segunda-feira, 23 de julho de 2012

Representação sexual e humorada de Deus


Hugo Viana


Existe na cultura ocidental um catálogo de imagens bíblicas que oferecem representações visuais de cenas ou personagens importantes da história religiosa. Temos então a noção de Jesus como um bondoso homem branco de olhos azuis, cabelo longo e barba, e Deus como um respeitável senhor de cabelo, barba branca e túnica branca.

Na história em quadrinho "Deus, Essa Gostosa" (Companhia das Letras, 88 páginas, R$ 33), Rafael Campos Rocha sugere uma outra forma de desenhar Deus: uma mulher negra, cabelo afro e interessada em boxe. Subversão acentuada ao colocar Deus como dona de um sex-shop e enfaticamente apaixonada por sexo e constantemente irônica sobre sua condição onisciente.


"Fiz um deus que contrapusesse o Deus mais comum que aparece tanto nas doutrinas religiosas quanto nas obras de arte ocidentais", explica o autor. "Portanto, se ele costuma a ser branco, imperial, casto, prepotente, moralista, legislador, um verdadeiro WASP de meia-idade, achei que o meu deus deveria ser uma mulher, negra, sexuada, amável, divertida e algo indiferente as opções de vida das pessoas. Meu Deus não se importa com o que é Certo. Não tem nada que ela julgue Errado. A mesma coisa com a Verdade e outros dogmas", ressalta. 


Esta é a primeira graphic novel de Rafael, mas o autor já em amplo trabalho na área visual. É artista plástico (apresentou uma exposição no Mamam "Deus, Messi, almoço interminável (não necessariamente nessa ordem)", em que apresentava a personagem do lançamento) e parte de seu trabalho pode ser visto em seu blog (http://rafaelcamposrocha.blogspot.com.br). 

Na HQ a motivação não parece ser blasfemar o pensamento religioso, mas repensar através do humor certos dogmas ou discordâncias que geram conflitos, relacionando arte, religião, sexo e pecado. "É mais um deboche agressivo do que uma ironia. Note que também não estou julgando a opção religiosa de ninguém. É só que não consigo realmente me preocupar com a forma como as pessoas usam seus genitais", avalia Rafael. 


A HQ segue uma estrutura relativamente aberta, sem se prender a um enredo propriamente fixo, um pouco como se a história fosse sendo criada enquanto era desenhada. "Eu não faço um plano geral da obra, vou escrevendo e desenhando página à página", revela Rafael. "Quando muito, faço um esquema geral no papel de uma sequência de quatro páginas, no máximo. Aí escrevo, diagramo e desenho. Quando uma página está totalmente finalizada começo a outra. E assim por diante", ressalta o autor. 


Para contar a história dessa curiosa interpretação de Deus, o autor se apropriou da ideia de criação do universo em sete dias, tratando de elementos sagrados da religião a partir de referências da cultura pop. "Acho difícil saber onde parar e começar outra parte da história", diz Rafael. "Estava empacado na quarta página quando perguntei pro André Conti, meu editor na Companhia das Letras, como eu poderia organizar o livro. E ele disse: 'Divida em sete dias'. Achei uma grande ideia. Uma estrutura firme permite que você fique mais livre pra criar, pelo menos no meu caso", aponta.



"A 'Arte' foi superada
pela cultura popular"


Gostaria que você falasse sobre estilo e técnica de desenho. Como foi desenvolver visualmente este projeto?
Eu desenho diretamente no tablet, com o Photoshop. Mesmo o rascunho e anotações. Às vezes pego quatro folhas de sulfite e rascunho uns quadrinhos e a fala que vai neles, com um esboço muito tosco da posição dos personagens. Depois vou direto pro Photoshop, onde, em geral, modifico tudo. Pra fazer esse trabalho eu tive um período maior de concentração, sempre interrompido pela demanda do jornal e alguma revista. Foram uns seis meses desenhando direto. Depois fui fazendo pequenas modificações por um ano, enquanto eu já começava o meu segundo livro. Pensei em fazer uma graphic novel quando li "Issac, o pirata" de Christophe Blain, mas só me resolvi mesmo quando o André, da Companhia das Letras, me chamou. 

A certa altura deus e satã conversam sobre a arte e como as pessoas enxergam a distinção entre alta e baixa cultura. Esse trecho representa seu ponto de vista? 

Olha, representa mais a minha irritação com essa distinção, que não está isenta de rancor com relação aos meus contatos humanos com gente que se considera "alta cultura". Não acho que pastel seja melhor que literatura, mas entendo perfeitamente que uma pessoa prefira pastel à literatura. E que essa pessoa seja muito mais agradável, bondosa e inteligente do que um tradutor de grandes obras da literatura alemã, por exemplo. Depois, acho engraçado o desagrado que isso possa causar na gente que vive da fetichização da cultura. Não conheço nenhum artista produtivo sério que faça essa distinção. 

Então vem daí esse interesse de misturar elementos da cultura pop e personalidades intelectuais? 

Eu acho realmente que o Laerte e o Nelson Cavaquinho são muito melhores artistas do que o Guimarães Rosa e o Hélio Oiticica, por exemplo. As pessoas vão dizer que não se pode comparar, mas eu respondo que não comparar é um racismo e um classicismo que desabona somente a "alta cultura", a única beneficiada por essa distinção. Sei lá, acho essa coisa de Arte (com maiúscula) uma coisa muito burguesa e eurocêntrica. E que foi superada pela cultura popular industrial. Por outro lado, eu gosto muito de arte. Gente como Francis Alys, Andrea Fraser, Roman Ondak e Paul MacCarthy me mantém sempre acordado pra arte. Sem falar no neo-expressionismo alemão, período que adoro. Kippenberger é meu herói pessoal, assim como Immendorf. Também gosto muito de vários escritores, como Bruno Schulz, Robet Walser. Além de Marx, Foucault, Joyce, Homero... sei lá. Sou um consumidor de arte. Assim como sou um consumidor de quadrinhos e música pop. Não consigo entender como alguém que ame essas coisas possa fazer distinções qualitativas do gostar. 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Entre a polêmica e o crescimento

Hugo Viana

Um anúncio aguardado programado para a Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), que terminou na semana passada, foi a divulgação dos 20 autores que integram a primeira edição da Granta em português. A publicação de origem britânica é reconhecida por lançar no mercado editorial novos escritores, publicando coletâneas de "melhores jovens escritores" em língua inglesa (como, no passado, apresentando o inglês Ian McEwan e o norte-americano Jonathan Franzen) e espanhola (como Alejandro Zambra). 

Esta primeira edição em língua portuguesa sinaliza um importante momento do mercado editorial nacional; o lançamento, traduzido para inglês e espanhol, flagra a entrada no meio estrangeiro de escritores nacionais que nos últimos anos vêm conquistando espaço com uma escrita marcadamente pessoal. Dessa forma existe uma possibilidade de trânsito, algo que mesmo os clássicos historicamente apreciados da literatura feita no Brasil não conseguiram com regularidade. E agora autores, como Julián Fuks, Antônio Xerxenesky, Michel Laub ou Carola Saavedra, que recentemente surgiram como revelações, têm a chance de conquistar mais leitores no cenário nacional e especialmente no mercado de fora. 

É preciso notar, no entanto, que este lançamento, "Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros" (287 páginas, R$ 34,90), veio com algo de polêmica. Os 20 escritores foram escolhidos entre 247 autores que mandaram textos para a curadoria, composta por escritores e críticos literários. Destes, no entanto, os jurados afirmaram, durante a coletiva de imprensa do lançamento, que apenas 80 foram lidos. E do grupo selecionado boa parte fazia parte de uma lista prévia, entregue aos jurados pelos editores, mapeando bons escritores abaixo dos 40 anos. 

"Penso que sempre haverá polêmica quando alguém se propuser a definir o que seriam 'os melhores escritores'", sugere o paulista Julián Fuks. "Esse tipo de avaliação absoluta tem pouco a ver com literatura, não coaduna com a matéria de que quer tratar, e no entanto o mercado literário cisma em se pautar nisso, amplificando a importância dos prêmios e das listas e diminuindo o espaço da crítica embasada. Para os escritores da Granta, dada a polêmica, convém que nos preparemos tanto para eventuais elogios quanto para ataques mais ferinos", diz o autor.

"Estou evitando me inteirar de polêmicas sobre a Granta", comenta o gaúcho Antônio Xerxenesky. "A vida é curta demais para ficar incomodado com isso, apesar de que costumo achar teorias da conspiração engraçadas. Claro que não concordo 100% com a lista escolhida - a minha seria muito diferente. Mas, enfim, a lista é o resultado da escolha de um júri bastante diverso, que vai de Moser a Tezza. Óbvio que vão apontar panelinha, compadrio. Qualquer lista geraria esse tipo de reação", comenta. 

Pensando além da polêmica, este parece um momento especial para os autores selecionados. "Não dá pra negar que é uma oportunidade fantástica", ressalta Chico Mattoso, nascido na França, mas que mora em São Paulo. "Caminhos se encurtam, novas portas são abertas, ganha-se visibilidade. O fato da seleção ter sido feita por um grupo de jurados altamente qualificados funciona como um incentivo adicional. Mas num certo sentido - no mais importante, certamente - nada muda. Continuo acordando toda manhã e tentando escrever um pouquinho melhor do que escrevi na véspera", explica. 

Um dos autores menos conhecidos da seleção é Cristhiano Aguiar, nascido na Paraíba mas radicado em Pernambuco - se formou em Letras na UFPE. Aos 31 anos, Cristhiano está dentro do recorte temporal proposto pela Granta (os autores selecionados tinham que ter nascido a partir de 1972). "Muitas vezes o termo 'jovem' pode atrapalhar. Mas não creio que esteja sendo o caso na literatura. Embora tenhamos exemplos como o de José Saramago, cuja produção mais relevante se inicia em idade madura, vários escritores começaram jovens. Clarice Lispector e Raquel de Queiroz, por exemplo, eram meninas quando publicaram seus já ótimos primeiros romances. É importante ter em mente a fascinação que nossa cultura possui pela ideia do 'jovem', o potencial de mercado que existe", sugere. 


Christiano luta contra o silêncio



Entre autores estabelecidos, que nos últimos anos tiveram livros publicados por grandes editoras (como Michel Laub e Daniel Galera, pela Companhia das Letras, ou Luisa Geisler e Tatiana Salem Levy, pela Record), a seleção da Granta incluiu um escritor ainda pouco conhecido: o paraibano Cristhiano Aguiar. O escritor, pesquisador e crítico literário formado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco, tem em seu conto selecionado, "Tereza", uma interessante apresentação ao mercado nacional e estrangeiro.

"O único livro que publiquei até agora foi 'Ao Lado do Muro', que não pretendo republicar, lançado por uma pequena editora do interior da Paraíba", lembra Aguiar. "Ainda é cedo para saber o que poderá mudar a partir da participação na Granta, mas ao menos significa sair um pouco da invisibilidade. Estar na Granta é fundamentalmente um estímulo para continuar meu trabalho", ressalta. 

Em "Tereza", é possível notar uma escrita delicada, uma narração que a partir da natureza, ou talvez o ambiente em geral, avalia o desenvolvimento emocional de seus personagens. "Há em 'Teresa' um pano de fundo trágico, o tema das enchentes no interior do Nordeste. Mas esta é uma questão social que só consigo trabalhar de modo oblíquo, torto, convidando o leitor a participar de um mundo profundamente marcado pela imaginação, pelo mito, pelo barroco", diz o autor, que no conto trata da personagem do título e da sutil relação dela com o marido. 

Este conto fará parte de um futuro lançamento de Cristhiano, "Silêncio". "Após publicar, em 2006, meu primeiro livro de contos, decidi que só publicaria de novo se de fato tivesse um material com o qual me sentisse seguro. Se não houvesse um mínimo para dizer aos leitores, por que mais um livro nas estantes, mais um livro em silêncio?", diz. 

"Em 2010 uma editora me contatou interessada no meu trabalho. Em 2011, eu finalizei o livro, escolhi e reescrevi os contos, mas o projeto acabou não indo para frente. E este 'não' foi fundamental, pois deixou claro que tipo de literatura quero construir e me ensinou que eu precisava deixar quase tudo que escrevi para trás. Eu precisava recomeçar. Recentemente retomei o livro, cortei a maioria dos contos e só sobraram cinco: é este conjunto que chamo de 'Silêncio', um livro magro. Não tenho pressa em publicá-lo, pois estou trabalhando nos Estados Unidos em um segundo romance, ainda sem título, um conjunto de novelas interligadas, que possuem um mesmo narrador e alguns personagens em comum", detalha. 

Depoimentos 


Cristhiano Aguiar
"Toda antologia retira sua força da polêmica. Ano passado escrevi uma resenha em que propunha a hipótese de que pudéssemos pensar as antologias como eventos que tentam sacudir o meio literário; elas são propostas de valores e indicam claramente as preferências não só dos seus organizadores, mas também de certas linhas de força do tempo no qual foram produzidas, assim como podem nos ajudar a entender o mercado com o qual buscam dialogar. Assim como outras antologias, a Granta será condenada, defendida, relativizada, celebrada". 


Chico Mattoso 
"Toda separação etária tem algo de cruel. Cada escritor tem um tempo de maturação. O sujeito pode chegar aos 40 anos com uma literatura consolidada, mas também pode ainda estar construindo seu percurso. Por outro lado, uma antologia precisa de critérios objetivos, que invariavelmente serão limitadores. Não tenho nenhum problema em ser chamado de 'jovem escritor'. Claro que é uma classificação curiosa, porque pressupõe que originalmente os escritores são senhores caquéticos, mas é bem melhor do que ser chamado de velho". 


Julián Fuks
"O edital da Granta me pegou num mau momento. Eu havia entregado pouco tempo antes o meu livro à editora, 'Procura do Romance', não tinha nenhum texto que eu prezasse na gaveta. Decidi escrever alguma coisa especialmente para a ocasião, mas, nesse momento de impasse, só consegui retornar ao mesmo personagem. Fiquei pensando o que faltara. O resultado foi esse conto mais político, que entra mais no cerne da questão da ditadura. É um conto autônomo, mas talvez funcione quase como um epílogo ao romance".


Antônio Xerxenesky
"Acho que a maior vantagem da Granta é essa: ser traduzido e exposto em uma vitrine reluzente. Pode render - e já está rendendo - contatos internacionais para futuras traduções. O rótulo 'jovem escritor' é algo midiático com o qual temos que lidar. Não há muito como escapar disso. O jovem é visto como salvação, futuro. Na música não é diferente - quantas salvações do rock não surgem mensalmente? Quantos futuros da música pop?"

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A escrita primitiva de Dany Laferrière


Hugo Viana*



PARATY (RJ) - Alguns autores parecem falar sobre a porção universal da existência mesmo quando escrevem sobre as tradições mais particulares de seus países de origem. Parece o caso do autor haitiano Dany Laferrière, 59 anos. Em "País sem Chapéu" (Editora 34, 240 páginas, R$ 39), Dany escreve naturalmente sobre hábitos simbólicos do Haiti, como as três gotas de café pingadas no chão dedicadas aos mortos antes do primeiro gole ou o próprio título, que remete ao mundo dos mortos. A história é sobre um escritor que, aos 43 anos, regressa depois de passar duas décadas no Canadá - enredo em parte baseado na biografia do escritor -, e então reencontra a mãe e a tia morando num país politicamente arrasado, largamente povoado por pessoas cujo nível de pobreza parece assustador mesmo para o padrão do terceiro mundo. Dany escreve como um "pintor primitivo", enfatizando cores, gostos e odores, de maneira que as sensações provocadas pelo cotidiano real ou imaginado dos haitianos parecem mais importantes do que a compreensão imediata dos valores da cultura. O livro alterna capítulos chamados "País sonhado" e "País real", efetivando uma visão dupla, política e afetiva, sobre uma região significativa em termos pessoais. Nesta entrevista o autor explica seus métodos e tradições do Haiti. 


O personagem do livro é um escritor. Como enxerga o recurso do escritor dentro do enredo? 
Eu fui jornalista por um longo tempo no Haiti e no Canadá, e nesse livro utilizo as experiências que tive como jornalista: um escritor que observa e conta o que vê através da literatura. Assim como Hemingway. Para mim a literatura é lembrar, então meus livros têm que se parecer com minhas experiências passadas. A inspiração não vem de cima, vem da base, do que vivi. As pessoas gostam de ler jornal, então me perguntei se poderia colocar o estilo jornalístico na literatura.


No livro existe o conceito de “escritor primitivo”, que talvez que se encaixe nessa ideia de alguém que está presente na cena e para escrever se apropria dos elementos ao redor. 
O escritor primitivo vem do pintor primitivo, que é considerado um pintor não-intelectual, que utiliza a essência e não a teoria. Quando olhamos uma pintura encontramos o ponto de fuga, que mostra o fundo do quadro. O quadro convida a pessoa que o observa a entrar em seu interior. Na pintura primitiva tudo está no primeiro plano e o ponto de fuga não está no quadro, e sim no plexo de quem observa. Na pintura primitiva as cores ressaltam a cena e para ver melhor a pessoa se afasta, enquanto a pintura clássica faz com que o espectador se aproxime.


E como aplica esses conceitos da pintura primitiva na escrita? Podemos falar de uma escritura emocional?
Sim, emocional, instintiva, que usa muito as essências, as cores, os odores, o gosto. Assim a pessoa que lê não pode julgar; o mundo que eu apresento é vivo, tudo está lá. 


O livro é biográfico? Existe ficcionalização no enredo?
Sim, 80% é autobiográfico, mas não podemos dizer que é uma biografia, é literatura, não quero informar o leitor sobre minha vida. Eu quero saber se posso utilizar elementos da vida cotidiana na literatura. 


Um trecho em particular me fez pensar na possibilidade de biografia, em que você volta para casa e sua mãe e tia, antes de você sair para a cidade, fazem uma espécie de ritual, e apenas depois você percebe que elas choravam. É uma cena muito íntima. Você enfrentou dilemas sobre a exposição pessoal?
Não tive preocupação de entrar na história de minha família. Quando eu era criança costumava ler os clássicos e ver documentários sobre grandes autores como Tolstoi ou Flaubert, que exibiam as cidades em que eles cresceram, a casa onde viveram e isso sempre me fascinou, o relacionamento entre literatura e realidade. Então foi natural colocar minha família nos livros. No Haiti tem muitos escritores, mas não pessoas nos enredos, e eu achava que minha mãe e minha tia mereciam estar na literatura. Uma vez perguntaram a minha avó o que achava de estar em meus livros, e ela disse que gostava porque agora não precisava se lembrar das histórias, já que estavam registradas. 


O livro traz a ideia de retorno, de voltar a encontrar pessoas e lugares, neste caso um país politicamente diferente. Gostaria de saber primeiro sobre essa volta, e depois como foi a escrita sobre a volta. 
Quando entro nessas questões de escrita é como um labirinto, eu me perco. Escrevo com o máximo de realidade, mas também de sonho. Antes desta entrevista comecei a pensar que converso com a mesma liberdade com que escrevo, então daqui a 30 ou 40 anos quando eu não me lembrar de muita coisa e ler esta entrevista eu não saberei onde se encontra a verdade. O tempo da literatura é um tempo voluntário, nós escolhemos ambientar o livro naquele momento por determinadas razões. O tempo da vida é involuntário, nós não sabemos como as coisas vão se passar. Minha vida se tornou uma ficção. É assim que eu passei 36, 37 anos no exílio. Um terço da minha vida eu passei com gente que não me conhece. Aqui eu não tenho testemunhas. No Haiti, se você diz qualquer coisa sobre mim, alguém pode dizer: 'É mentira! Eu conheço a mãe dele'. Aqui eu posso dizer o que eu quiser, e eu digo muitas coisas que não são verdades. Eu sou um escritor, e não sei mais o que é ficção e o que é realidade. 


Então podemos dizer que você não divide a vida pessoal e a literatura?
Na realidade eu me sirvo de minha biografia para fazer literatura. Minha biografia é feita de histórias que chegaram a mim por ser escritor.


Você falava do exílio, quando viveu 20 anos no Canadá. Qual a sensação ao apresentar as tradições do Haiti a esse leitor, que tem uma cultura tão diferente da haitiana? 
Isso é a literatura, aumentar histórias pessoais para o nível universal. Uma prima minha que morava em Petit Goave em minha infância me perguntou: como o leitor estrangeiro vai entender o odor do café, essas são coisas que ninguém vai compreender. E eu disse: mas não é uma questão de compreensão, é de sensibilidade. Lemos livros que já têm séculos, e a gente sente coisas que ninguém mais pode sentir, é particular a cada um, é o milagre da escrita. 


O livro é dividido em país sonhado e real; essa parece uma forma criativa de debater algo ao mesmo tempo afetivo e político. Como pensou essa estrutura?
Para mim a política é um assunto íntimo. No meu trabalho de escritor procuro primeiramente a realidade e em seguida a política no interior dessa realidade. A política invade a vida nos países do terceiro mundo. Eu quis separar essas duas realidades para não deixar o elemento político invadir, para mostrar também a vida. Na literatura africana ou caribenha, onde há ditadura, a política está no primeiro plano, e a vida no segundo plano, e eu não quis isso, não queria que a política predominasse. É isso que os ditadores tentam fazer, que tudo se torne político e as pessoas não tenham mais uma vida. As pessoas dizem: queremos derrubar esse ditador, não dizem: eu quero viver. O que está em jogo é o poder, e não a vida. 


*Viagem a convite do Itaú Cultural

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A erudição humilde de Ian McEwan

Hugo Viana*



PARATY (RJ) - Quando Ian McEwan conversou com a imprensa no sábado, durante a Flip, a impressão era de erudito e ao mesmo tempo humilde professor. Aos 64 anos, o escritor inglês falou sobre o ofício do escritor e processos de escrita.

“Antes de ser escritor eu era um leitor apaixonado”, disse McEwan. “Acho que todos os escritores precisam estar cientes das tradições literárias de seus idiomas. Escritores modernos não inventaram os romances. Não podemos ignorar os gênios que enriqueceream nossa língua. Devemos agradecer aos que nos precederam e seguir adiante”, comentou, ressaltando a importância da memória na literatura.

O autor fez o lançamento mundial na Flip de seu novo livro, “Serena” (Companhia das Letras, 384 páginas, R$ 39), em que mistura espionagem, romance e os efeitos da ficção no mundo real.

A personagem principal é novamente uma mulher construída com rigorosa profundidade psicológica. “Eu conheci algumas mulheres. Posso dizer que elas também são humanas e nós homens dividimos muito com elas. Não concordo com a demarcação na literatura, velho, novo, gênero, nações. Li recentemente um livro narrado pelo cachorro de Marilyn Monroe, e niguém sabe como um cão pensa. Para fazer isso é preciso ser romancista”, comentou.

“Quando você se sintoniza com seu personagem deixa de ser um esforço constante. É preciso habitar os personagens, ajustar sua mente para um certo sinal, e então as percepções seguem”, comentou, sobre Briony, personagem de “Reparação”.

“Para ler um livro é preciso paciência, talvez oito ou 36 horas de atenção contínua”, disse. “Aposto que não estou só, mas nem sempre termino os livros que começo. Muitas vezes paro nas 10 ou 12 páginas iniciais”, falou, lembrando a importância de convidar o leitor para a leitura.

“Existe uma técnica para pegar trutas no rio. É preciso habilidade. Você coloca a mão embaixo da água e gentilmente faz cócegas em suas guelras, então ela fica completamente adormecida e você pode retirá-la facilmente. É um pouco a relação que tenho com o leitor”, refletiu.

*Viagem a convite do Itaú Cultural

Frazen timidamente humorado

Hugo Viana*



PARATY (RJ) - Jonathan Franzen, 52 anos, encontrou novos e bem sucedidos rumos no fim de 2010, época do lançamento do livro “Liberdade”, quando o autor foi capa da influente revista Time, que o definiu como o “grande romancista americano”.

A partir desse marco Frazen administra reações; passou a ser reconhecido nas ruas e, em sua percepção humorada, ter a antipatia de escritores. “As pessoas passaram a me odiar depois dessa capa”, lembrou o autor, durante a coletiva de imprensa na Flip. “Até eu me odiaria se estivesse do outro lado. Os escritores são de forma geral muito invejosos”, brincou. 

Durante quase uma hora de entrevista Franzen mostrou um tipo contido de empatia, um perfil timidamente humorado. Antes de cada resposta ele permanecia em silêncio durante quatro ou cinco segundos, hesitava, baixava o olhar, e então tentava explicar processos de escrita ou peculiaridades da criação com alguma boa frase puxada da memória. “O Brasil está me deixando filosófico”, disse.

Franzen parece ressaltar a herança literária norte-americana, o vínculo estilístico com a narrativa clássica, falando sobre literatura a partir de conceitos quase sempre voltados à estrutura do romance, construção do personagem e desenvolvimento dramático. “Minha ideia de personagem é alguém em conflito. Você quer ser leal mas também quer se divertir, quer ser rico mas também uma boa pessoa. Definindo personagens em termos de oposição existe drama”, refletiu.

Franzen é celebrado no meio literário por escrever sobre impasses culturais, épicos que tratam de dilemas políticos e sociais contemporâneos. “Preciso deixar minha política de fora quando escrevo ficção”, ressaltou, sobre democratas e republicanos em seus enredos. “Se você for um bom escritor rejeita a ideia de que todos democratas são bons e os republicanos são ruins. E se você for um certo tipo de escrtior vai tentar provar o oposto”, sugeriu.

*Viagem a convite do Itaú Cultural

Rápidas da Flip


FLIPORTO
A Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), evento coordenado pelo escritor e advogado Antônio Campos que acontece Olinda, entre os dias 15 e 18 de novembro, divulgou, durante a Flip, informações sobre a edição deste ano. Além dos 11 nomes anunciados em junho, o curador do evento, Mário Hélio, confirmou a presença do escritor português José Rentes de Carvalho, 82 anos. “Ele disse: ‘Não é bom negócio para você’, por se considerar um bom ouvinte e não um bom falador”, lembrou o curador. Além de novidades na estrutura ainda não reveladas, nesta oitava edição será lançada a revista trimestral artFliporto, editada pelo jornalista Schneider Carpeggiani.

SÁTIRA
O escritor Gary Shteyngart nasceu na antiga Leningrado, hoje conhecida como São Petersburgo, na Rússia. Aos sete anos sua família se mudou para Nova Iorque, porque “a Rússia precisava importar cereais e os Estados Unidos judeus”, explicou o autor, revelando durante a Flip suas marcas mais conhecidas: uma certa insatisfação política disfarçada de ironia. “Sou um pessimista, para mim o copo está quase vazio. Mas acredito que a ficção vai bem, seria bom se as pessoas lessem”, explicou o autor, que neste momento trabalha num livro de memórias. “Homens russos vivem até 56 anos no maximo, então está na hora de escrever”, disse o autor, que completou 40 anos no começo do mês. 

POLÊMICA
Vem rendendo discussões a divulgação dos nomes que compõem a revista Granta “Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros”, lançada durante a Flip. Pela primeira vez com uma edição no País, a Granta é conhecida por apresentar ao mercado escritores abaixo de 40 anos, e agora lança autores nacionais no meio internacional. A polêmica é a respeito do processo de seleção: dos 247 textos enviados para a curadoria, apenas 80 foram lidos. E dos 20 autores selecionados, a maioria fazia parte de uma curiosa lista prévia feita pelos jurados: um mapeamento que estudava previamente quem eram os “autores jovens mais interessantes” do Brasil.  

sábado, 7 de julho de 2012

“Escrever é apagar tudo”

Hugo Viana*


PARATY (RJ) - O chileno Alejandro Zambra, 37 anos, é o tipo de autor que escreve demonstrando amor pela literatura, colocando no enredo personagens leitores ou escritores, exercendo através da ficção uma espécie de arqueologia de seu passado como leitor. Ele veio à Flip 2012 e apresentou “Bonsai”, recentemente lançado pela Cosac Naify.

O livro é uma história de amor, ou talvez mais precisamente uma história de amor trágico, em que a literatura está presente em citações diretas, através de autores e livros, ou como vaga lembrança, na incorporação de estilos familiares de escritores como Borges ou Vila-Matas.


“Os autores surgiram naturalmente no texto pois fazem parte do meu território de leitura”, explicou Zambra, em entrevista exclusiva à Folha de Pernambuco. “Não existe uma intenção canônica na minha escrita, a literatura é como uma comunidade: existem pais, irmãos, avós, e escrever é reconhecer essa família. Tenho uma relação amorosa com a literatura, os livros já me fizeram feliz, por assim dizer, e também já me decepcionaram”, ressaltou.


O enredo fala sobre dois personagens, Julio e Emilia. A primeira frase é particularmente inspirada, revelando que "no final ela morre e ele fica sozinho", terminando o parágrafo com "O resto é literatura". “Não lembro exatamente como veio essa idéia. Lembro que acordei com a sensação de que na noite anterior tinha escrito uma boa frase, o que às vezes é inteiramente incorreto e vemos que a frase é na verdade muito ruim”, brincou.


“Eu não tinha tanta consciência do que fazia enquanto escrevia. Demorei a começar o livro. Era como uma dieta. Você diz: vou começar amanhã, e passa sempre a adiar. Uma vez que a narração surgiu o texto começou a abundar”, detalhou.


A história desses jovens é apresentada como um panorama do amor abaixo dos 30 anos, a confissão de sentimentos nem sempre doces. “Eu queria que eles fossem como tópicos, quase irreais. Mas há uma dose de realidade, e por isso há uma possível identificação. Na juventude não sabemos onde estamos, não temos ainda uma identidade. Eu tentei deixar esses personagens abertos a essas questões”, comentou.


O título “bonsai” parece conter metáforas sobre a literatura, em especial a noção de corte de palavras até chegar à pequena e ao mesmo tempo bela estrutura. “A proposta do livro é a brevidade deliberada, uma espécie de esqueleto da história”, revelou o autor.

Até chegar a essa estrutura mínima, Zambra passou por um intenso processo de corte. “O segundo capítulo originalmente seria quase um livro. Mas no fim acabei cortando para quatro páginas”, exemplificou. “Uma vez conversei com um amigo sobre aquele lugar comum, que todas as boas histórias já foram escritas, a página em branco, a luta contra o bloqueio. São idéias dramáticas, e meu amigo disse: ‘Eu creio que a página está preta, e escrever é apagar tudo, passar uma borracha para ficar com o mínimo sem sentir que estamos nos traindo”, sugeriu.


CINEMA


“Bonsai” foi adaptado para o cinema pelo diretor chileno Jiménez e estreou no Festival de Cannes de 2011. “Fiquei amigo de Cristián, conversamos muito sobre a novela, e penso que aprendi muito sem fazer nada diretamente no filme”, apontou o autor, que diz ter agora uma “inquietude audiovisual”. “A literatura e o cinema são muito distintos, e então comecei a entrar nessa diferença, me interessando especificamente no que apenas a literatura ou o cinema podem”, explicou.


Atualmente Zambra trabalha em um curioso projeto: filmar bibliotecas de amigos e fazer perguntas gerais sobre literatura. “Me interesso em entrar na casa das pessoas e conhecer como dispõem os livros nas bibliotecas: virados para a parede, como uma punição infantil, jogados no canto da estante, esquecidos. Quero filmar durante dois anos e não sei no que vai dar”, adianta. 


*Viagem a convite do Itaú Cultural

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O fracasso segundo Vila-Matas

Hugo Viana*

PARATY (RJ) - Leitores têm o curioso hábito de resumir a bibliografia de um escritor em poucas idéias, sugestões que indicam as obsessões mais recorrentes nas obras de um autor. No caso do espanhol Enrique Vila-Matas, que ontem conversou com a imprensa na Flip sobre seu novo livro, “Ar de Dylan”, e um pouco a respeito de seus métodos de escrita, a idéia principal seria o interesse pela própria literatura, incluindo em seus enredos escritores vagamente perdidos numa realidade às vezes pouco afeita a fantasias literárias.

“Quando perguntam a Lobo Antunes de que trata uma novela sua ele diz que é exatamente sobre tudo o que está escrito, nenhuma palavra a mais ou a menos”, comentou Vila-Matas, tentando resumir seu novo livro. Assim como “Dublinesca” e “Bartleby e companhia”, a obra possui um personagem do meio literário, neste caso um escritor de 60 anos, e parece ser através da literatura que Vila-Matas se interroga sobre os meios da cultura contemporânea. “Os temas da literatura são sempre os mesmos, as formas de contar as histórias é que mudam”, ressaltou.

O livro continua questionamentos presentes em obras anteriores, especialmente sua curiosa percepção do fracasso, escrevendo sobre a falha humana como maneira de representar a arte ou mesmo a vida privada. “A fascinação pelo fracasso é a fascinação pelo negativo, por tudo aquilo que não se fala tanto, o oposto do que podemos chamar de positivo, o que já conhecemos”, disse Vila-Matas. “Conhecemos a luz do sol, ela nos é dada, mas não conhecemos tanto a tormenta. Minha literatura se interessa pelas zonas mais escuras, a outra cara da realidade”, refletiu.

Vila-Matas parece enxergar a literatura como uma espécie de procura arqueológica sobre um passado esquecido e ao mesmo tempo vagamente familiar. “Um escritor é como um espião, que passa horas e horas em frente a uma janela, embaixo da chuva, e às vezes vê algo, outras não encontra nada. Ele busca o que ainda não foi encontrado, o que está inconsciente”, sugeriu o autor.

Ao colocar o escritor dentro do enredo parece natural que a pergunta seguinte seja: qual o sentido da escrita? “Uma vez passei uma tarde inteira para escrever uma linha. Tentei algo que foi dar voltas ao redor da mesa mas não saiu bem. Eu me interrogo sobre o papel da escrita. Um dos meus trabalhos é manter a memória cultural. Literatura é algo que cada vez mais vai se perdendo. Por isso me aproximo de escritores que para mim são importantes manter na memória. Reivindicar através da literatura cânones pessoais, não o cânone oficial, como Robert Walser, Kafka, uma espécie de crítica literária feita através da ficção”, comentou o autor, listando autores que geralmente aparecem em seus enredos.

Ao mesmo tempo essa noção de defesa cultural vem nos termos pessoais do autor, sem querer apontar uma relação definitiva com a literatura. “Não há uma verdade única e estável. Minha literatura nunca afirma algo, me dedico a duvidar de tudo, a fazer um discurso distinto do oficial”, explica. 

*Viagem a convite do Itaú Cultural