nos anos 1920, mas ao mesmo tempo consciente de métodos contemporâneos de captação e construção de imagens. O diferente uso de películas (35mm e 16mm) não apenas torna as imagens ainda mais sedutoras, mas especialmente parece elevar a carga sentimental do enredo. 

O filme é dividido em duas partes; a primeira se chama "Paraíso Perdido", seguida por "Paraíso". Na primeira temos três personagens principais: as senhoras Pilar, sua vizinha Aurora e a empregada desta última, Santa (as três igualmente ótimas). O segundo trecho narra a juventude de Aurora, na África. Além disso, há uma abertura que, com rara beleza, apresenta o sentimento geral da história, com humor e grande coração.

O filme é uma homenagem ao cinema do passado, especialmente ao diretor alemão F.W. Murnau - o título é o mesmo de um longa de Murnau de 1931, além de a personagem principal ter o mesmo nome de outro filme do diretor alemão (1927), também uma sofrida história de amor. Mas além dessa dimensão cinéfila, o filme se sustenta como autêntico melodrama, a história das dores de um amor impossível, filmado com criatividade e exuberância.

O filme tem um humor muito sutil, uma espécie contida de comédia sobre relações humanas, ao mesmo tempo em que insere dramas existenciais. Destaque para a narração (feita pelo próprio diretor), um texto de muita sensibilidade, que sugere ligações com “As pontes de Madison”.

O filme tem ainda uma dimensão política curiosa: comenta discretamente o estado atual de Portugal ao mesmo tempo em que observa o passado colonialista, a dominação sobre países africanos e os modos de permanência de um sistema político baseado na hierarquia da cor e do dinheiro.

*Viagem a convite do Cine BH

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Registros afetuosos em baixo orçamento















Hugo Viana*

BELO HORIZONTE (MG) - Festivais de cinema geralmente possuem duas metas ambiciosas: apresentar novidades do mercado contemporâneo e recuperar a memória do passado. Esta sexta edição do Cine BH oferece duas retrospectivas que acertam essas propostas. A primeira é do cineasta francês Leos Carax, 51 anos, mais conhecido por “Sangue Ruim” (1986) e “Os Amantes da Ponte Neuf” (1991). A outra é curiosa: exibição de todos os sete filmes do diretor mexicano Nicolás Pereda, 28 anos, obras exibidas, entre outros festivais, em Cannes e Veneza, importantes eventos do mundo do cinema.

“Meus filmes não são simples e monumentais, como os de Béla Tarr ou os de Tarkóvski. Meus filmes são simples e simples”, diz o diretor. Pereda conversou com espectadores do Cine BH e demonstrou conhecimento de cinema, explicando seus métodos de trabalho - uma espécie artesanal de teoria de cinema, que busca inspiração na realidade, ficcionalizando o cotidiano - com um tipo natural de humildade.


Nicolás é formado em cinema nos Estados Unidos, onde atualmente mora: recentemente ele recebeu uma oferta para permanecer na importante universidade Harvard para pesquisar e, se preferir, filmar um novo projeto. “No México existia apenas duas boas faculdades de cinema”, lembra o diretor. “Eu não consegui entrar em nenhuma.”

Pereda chamou a atenção do mercado ao vencer, em 2007, o Morelia International Film Festival. “Quando comecei a filmar mandei meus filmes para todos os festivais que existiam. Depois descobri que o trabalho de um júri é muito aleatório. Cada júri tem um gosto diferente. Tive sorte que um júri americano com gosto estranho premiou meu filme”, explica o realizador.

Os filmes de Nicolás são parecidos uns com os outros e com pouca coisa no cinema contemporâneo. Pereda usa ferramentas do documentário em enredos de ficção; são obras contemplativas, em que emoções fortes e humor são recorrências sutis. Quase sempre são protagonizados por Gabino Rodriguez e Tereza Sanchez, amigos do diretor. “Gosto de trabalhar com atores não-profissionais. Gabino é ator, mas antes disso é meu amigo. Ele não decora falas, constantemente improvisa, enquanto Tereza, que não é profissional, segue o roteiro. Gosto dessas forças diferentes, isso mantém o imprevisto na filmagem”, analisa.

O filme mais recente de Nicolás é “As melhores canções”, que possui com a música um encantador vínculo emocional. O diretor explica que o título não apenas recorre a músicas românticas para explicar partes do enredo - a ruptura familiar e uma certa procura por amor -, mas também remete aos álbuns de “maiores sucessos” de uma banda. “Esse é como se fosse meu ‘maiores sucessos’. Neste filme o espectador encontra a compilação de todos os filmes que fiz”, ressalta.

“Meus filmes são baratos. Filmamos em locações que conheço, casas de amigos”, comenta Nicolás.  “É estranho fazer um filme com orçamento de U$ 400 mil, como em ‘As melhores Canções’. É um filme que se parece com meus anteriores porque eu decidi que, agora que recebo dinheiro, vou pagar adequadamente todos que me ajudaram no passado, e não mudar a maneira de filmar”, ressalta.

“Nos últimos seis ou sete anos o circuito exibidor do México mudou”, diz Pereda. “Abriram mercado para filmes pequenos e estranhos, europeus e latino-americanos. A Cinemateca mexicana exibe filmes europeus importantes junto com obras latino-americanas menos conhecidas. Um filme meu tem em geral 10 ou 15 mil espectadores, o que é relativamente um público pequeno, mas para mim é fantástico. Eu faço filmes com quatro amigos, em duas semanas. Então esse público é ótimo”, comenta.

*Viagem a convite do Cine BH

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Família e fé no cinema nacional
















Hugo Viana*

BELO HORIZONTE (MG) - Os filmes brasileiros que chegam às salas de cinemas parecem não representar a complexa e vasta geografia da cinematografia nacional; são filmes em geral bancados por grandes produtoras, enquanto obras independentes ainda procuram chance para entrar (e permanecer) em cartaz no circuito exibidor.

A real oportunidade para descobrir o que vem sendo filmado no Brasil parece ser em festivais de cinema. A 6ª edição da Mostra de Cinema de Belo Horizonte (Cine BH) mostrou, no sábado à noite, dois filmes nacionais recentes que, em hipóteses otimistas, terão poucas sessões em salas de cinema alternativo.

Apesar de "Éden" (RJ), de Bruno Safadi, e "Cru" (DF), de Jimi Figueiredo, não serem exemplares excepcionais de cinema, são filmes que trabalham perspectivas diferentes de narração e estilo, obras dirigidas por cineastas que superam técnicas que pelo uso excessivo viraram uma espécie desgastada de regra.

Curiosamente são filmes ligados por um interesse de observar classes menos favorecidas, a influência da moral religiosa no cotidiano e assim reformular pecados do passado, mas sem ressaltar a pobreza ou a fé como marca decadente, e sim como impulso para mudanças. São personagens movidos pela crença em algo, movimento que tem pulsões de morte e vida.

Em "Éden" Bruno Safadi narra a história de uma mulher grávida de oito meses (Leandra Leal) que perde o marido, assassinado. O vazio gera questionamentos sobre o motivo da existência e a faz procurar algum tipo de consolo na religião. Lá é acolhida por um pastor (João Miguel), figura misteriosa, popular mas ao mesmo tempo ambiciosa.


Safadi tem um discurso relativamente ambíguo; parece ao mesmo tempo respeitar a igreja como possibilidade de assistência emocional e propor ironicamente que é uma instituição que, como uma empresa de capital forte, necessita em primeira mão dominar o mercado.

O filme tem forte carga emocional, tratando o frágil estado sentimental da protagonista como uma espécie de filme de terror; o drama de gerar vida ao mesmo tempo em que a morte assombra é filmado como pesadelo sem fuga aparente. Surge então a dúvida: a salvação está na crença em uma força superior ou no próprio homem?

Ao mesmo tempo em que explora diferentes rotas do cinema, com interessantes posicionamentos de câmera que fogem a uma maneira padrão de filmar, Safadi utiliza uma edição de som que chama mais atenção do que as imagens, uma falta de equilíbrio que parece enfraquecer certas sequências mais fortes, além de ir e voltar no tempo, maneira pouco eficiente de narrar uma história.

"Cru" começa ressaltando sua origem de peça teatral; possui diálogos rápidos e inteligentes, lembram talvez Tarantino no sentido de evitar falar diretamente sobre a trama, desenvolvendo ideias sobre assuntos paralelos. A base de sua força dramática está na atuação. No entanto, o filme parece não crescer além desse ponto; até perto do fim é essencialmente uma obra de atores e situações que possuem carga dramática pelo que é dito, e não através das imagens.

Em cena, dois homens convesam; um paga ao outro para que mate um certo homem maldito. A tensão cresce ao ponto de revelações melodramáticas. No último ato, mudanças bruscas operam modificações duras nos personagens. O filme adquire atmosfera sombria, mostra uma violência que embora seja visível na tela parece doer mais no coração. Ao mesmo tempo, Jimi demonstra habilidade para a edição, criando uma tensão entre o tempo e o espaço em que as ações são encenadas, de maneira discreta e eficaz.


*Viagem a convite do Cine BH

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A biografia de um cinéfilo


Hugo Viana

Quentin Tarantino se tornou uma espécie de mito pop na história do cinema dos anos 1990. Sua formação e início de carreira, com "Cães de Aluguel" (1992), são lembrados como atos de rebeldia: ele aprendeu métodos de criação baseado não no conhecimento teórico, em aulas na universidade ou trechos de livros, e sim através de um treinamento intensivo, vendo exaustivamente, por paixão, filmes clássicos ou esquecidos, até o ponto de compreender a linguagem cinematográfica.

A história de Tarantino, que começou como atendente de uma locadora, sua peculiar noção de cinema, a maneira de trabalhar num set de filmagem, as origens de seu estilo hoje facilmente reconhecível, o interesse por um gosto que não é o padrão - a base criativa do diretor é composta por produtos da cultura pop, projetos que geralmente são identificados como "inferiores" no meio cultural, terror, exploração de violência gratuita, kung fu - estão no lançamento "Quentin Tarantino" (Leya, 384 páginas, R$ 49,90), organizado por Paul A. Woods.

O livro parece uma iniciativa fundamental para compreender, a partir de diferentes pontos de vista, o que marca um estilo e define uma noção de autoria no cinema. Cada filme de Tarantino é analisado por críticos distintos, oferecendo um panorama amplo de recepção de cada obra - textos escritos na época de lançamento de cada longa-metragem, o que parece favorecer uma percepção mais precisa sobre o impacto de "Cães de Alguel" e "Pulp Fiction" no mercado cinematográfico. O livro também traz reportagens sobre bastidores de filmagens, resenhas das obras mais recentes, fotos raras e, especialmente, entrevistas reveladoras com o próprio realizador sobre seus projetos.

No primeiro longa-metragem, "Cães de Aluguel", Tarantino chamou a atenção, especialmente por duas cenas. A primeira, em que bandidos, antes de assaltar um banco, conversam numa cafeteria, discutem o real significado da música "Like a Virgin", de Madonna, parece ironizar o passado do filme de gangster. A segunda, uma longa tortura em que um dos bandidos joga gasolina em um policial para em seguida arrancar sua orelha, gerou reclamações, censuras, objeções severas de espectadores não habituados a ver, no cinema comercial, cenas dessa natureza - imagens que eram comuns no gênero horror adquiriram peso maior nos espaços tradicionais de exibição.

Tarantino passou pelo "teste do segundo filme", vencendo a Palma de Ouro de Cannes com "Pulp Fiction" (1994), título que remete a romances baratos, com elevada carga de sexo e violência. Reconhecido como bom diretor de atores (estudou interpretação durante seis anos), o realizador atraiu profissionais como Bruce Willis, Uma Thurman, John Travolta e Samuel L. Jackson, habituados a receber como pagamento o orçamento total do filme (U$ 8 milhões).

Embora esses dois filmes insinuem a presença de uma autoria, pistas de um realizador consciente dos estatutos do cinema, através de diálogos inesperados para a narrativa policial e uma exuberância apaixonada ao filmar os efeitos da violência, foram obras que cristalizaram questionamentos sobre o que pode o cinema: foram elogiados por um certo estilo transgressor, por revirar os códigos do gênero, ao mesmo tempo em que receberam críticas por não exibirem consciência sobre o impacto da violência, além de serem, às vezes exaustivamente, referentes ao cinema dos anos 1970.

A confusão de referências, a mistura intensa entre filmes asiáticos ou obras consideradas exemplares do cinema B, autores como George Romero ou Roger Corman, cineastas que trabalhavam na produção alternativas, com filmes sobre zumbis ou gigantes planas carnívoras, são recorrências na cinematograifa de Tarantino, representam influências essenciais para sua percepção de cinema.

Tarantino tem interesse pelo gênero horror, por mostrar, através de um exagero de estilo, o que filmes convencionais não ousam, criando roteiros que confirmam originalidade modificando influências diretas. Depois de "Bastardos Inglórios" (2009), incrível exemplar de "filme de guerra", devidamente modificado por uma caligrafia peculiar, atualmente Tarantino está em processo de finalização de "Django Livre" - com estreia prevista para 18 de janeiro -, obra inspirada em outra paixão do cineasta: o gênero western.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Filme celebra amor ao cinema


Hugo Viana

Alguns filmes mostram interesse particular pelo próprio cinema, criando enredos que destacam amor aos bastidores do processo cinematográfico. Entra em cartaz, no Cinema da Fundação, o uruguaio "A Vida Útil", de Federico Veiroj, que ao mesmo tempo em que desenvolve uma história de amor, narrando o percurso de um homem tímido até adquirir autonomia sobre suas escolhas, sugere uma reflexão sobre o estado do cinema atualmente, em especial dos locais de exibição.

O longa dura pouco mais de uma hora e pode ser dividido em duas partes. A primeira é fraca, lembra, na hipótese mais otimista, um filme institucional sobre a cinemateca, um documento que registra com rigor de observador partidário os problemas técnicos e o gradativo afastamento do público. Veiroj não desenvolve personagens ou história, parece exclusivamente interessado em reforçar que a cinemateca é um espaço importante por exibir "filmes bons"; é como um ensaio documental sem o efeito catalisador e fascinante do cinema.

A segunda parte se afasta dessa vontade quase obsessiva de reforçar a necessidade social da cinemateca e confronta a permanência do cinema na vida cotidiana de forma criativa e singela. Um dos programadores do cinema, Jorge, 45 anos, recebe a informação fechamento da cinemateca com um tipo discreto de rebeldia; projeta uma investida romântica, corta o cabelo, exerce o direito de encontrar encanto em coisas pequenas. Numa das cenas mais curiosas, finge ser professor de direito e narra com eloquência um texto escrito por Mark Twain sobre a necessidade da mentira.

Dessa forma, o tema cinema continua presente como argumento, mas de maneira sutil; o filme investiga a possibilidade de emular na rotina a carga emocional gerada pela relação entre imagem e som. "A Vida Útil" é uma homenagem ao cinema do passado, observando com melancolia monótona o mercado contemporâneo.