Hugo Viana
Na literatura sobre vampiros existem exemplos de heróis tentados por vilanias, ambiguidades que passam necessariamente pela sede de sangue e aversão a raios solares. O novo livro do escritor argentino Pablo de Santis, “Os Antiquários” (Alfaguara, 200 páginas, R$ 29,90) fala sobre vampiros urbanos em Buenos Aires nos anos 1950, mas em momento algum usa a palavra “vampiro”. A impressão é que o autor embaralha clichês dessa mitologia, imbuindo seus personagens de uma surpreendente carga humana. O protagonista é Lebrón, jornalista de pouca idade que escreve meio sem querer uma coluna de esoterismo. Passa a ser alvo de investigadores e acadêmicos que acreditam na existência de seres mitológicos. Lebrón é transformado no que aldeões com tocha temem por desconhecer, e então o que atrai na escrita ágil do autor argentino é a capacidade de colocar na mesma página o gênero policial e os meios da literatura fantástica, fazendo uma espécie de tratado alegórico e universal sobre amor, memória e fugas necessárias. Esses vampiros são chamados antiquários, o que sugere a vida longa e o apego ao passado. São colecionadores, cercam-se de objetos remanescentes de um período anterior indefinido mas vagamente familiar, e através desses objetos tentam manter em ordem a vida eterna. Nesta entrevista o Pablo comenta seu fascínio por histórias de terror e ressalta que a literatura fantástica é uma extensão da realidade.
O livro é sobre
vampiros, mas em momento algum eles são nomeados assim e nunca é explicada a
real natureza deles, contrariando expectativas comuns ao gênero. Como foi criar
esse enredo?
Sempre gostei de filmes de terror. Aos 12 anos ia com amigos
ao cinema numa paróquia perto de minha casa e víamos filmes que terminavam 1h
da manhã, e depois voltávamos sozinhos e mortos de medo. Também lia histórias
de terror, em especial uma revista chamada "Dr. Tetrick". E sempre
fui devoto dos livros de Stephen King e dos filmes de John Carpenter. "Os
Antiquários" surgiu da combinação desse gosto pelo fantástico, e também de
minhas lembranças de quando trabalhava na Abril nos anos 1980: era um editorial
de revistas, enorme e antigo, da qual tirei personagens e situações que
aparecem no livro.
A partir do
vampirismo surgem outras questões que parecem se afastar da alegoria mais
famosa sobre vampiros - a relação entre sangue e vida -, como por exemplo a
memória e a idea de vampiros como colecionadores. Gostaria que falasse sobre
essas alegorias: memória, colecionismo e tempo.
Creio que isso surge de minha consciência de uma série de
objetos que eu usei e que recordo perfeitamente - a máquina de escrever, o
telefone discado, a TV em preto e branco - que parecem antiguidades remotas
para meus filhos. Imaginei que se alguém pudesse viver por muito tempo buscaria
se rodear de objetos velhos como se fossem muralhas para resistir a mudanças.
As coleções me interessam porque, segundo posso observar, os colecionadores
sempre estão obcecados com o que lhes falta. É como se juntassem canetas,
moedas ou selos não para tê-las, mas para desenhar a forma da peça que falta. E
tudo que falta, tudo que não está, tudo que é preciso buscar é tema
privilegiado na literatura.
O protagonista e seu
mentor são leitores, têm um sebo. Existia algum aspecto que você queria falar sobre
o mercado editorial a partir dessa escolha?
Sempre gostei do ambiente dos sebos: em Buenos Aires existem
muitos, e me parecem realmente misteriosos. Há alguns onde os livros são tantos
que parecem formar paredes, e que se alguém pega um volume a construção corre o
risco de desmoronar. Sempre gostei de comprar livros e guardá-los. Tenho uma
espécie de cultura dupla: estudei Letras e sei quem é Barthes ou Northorp Frye;
ao mesmo tempo escrevi histórias e trabalhei quando jovem em revistas sobre
espetáculos de qualidade duvidosa. Os sebos são onde a cultura se reúne: a
chamada "alta" e a "baixa" ou "popular".
O livro se passa nos
anos 1950, época politicamente importante na Argentina. Ao mesmo tempo existe
no protagonista um desejo consciente de permanecer alheio a questões políticas.
Como pensa a história da Argentina a partir deste livro?
Era um momento muito particular na Argentina: a sociedade
mudava e Buenos Aires se convertia a passos gigantes numa cidade moderna. Mas
existia uma divisão brutal no país. O peronismo dividiu as águas: não existia
ninguém neutro, ou se era peronista ou antiperonista. Eu, por exemplo, venho de
uma família antiperonista. No livro aparecem alguns dados da realidade, mas um
pouco escondidos. Por exemplo, como Perón controlava a imprensa através do
papel, já que este era um monopólio do estado; também o bombardeio da Plaza de
Mayo, quando aviões da Marinha de Guerra mataram centenas de pessoas. Creio que
não há muitos exemplos de algo semelhante no mundo: um ataque aéreo contra o
próprio país. Tratei de colocar os personagens na situação de estrangeiros: de
alguma maneira na literatura fantástica sempre está a ideia de que a
"verdadeira história do mundo" é outra, muito diferente da real. Acho
que a literatura não funciona como reflexo do real, como acredita a crítica
sociologista, que é a que dominou a crítica argentina; creio que tudo na
literatura é mais indireto, os livros são ferramentas para pensarmos sobre nós
mesmos de um modo simbólico, nunca como reflexos.
Embora seja um livro
de ficção, há ideias no texto sobre literatura que parecem trechos de ensaios
("As palavras estão feitas para o erro"). Estas passagens representam
seus pensamentos sobre literatura?
Eu corrijo cada frase uma e outra vez, com a sensação de que
existe uma frase perfeita em alguma parte e que ela vai aparecer. Mas não é
assim, não há perfeição possível. Uma vez abri aleatoriamente um livro de 900
páginas de Lev Vigotski e li a frase: "A linguagem é o erro". O livro
se fechou e nunca voltei a encontrar a página, mas me pareceu uma revelação. Os
romanos julgavam adivinhar o destino assim, fazendo uma pergunta e abrindo
"A Eneida" numa página qualquer, para que um verso de Virgilio
respondesse. Eu não fiz nenhuma pergunta, mas a resposta me apareceu.
Gostaria de saber a
respeito de seu processo criativo. Que tipo de investigação costuma fazer? E
neste livro, como foi a pesquisa?
Conheço bastante, não sei se muito, de literatura fantástica
e sobre o tema vampiros, em parte porque sempre gostei, mas também porque há
quase dez anos estou fazendo uma enciclopédia de literatura fantástica. Creio
que o tema fantástico, longe de ser um assunto alheio ao cotidiano, é o que
mais revela sobre nós. Por exemplo: ninguém viajou no tempo, mas não há quem
não tenha sonhado com a ideia. Ou escapar da morte. Não conheço nenhum bebedor
de sangue, mas existem pessoas capazes de se alimentar das energias dos outros.
Cada tema do fantástico corresponde a fantasias coletivas que atravessam anos;
por isso eu creio que a literatura fantástica é muito mais realista que a
literatura "realista", justamente por sua universalidade.