segunda-feira, 21 de maio de 2012

Os vampiros de Pablo de Santis


 Hugo Viana


Na literatura sobre vampiros existem exemplos de heróis tentados por vilanias, ambiguidades que passam necessariamente pela sede de sangue e aversão a raios solares. O novo livro do escritor argentino Pablo de Santis, “Os Antiquários” (Alfaguara, 200 páginas, R$ 29,90) fala sobre vampiros urbanos em Buenos Aires nos anos 1950, mas em momento algum usa a palavra “vampiro”. A impressão é que o autor embaralha clichês dessa mitologia, imbuindo seus personagens de uma surpreendente carga humana. O protagonista é Lebrón, jornalista de pouca idade que escreve meio sem querer uma coluna de esoterismo. Passa a ser alvo de investigadores e acadêmicos que acreditam na existência de seres mitológicos. Lebrón é transformado no que aldeões com tocha temem por desconhecer, e então o que atrai na escrita ágil do autor argentino é a capacidade de colocar na mesma página o gênero policial e os meios da literatura fantástica, fazendo uma espécie de tratado alegórico e universal sobre amor, memória e fugas necessárias. Esses vampiros são chamados antiquários, o que sugere a vida longa e o apego ao passado. São colecionadores, cercam-se de objetos remanescentes de um período anterior indefinido mas vagamente familiar, e através desses objetos tentam manter em ordem a vida eterna. Nesta entrevista o Pablo comenta seu fascínio por histórias de terror e ressalta que a literatura fantástica é uma extensão da realidade.

O livro é sobre vampiros, mas em momento algum eles são nomeados assim e nunca é explicada a real natureza deles, contrariando expectativas comuns ao gênero. Como foi criar esse enredo?
Sempre gostei de filmes de terror. Aos 12 anos ia com amigos ao cinema numa paróquia perto de minha casa e víamos filmes que terminavam 1h da manhã, e depois voltávamos sozinhos e mortos de medo. Também lia histórias de terror, em especial uma revista chamada "Dr. Tetrick". E sempre fui devoto dos livros de Stephen King e dos filmes de John Carpenter. "Os Antiquários" surgiu da combinação desse gosto pelo fantástico, e também de minhas lembranças de quando trabalhava na Abril nos anos 1980: era um editorial de revistas, enorme e antigo, da qual tirei personagens e situações que aparecem no livro.

A partir do vampirismo surgem outras questões que parecem se afastar da alegoria mais famosa sobre vampiros - a relação entre sangue e vida -, como por exemplo a memória e a idea de vampiros como colecionadores. Gostaria que falasse sobre essas alegorias: memória, colecionismo e tempo.
Creio que isso surge de minha consciência de uma série de objetos que eu usei e que recordo perfeitamente - a máquina de escrever, o telefone discado, a TV em preto e branco - que parecem antiguidades remotas para meus filhos. Imaginei que se alguém pudesse viver por muito tempo buscaria se rodear de objetos velhos como se fossem muralhas para resistir a mudanças. As coleções me interessam porque, segundo posso observar, os colecionadores sempre estão obcecados com o que lhes falta. É como se juntassem canetas, moedas ou selos não para tê-las, mas para desenhar a forma da peça que falta. E tudo que falta, tudo que não está, tudo que é preciso buscar é tema privilegiado na literatura.

O protagonista e seu mentor são leitores, têm um sebo. Existia algum aspecto que você queria falar sobre o mercado editorial a partir dessa escolha?
Sempre gostei do ambiente dos sebos: em Buenos Aires existem muitos, e me parecem realmente misteriosos. Há alguns onde os livros são tantos que parecem formar paredes, e que se alguém pega um volume a construção corre o risco de desmoronar. Sempre gostei de comprar livros e guardá-los. Tenho uma espécie de cultura dupla: estudei Letras e sei quem é Barthes ou Northorp Frye; ao mesmo tempo escrevi histórias e trabalhei quando jovem em revistas sobre espetáculos de qualidade duvidosa. Os sebos são onde a cultura se reúne: a chamada "alta" e a "baixa" ou "popular".

O livro se passa nos anos 1950, época politicamente importante na Argentina. Ao mesmo tempo existe no protagonista um desejo consciente de permanecer alheio a questões políticas. Como pensa a história da Argentina a partir deste livro?
Era um momento muito particular na Argentina: a sociedade mudava e Buenos Aires se convertia a passos gigantes numa cidade moderna. Mas existia uma divisão brutal no país. O peronismo dividiu as águas: não existia ninguém neutro, ou se era peronista ou antiperonista. Eu, por exemplo, venho de uma família antiperonista. No livro aparecem alguns dados da realidade, mas um pouco escondidos. Por exemplo, como Perón controlava a imprensa através do papel, já que este era um monopólio do estado; também o bombardeio da Plaza de Mayo, quando aviões da Marinha de Guerra mataram centenas de pessoas. Creio que não há muitos exemplos de algo semelhante no mundo: um ataque aéreo contra o próprio país. Tratei de colocar os personagens na situação de estrangeiros: de alguma maneira na literatura fantástica sempre está a ideia de que a "verdadeira história do mundo" é outra, muito diferente da real. Acho que a literatura não funciona como reflexo do real, como acredita a crítica sociologista, que é a que dominou a crítica argentina; creio que tudo na literatura é mais indireto, os livros são ferramentas para pensarmos sobre nós mesmos de um modo simbólico, nunca como reflexos.

Embora seja um livro de ficção, há ideias no texto sobre literatura que parecem trechos de ensaios ("As palavras estão feitas para o erro"). Estas passagens representam seus pensamentos sobre literatura?
Eu corrijo cada frase uma e outra vez, com a sensação de que existe uma frase perfeita em alguma parte e que ela vai aparecer. Mas não é assim, não há perfeição possível. Uma vez abri aleatoriamente um livro de 900 páginas de Lev Vigotski e li a frase: "A linguagem é o erro". O livro se fechou e nunca voltei a encontrar a página, mas me pareceu uma revelação. Os romanos julgavam adivinhar o destino assim, fazendo uma pergunta e abrindo "A Eneida" numa página qualquer, para que um verso de Virgilio respondesse. Eu não fiz nenhuma pergunta, mas a resposta me apareceu.

Gostaria de saber a respeito de seu processo criativo. Que tipo de investigação costuma fazer? E neste livro, como foi a pesquisa?
Conheço bastante, não sei se muito, de literatura fantástica e sobre o tema vampiros, em parte porque sempre gostei, mas também porque há quase dez anos estou fazendo uma enciclopédia de literatura fantástica. Creio que o tema fantástico, longe de ser um assunto alheio ao cotidiano, é o que mais revela sobre nós. Por exemplo: ninguém viajou no tempo, mas não há quem não tenha sonhado com a ideia. Ou escapar da morte. Não conheço nenhum bebedor de sangue, mas existem pessoas capazes de se alimentar das energias dos outros. Cada tema do fantástico corresponde a fantasias coletivas que atravessam anos; por isso eu creio que a literatura fantástica é muito mais realista que a literatura "realista", justamente por sua universalidade.

terça-feira, 8 de maio de 2012

A violência como resposta à crise

Hugo Viana


Ler novamente livros lançados décadas antes parece encaminhar uma sensação de nostalgia, em especial pela oportunidade de revisar questões típicas das épocas descritas com o distanciamento de alguns anos. "Clube da Luta" (272 páginas, R$ 39,90), escrito por Chuck Palahniuk, publicado originalmente em 1996 e editado neste mês pela editora Leya, parece mostrar a cada situação imaginada a identidade dos anos 1990 - sensação reforçada pelo filme, lançado três anos depois.

O livro trata da relação entre três personagens: um narrador sem nome, Tyler Durden e Marla Singer. É a partir do ponto de vista desse narrador cuja identidade é revelada apenas perto do fim que surge uma realidade brutal, vindo dele reflexões críticas a respeito da construção de uma sociedade de consumo excessivo, em que se trabalha cada vez mais para conseguir comprar objetos sem os quais a vida seria perfeitamente possível.

Parece a enunciação direta de um dilema existencial que ganhou força nesse período histórico específico, nos anos 1990, quando o fim da guerra fria e a divisão interna nos trabalhos cada vez mais impessoal e burocrática de certa forma aumentou o grau de insatisfação social, projetando questionamentos sobre o destino de uma classe média economicamente crescente e ao mesmo tempo aparentemente desvinculada de engajamento social.

Esses problemas são tratados por um personagem que tem atitudes progressivamente mais subversivas. No começo Tyler se mostra apenas como um tipo de anarquista cuja revolta não é compartilhada, urinando na comida de pessoas ricas e ironizando a necessidade de traquitanas como maneira de distinção social, para em seguida levar essa insatisfação para um outro nível, que envolve entre outros aspectos ataques terroristas contra prédios que são símbolos econômicos dessa sociedade em processo de crescimento.

O tipo de literatura praticada por Palahniuk parece meio histericamente conectada a uma ideia de turbulência social, uma virtuosa engenharia crítica a partir de uma ficção que coloca os personagens em conflito físico contra o mundo. Neste livro, a busca por sentido vem a partir de uma ideia compartilhada pelo narrador e Tyler: a criação de um clube da luta, um lugar em que homens que passam o dia recebendo ordens descarregam o sentimento de vazio numa briga mano a mano, um tipo de vigor excessivamente violento que busca não tanto o prazer de machucar, mas a vontade agir livremente e descarregar uma raiva até então proibida.

Depois de livros como "Monstros Invisíveis" (2009), em que Palahniuk narra a estranha relação entre uma mulher desfigurada, sem o maxilar, e um homem que quer mudar de sexo, e "Snuff" (2010), cuja história trata de um assassinato nos bastidores de uma mega produção da indústria pornográfica, o autor norte-americano parece reforçar interesse de pesquisa por diferentes tipos de distúrbios sociais, escrevendo livros que envolvem necessariamente uma carga pesada de sexo e violência não exatamente pelo choque, mas pelo que significam em termos de entendimento social e construção de uma identidade.

Adaptação para o cinema
foi feita por David Fincher 

"Clube da Luta" foi adaptado para o cinema em 1999 por David Fincher, que na época era bem lembrado pelo violento exercício policial "Sete Pecados Capitais" (1995), filme que compartilha com este, além da participação de Brad Pitt, um certo desgosto sobre os modos das relações humanas e em especial um pensamento negativo a respeito de como pessoas recorrem ao trabalho como fuga de traumas pessoais.

Como tantas adaptações para o cinema de livros com alguma repercussão, Fincher parece querer não interferir tanto no texto, colocando seu protagonista, assim como no livro, como um narrador verborrágico (Edward Norton), um personagem que intervém constantemente no enredo para explicar fatos ou emoções que estão um tanto evidentes na imagem. É algo que revela a origem literária do filme, com um texto que está quase sempre acima da imagem.

Talvez por isso as melhores cenas são justamente as que parecem se afastar da natureza literária e funcionam como criações autônomas específicas para o cinema. É quando Fincher, consciente do sentido político exposto no livro, organiza cenas baseadas numa rápida montagem enérgica, colocando personagens à beira da explosão física ou emocional.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

Humor jovem em trama policial

Hugo Viana


Alguns filmes de gênero parecem satisfeitos em seguir rigorosamente as regras de conduta que os legitimam, entregando ao público exatamente o que os rótulos sugerem. É um pouco o caso da comédia jovem "Anjos da Lei" (21 Jump Street, 2012), dirigido por Phil Lord e Chris Miller (mesmos realizadores da animação "Tá Chovendo Hamburguer").

A história é sobre dois amigos, Schmidt (Jonah Hill) e Jenko (Channing Tatum), policiais que juntos podem formar um profissional exemplar; Schmidt é inteligente mas fisicamente incapaz, e Jenko é bruto e intelectualmente inábil. Separados causam confusões com o aspecto mais simples do trabalho, unidos têm potencial de resolver crimes, e nessa mensagem de amizade o filme sustenta o humor da história.

Jonah Hill parece estar se encaminhando como um interessante representante desse tipo de humor nerd, em especial depois de trabalhar com Judd Apatow, diretor de "O Virgem de 40 Anos" (2005) e "Ligeiramente Grávidos" (2007), e Seth Rogen, mais conhecido como ator, mas que também vem desenvolvendo bons roteiros de humor, como "Superbad" (2007). Parece um grupo unido de comediantes que misturam de maneira cômica referências de escracho e cultura pop.

O começo parece a parte mais interessante e criativa deste lançamento. O enredo inicia em 2005, mostrando onde cada um se encaixava na época do colégio; Schmidt era uma cópia desastrada e acima do peso de Eminem, Jenko era jogador do time de futebol americano que humilhava fracotes. Não exatamente amigos os dois voltam a se encontrar sete anos depois, no teste para entrar para a força policial, e então se ajudam mutuamente como maneira de sobreviver às provas.

Quando entram na polícia fica evidente que falta inteligência à dupla, e depois de falhar comicamente na captura de bandidos eles são convocados para um esquadrão especial, com missões de infiltração em bandos juvenis. Eles recebem ordens de voltar à escola, agora em 2012, para prender o fornecedor de drogas sintéticas, tipo de entorpecente cada vez mais popular.

O interessante desse enredo é essa volta ao colégio e a nova organização social, completamente diferente do que a dupla experimentou sete anos atrás, quando existiam apenas grupos bem definidos como atletas, nerds e patricinhas. Agora esses rótulos mudaram e a forma como os jovens se relacionam também. É essa interessante confusão que mantém o bom ritmo do filme.

Depois é encenado o mesmo tipo de humor às vezes grosseiro e politicamente incorreto de comédias recentes, mas desta vez voltadas ao público um tanto mais jovem, como uma revisão atualizada de "American Pie" (1999).

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Biografia e luto

Hugo Viana


Quando um livro é narrado em primeira pessoa surge geralmente uma dúvida sobre o que há de biográfico no enredo, se a publicação foi escrita a partir de um cruzamento entre real e ficção ou talvez como produto da imaginação do autor. O "eu" pode ser opção de estilo, escolha para organizar a história a partir de uma certa prática confessional, mas pode ser também uma maneira de expor através da reflexão biográfica uma parte da história pessoal. É o caso de "Patrimônio" (Companhia das Letras, R$ 34, 192 páginas), de Philip Roth.

O autor norte-americano escreveu sobre seu pai, um livro de memórias que trata dos últimos dias Herman Roth, que em 1986 foi diagnosticado com um tumor cerebral. Roth escreve então para entender as raízes de sua perda, traçando a personalidade de seu pai, relacionando as atitudes de Herman a de outros familiares. Neste caso a literatura não parece ser remédio ou palavra de auto-ajuda, algo para acalmar o espanto diante da finitude, mas um interesse em escrever a biografia familiar como forma de compreender aspectos misteriosos da vida.

O texto de Roth, normalmente virtuoso em sua complexa estrutura narrativa, com frases longas enlaçando pensamentos intrincados, neste livro parece um pouco mais cru, ou talvez direto, como se a proximidade ao tema exigisse uma ética adequada, uma escrita mais ou menos austera em seu mecanismo interno. O autor adota uma expressividade contida, deixando que os sentimentos naturalmente dramáticos acionados pela história sobre uma dura perda familiar seja o aspecto essencial, e não a forma como esse enredo é contado.

Existe uma ordenação nessa literatura sobre o luto, como se Roth procurasse nos detalhes pistas para entender a forma emotiva como seu pai raciocinava ou a maneira enfática como falava. Ele revisa não apenas a trajetória de seus pais, tios e avós, mas também sua própria biografia, se inserindo no livro como um observador próximo. É o tipo de literatura que coloca o escritor como agente da história, alguém que participa de um enredo baseado em grande medida em eventos pessoais.

O livro foi publicado nos Estados Unidos em 1991, cinco anos após a morte do pai do autor. De certa forma esse movimento direcionado à escrita sobre a perda parece antecipar temas importantes na produção atual de Roth, em especial a forma como o escritor relaciona os efeitos do tempo, a memória e a morte a um personagem central (neste caso, ele mesmo) em processo de reestruturação emocional - assuntos presentes em livros recentes como "Fantasma Sai de Cena" (2008), "A Humilhação" (2010) e "Nêmesis" (2011), sugerindo o interessante caso do artista que percebe sua própria vida como assunto para acionar a criação artística.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

10. O cinismo de uma narrativa adulta

Hugo Viana


A arte adulta contém alguns experimentos que conseguem comentar sobre certos abusos da sociedade ao tornar explícitas na imagem pulsões sexuais ou perversões diversas. É o caso da história em quadrinhos "Erma Jaguar" (L&PM, 152 páginas, R$ 44), de Alex Varenne, vendida com o aviso na capa: "Leitura imprópria para menores de 18 anos". A obra narra as noites e as madrugadas de Erma, uma espécie de madame rica entediada que procura satisfazer seus desejos e os dos outros, andando pelas ruas usando apenas um vestido curto preto. O que diferencia esta HQ de uma narrativa erótica qualquer parece ser a identidade sexual da protagonista, uma ambiguidade aos poucos revelada que sugere uma revisão dos códigos sexuais e da hierarquia das relações afetivas. Dividido em três partes, a obra narra o relacionamento intenso entre Erma e Charlotte, apresentada no começo como uma garota inocente, mas que passa por momentos variados, situações em que sua sexualidade e a de Erma serão acionadas por personagens como uma mulher usada como sátira da deputada italiana Cicciolina. Varenne é reconhecido na França por utilizar uma certa carga de cinismo ao criar suas narrativas eróticas, misturando comentários sociais a uma carga elevada de tensão sexual.