segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Imagens de um futuro distópico


Hugo Viana

A ficção científica é geralmente interpretada como gênero de criação livre, em que aspectos do mundo real são transformados em histórias cujo exagero tecnológico parece conter receios autênticos sobre a maneira como a humanidade se desenvolve. Essa noção de futuro incerto para uma sociedade que rompe limites éticos e morais para avançar no mundo digital está na história em quadrinho "V.I.S.H.N.U.", obra que trabalha com qualidade aspectos do gênero.

A HQ reuniu três autores: Eric Acher, consultor e investidor em empresas de tecnologia, criou um argumento para história em quadrinho baseado nessas inquietações; em seguida, o jornalista e escritor Ronaldo Bressane estruturou a ideia em forma de roteiro, e então o artista e ilustrador Fabio Cobiaco usou a pintura preto e branco para transformar o texto em imagens. O projeto nasceu de uma proposta da editora Companhia das Letras: unir escritores e ilustradores num projeto de arte sequencial único e da RT Features, produtora de Rodrigo Teixeira.

"A ideia surgiu há uns dez anos, depois de ler o livro 'The age of spiritual machines' ['A era de máquinas espirituais'], de Ray Kurzweil, cientista brilhante, defensor da evolução tecnológica. Nessa mesma época, Bill Joy, outro gênio da tecnologia, escreveu um artigo para a revista Wired, 'Why the future doesn't need us' ['Porque o futuro não precisa de nós'], com uma visão bem mais pessimista da capacidade de destruição das novas tecnologias do século 21", explica Eric. "Essas visões contraditórias de dois grandes cientistas me intrigaram. Como fã de ficção científica, pensei em uma história que misturasse as duas: e se num futuro surgisse uma inteligência artificial messiância e 'humanista', que propusesse resolver esse paradoxo das motivações humanas por trás do uso da tecnologia, consertando um suposto 'bug' do cérebro humano?", comenta o autor.

Na história, essa inteligência artificial surge como uma espécie de salvação num período em que a tecnologia se tornou uma ameaça à existência. Ao mesmo tempo, V.I.S.H.N.U. (o nome da inteligência) é tratada com desconfiança: como acreditar em algo com o potencial de gerar caos? Essa espécie de salto de fé é o que move o enredo, uma intrigante história que mistura referências religiosas e políticas ao mesmo tempo em que traz artifícios do thriller policial. "Antigamente a ficção científica era um gênero distante da realidade. Nas últimas décadas, ela se aproximou da realidade. Embora o tema de 'V.I.S.H.N.U.' - o impacto da evolução da tecnologia - seja clássico, o enredo pode surpreender através do elemento místico/religioso", sugere Eric.

O trabalho de narração visual de Fabio Cobiaco é interessante: ao mesmo tempo em que sugere um estilo único, uma representação visual de futuro caótico que mantém ligações com o presente, deixa claro conexões com outros artistas que trabalharam na ficção científica (Moebius é talvez a grande referência). Cobiaco faz desenhos com um tipo sujo de impressionismo, imagens que conseguem através de poucos e bruscos traços sugerir feições (e emoções).

O fascínio do gênero parece estar em imaginar o mundo 100 ou 200 anos depois do agora, criando ficções que parecem captar com precisão as transformações políticas e sociais geradas pelo crescimento na tecnologia. Em "V.I.S.H.N.U.", temos uma história em que a sociedade parece não suportar o nível de evolução na tecnologia - ou talvez a humanidade não acompanhe com o mesmo ritmo esses avanços.

DEPOIMENTOS

Ronaldo Bressane, roteiro

"Quando Eric me contou seu argumento, senti que havia abertura para temas da New Wave da ficção científica - autores como JG Ballard e Philip K Dick, e, de algum modo, William S. Burroughs -, que passam por uma perspectiva mais pop, próxima do cotidiano, bem como a interação sexual entre homem e máquina, a ideia burroughsiana de linguagem como vírus e a filosófica questão da identidade, tema central da FC: até que ponto um objeto tecnológico pode ser dotado de uma alma?"

"Na teoria de Tzvetan Todorov, a ficção científica é uma derivação da literatura fantástica - em que existe uma "hesitação" entre real e fantasia - norteada por questões relacionadas à ciência, tecnologia, futurologia e filosofia. Ou seja, parte de uma premissa "E se...?" e vai embora. Então as possibilidades são infinitas, porque a FC é um pacto entre autor e leitor; se um dos dois questiona demais se o que está sendo contado é possível ou verdadeiro, algo foi malfeito e a brincadeira perde a graça"

"Leio ficção científica desde, sei lá, as histórias do Astronauta, do Mauricio de Sousa, que descobri na infância. Asimov, C. Clarke e Bradbury vieram na adolescência. Philip K Dick, um dos escritores que mais gosto, conheci, como muita gente, depois de ver o filme "Blade Runner". Muito subestimado - como aliás todo o gênero FC (muito por conta de escritores ruins, críticos sem imaginação e leitores que babam na gravata) -, PKD ainda será percebido como um dos maiores autores do século 20"

Fabio Cobiaco, arte

"Na hora de desenhar eu sabia que se apelasse para qualquer truque visual de Moebius, por exemplo, estaria condenado. O mundo da FC é relativamente pequeno, iriam sacar e meu trabalho iria por água à baixo. Desenvolvi alguns conceitos para guiar a arte. Não mudei muita coisa dos dias de hoje, apenas acrescentei um design diferente, mais poluição e objetos voando. Mas basta olhar para o céu em São Paulo para ver que estamos quase lá, ou na arquitetura futurista de Xangai"

"Minha abordagem básica ao encarar uma página é sempre a de uma batalha. Pra mim é um dragão que eu tenho que matar. Posso dizer com certeza, pois trabalho em várias áreas do desenho: quadrinhos é o trabalho mais difícil que existe. O bom autor de quadrinhos tem que dominar várias disciplinas, direção de arte, narrativa, composição, arquitetura, fotografia. É um trabalho árduo, solitário e que requer muito investimento por parte do autor. Não adianta fazer 200 páginas maravilhosas e não terminar as últimas dez"

"Me interessei por ficção científica com animes japoneses que passavam na tv quando eu era garoto. Na adolescência conheci quadrinhos do pernambucano Watson Portela, e, através dele, o trabalho do Moebius, o maior nome da FC. Na literatura Julio Verne e Frank Herbert detonaram minha cabeça. Nos últimos 15 anos tenho estudado a obra do pintor surrealista suíço HR GIGER, que trabalha uma outra vertente da FC, ligada à biologia e a tradições herméticas"

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

As diferentes camadas do amor


Hugo Viana


O diretor austríaco Michael Haneke, 70 anos, ocupa um lugar curioso no mercado: vem ganhando prêmios diferentes e significativos, como o Oscar e a Palma de Ouro em Cannes, além de a cada novo filme atrair mais interesse público, mesmo fazendo, essencialmente, o mesmo tipo de cinema há décadas. 

Na aparente ausência sentimental, Haneke parece fazer ensaios sobre vida privada e sociedade fora de controle, uma maneira de contar histórias que se aproximam com precisão cirúrgica de dramas humanos. Em "Amor", título que na brevidade contém a força da sugestão, Haneke narra uma história dolorosa que parece em harmonia com seus filmes anteriores, unidade que ganha forma desde os anos 1980, uma trajetória reconhecível na capacidade duramente honesta de falar sobre angústias com distanciamento emocional. 

A história é sobre Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), que estão com 80 e poucos anos, foram professores de música e agora mantêm uma rotina no vigor que a idade permite. Certo dia, Georges nota um lapso momentâneo na mulher, que durante o café da manhã permanece imóvel por alguns minutos. Exames mostram a necessidade de operação, e Anne infelizmente está na eventualidade dos 5% de chance de dar errado: a cirurgia deixa seu lado direito paralisado. 

O filme então parece demonstrar, através de ações e poucas palavras precisas, as diferentes camadas do amor. Não apenas o sentido de companhia nas horas difíceis, o apoio para um corpo antes cheio de energia e agora em estado gradual de falência, mas também a digna fidelidade de querer bem, a ternura necessária para atos extremos de compaixão mesmo que signifiquem sacrificar o que há de verdadeiro e essencial na vida. 

Talvez esse filme não fosse tão especial sem Trintignant e Riva, atores com histórias pessoais no cinema que parecem vivas em "Amor". A certa altura, Trintignant comenta que quando era garoto foi ao cinema; ele recorda vagamente a história e diz, com a serenidade peculiar de quem parece falar sobre a própria biografia: "Não me lembro do nome do filme, mas me lembro do que senti na época". Haneke incorpora aspectos particulares dos atores, atualizando com amor imagens eternizadas no passado do cinema, especialmente a participação de Riva em "Hiroshima, meu amor" (1959). 

Embora a atuação de Riva venha sendo elogiada (concorre ao Oscar de melhor atriz), sugerindo fraqueza gradual e perda de lucidez com talento especial, Trintignant parece ter a missão mais difícil por ser, nas palavras de Anne, um "monstro gentil". A natureza humana é terrivelmente complexa, sendo movida por sentimentos primevos e difíceis de analisar através da razão, e é justamente esse aspecto impossível de apreender que os dois atores demonstram, elevando o filme a cada cena. 

Haneke mantém seu estilo peculiar de filmar, dilatando a extensão de uma cena na aparência comum, com isso modificando a rotina, sugerindo, assim, que algo essencial e ao mesmo tempo inexplicável ocorre em cena. 

O diretor parece especialmente interessado no corpo humano, nos efeitos do tempo sobre o físico. Uma ação simples como se levantar ou trocar de roupa é filmada na duração exata que a força dos 80 anos permite, e não parece existir qualquer exagero ou manipulação emocional: é talvez um comprometimento com a vida, uma reflexão sobre o momento em que ela e a morte parecem encaminhar um instante único.


Herói sem contradição


Hugo Viana


Biografia é um tipo traiçoeiro de cinema: gera curiosidade por informar aspectos autênticos da intimidade de alguém historicamente relevante ao mesmo tempo em que necessita, por motivos de duração ou ideologia, deformar certas características da personalidade do biografado. "Lincoln", filme de Steven Spielberg sobre o presidente norte-americano (1809-1865), parece sofrer com esses dois problemas. 

O filme apresenta Abraham Lincoln (Daniel Day-Lewis) como herói virtuoso adepto da ideia "os fins justificam os meios". Na história, que se passa em 1865, Lincoln está começando o segundo mandato, com elevado apoio popular, e tenta encerrar a Guerra Civil entre o Norte e o Sul. Ao mesmo tempo o presidente insiste, apesar de ser aconselhado a não tocar no assunto, em confirmar a 13ª emenda, que acabaria com a escravidão. 

A história então se divide entre muita burocracia política, narrando o fim da guerra e da escravidão, e a vida particular de Lincoln, a relação conturbada com a mulher, que o culpa pela morte de um dos filhos, e com o primogênito, que insiste em ir para a guerra por um certo sentido de  patriotismo e vontade de não querer ser poupado por causa de seu berço. Estas histórias familiares ocupam pouco tempo no enredo: a vontade de Spielberg parece ser provar a inteligência política da estratégia para acabar com a escravidão. 

O filme tem carga exagerada de texto, longos diálogos (e monólogos especialmente feitos para insinuar um Lincoln de fala política sedutora) que explicam com detalhes cansativos o contexto dos EUA nos anos 1860. O problema não parece ser o excesso de explicação, o grande volume de informação anunciado a cada cena, mas que todo esclarecimento venha necessariamente através de palavras e quase nunca de imagens, preceito básico do cinema. 

Além dessa preferência por palavras, a predominância do texto sobre a imagem, "Lincoln" tem outro problema, esse mais grave; existe um incômodo ideológico, a sensação de que tudo é resolvido com a imagem da bandeira dos Estados Unidos tremulando imponente acima de qualquer suspeita. 

O próprio Lincoln tem sua dubiedade pouco explorada; atitudes geradas por revolta familiar ou arbitrariedade política são insinuadas, mas logo revertidas para ressaltar a figura de bom humanista. Parece existir um receio de modificar a imagem heroica de Lincoln, sendo um filme detalhista apenas o suficiente para não gerar contradição. Daniel Day-Lewis vem sendo exaustivamente elogiado, novamente cotado para ganhar o Oscar, e de fato sua interpretação possui nuances que sugerem certas dúvidas morais; o problema real parece ser o roteiro, que insiste em transformar história em palco para heroísmo. 

Algo que prende a atenção no filme é a observação do sistema político, uma espécie pré-histórica de lobistas que tentam convencer através de falsas promessas, calúnias ou omissões ocasionais, tudo em completa sintonia com a política contemporânea. É quando o filme deixa momentaneamente o peso solene da tradição e da história e assume uma postura mais relaxada - talvez por isso sejam as melhores cenas.  

A grande aceitação no mercado norte-americano ("Lincoln" é o líder de indicações no Oscar) sugere a suspeita que o filme deve funcionar bem no país de origem especialmente por reforçar, com toque de bom mocismo, o ranço de presidentes supostamente humanistas, personalidades que ao serem representadas no cinema têm complexidade moral na medida do tolerável. 

O lado sangrento de uma fábula


Hugo Viana


Alguns filmes tentam ser criativos modificando histórias clássicas, transformando aspectos de um enredo previamente conhecido em opções ousadas. "João e Maria: caçadores de bruxas" parece nascer de uma curiosidade: observar como seria a vida adulta das crianças atacadas por uma bruxa. 

O filme começa com uma cena clássica; João e Maria estão perdidos na floresta, foram abandonados por seus pais, e meio por acaso chegam a uma casa feita de chocolate. Ao entrar encontram uma bruxa velha de cabelos brancos despenteados que a idade não trouxe serenidade, pois a única coisa que ela faz durante dois minutos é gritar. Os garotos a matam com facadas e a tostam em fogo alto, e então começa a jornada de carnificina. 

Enquanto os créditos iniciais aparecem, acompanhamos, através de manchetes de algum jornal sensacionalista da Idade Média, a trajetória dos irmãos até se tornarem conhecidos exterminadores de bruxas. Quinze anos depois, João tem diabete e Maria tem mau humor; eles são contratados por um prefeito de uma vila para encontrar 11 crianças desaparecidas e eliminar bruxas especialistas em artes marciais, e a impressão é que os irmãos vieram diretamente de um mundo moderno, importando falas, roupas e armas do futuro. 

A caçada corre bem até aparecer uma Grande Bruxa (Famke Janssen), uma entidade que tem poderes especiais além da força física. Ela tem um plano complexo e sem muito sentido, que envolve recolher o sangue de 12 crianças durante um eclipse lunar para obter imunidade ao fogo. Mais ou menos nesse ponto o roteiro acelera (o filme dura 1h20), apressando resoluções, revelando segredos e sugerindo a possibilidade de uma sequência através de coadjuvantes curiosos. 

O filme é fraco sob muitos aspectos, lembra um esboço inicial de projeto para a TV que provavelmente seria cancelado na segunda temporada. Os irmãos protagonistas parecem os principais motivos para isso; Jeremy Renner (o arqueiro de "Os vingadores"), que aos 42 anos interpreta um jovem  de 27, e Gemma Arterton, uma tentativa de mulher durona, mas com zero carisma. 

Assim como a nova versão de Branca de Neve, recentemente lançada nos cinemas, esse "João e Maria" parece demonstrar o interesse da indústria norte-americana de recriar fábulas infantis com uma atmosfera sombria (algo estabelecido nas animações da Disney, já que o texto original, escrito pelos irmãos Grimm - Jacob e Wilhelm -, tinha certa complexidade moral e sugestão de violência). 

De fato surpreende a quantidade de sangue, esquartejamento ou esmagamento facial, o interesse por buscar inovação através do contato com o gênero horror (o filme estreia também em projeção 3D, com efeitos que parecem potencializar a carga de violência), mas nada disso parece salvar o fiasco de uma história mal contada com personagens pouco simpáticos. 

Filme policial aditivado com pouca criatividade


Hugo Viana


Por algum motivo a indústria de cinema norte-americana acredita que Nicolas Cage é um tipo de galã transgressor, o bandido de jaqueta de couro, óculos escuros e moto que não é tão malvado, que o espectador torce por ser mais interessante do que o herói. Se era meio difícil aceitar essa personalidade nos anos 1990, quando Cage ainda interpretava com algum vigor físico, hoje em dia parece especialmente pouco provável. 

Em "O resgate" ele interpreta uma variação de seu personagem em "60 segundos" (2000): Will Montgomery, um ladrão respeitado por seus colegas infratores por ser uma espécie de gênio do crime, que tem bom coração, e mantém como regra de etiqueta criminal roubar, mas não matar. A primeira cena do filme sugere um bom thriler de ação policial, uma sequência que dura mais ou menos 10 minutos com diálogos inspirados e ação bem construída.

Acompanhamos quatro bandidos (liderados por Cage) prestes a roubar um banco, numa rua escura à noite, enquanto policiais (liderados por um detetive que os caça há algum tempo) monitoram a atividade através de áudio e vídeo. Tudo é tecnicamente bem orquestrado pelo diretor Simon West, que através de uma montagem paralela surpreende o público e apresenta bem os personagens. 

O roubo dá errado e apenas o personagem de Nicolas Cage é preso. Ele passa oito anos recluso, e quando sai visita sua filha. Em seguida ela é sequestrada por um ex-amigo bandido de Will, transformando o filme numa espécie previsível de melodrama: recuperado de sua mania de assaltar bancos, ele é forçado a voltar ao mundo do crime para roubar U$ 10 milhões, pagar o sequestrador e resgatar sua filha. 

Embora a primeira cena seja digna de um bom exemplar de filme policial, usando de maneira criativa técnicas de narração cinematográfica, a história aos poucos perde ritmo e originalidade e se transforma em uma mistura de outros exemplares do gênero policial (em especial "Busca implacável", que tem essencialmente o mesmo roteiro). É o tipo de filme que deve ser guardado na estante "policial" e em alguns anos ser esquecido. 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A força da tradição em poucas palavras


Hugo Viana


A certa altura do livro "Nihonjin", o autor Oscar Nakasato comenta, descrevendo a personalidade de um dos personagens (o avô de uma família tradicional japonesa): "As palavras não foram inventadas para serem desperdiçadas". É com uma incrível economia sentimental que Nakasato estreia na ficção; através de um relato conciso, que na brevidade parece sugerir sentimentos universais, Nakasato narra a história de imigrantes japoneses que chegam ao Brasil guiados pelo desejo de juntar dinheiro para voltar ao Japão e abrir negócios próprios, mas aqui conseguem apenas o suficiente para sobreviver. O livro transcende questões panfletárias: é um testemunho sensível sobre choque cultural, manter tradições e criar raízes, descrevendo a história de uma família que enfrenta dificuldades de adaptação ao que é novo, tentando manter o peso solene de tradições típicas mesmo distante do Japão. O livro de Nakasato ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance cercado por polêmicas (o jurado Rodrigo Gurgel, crítico literário, deu nota 10 ao texto de Nakasato e zero ao livro de Ana Maria Machado, autora importante no mercado). Independente destas questões, "Nihonjin" é uma das grandes novidades do meio literário. Nesta entrevista, o autor fala sobre seu processo de escrita e repercute o resultado do Jabuti. 

Gostaria de saber o que o motivou a contar essa história, fazer a reconstrução histórica da imigração japonesa. 
Na minha pesquisa para o doutorado, que versa sobre personagens nipo-brasileiros na ficção, encontrei pouquíssimo material e constatei que a cultura nikkei ocupava um espaço mínimo na literatura brasileira. Essa decepção me motivou a escrever o romance. 

Um ponto forte é a maneira econômica como você compõe os personagens. Através de poucas ações há sugestão de profundidade. Como foi criar esses personagens?
O romance é narrado em primeira pessoa por um personagem que mantinha uma relação afetiva com os demais, portanto o seu discurso não poderia ser outro que não o emocional. Na verdade, narrando a história de sua família, o personagem procura compreender a si próprio e encontrar a sua identidade. E a concisão é uma característica minha como escritor, não consigo escrever além do que me parece ser o essencial. 

O livro narra a saga de uma família que vem ao Brasil. Trata da cultura japonesa, a vontade de manter tradições numa dura realidade. Gostaria que falasse sobre preservar costumes mesmo com o choque gerado pelo que é diferente (algo bastante simbólico).
O processo de aculturação dos imigrantes japoneses e seus descendentes foi muito lento. A experiência da alteridade é sempre difícil, mas no caso da imigração japonesa no Brasil, as dificuldades foram maiores que aquelas enfrentadas pelos italianos, alemães e outros imigrantes. A própria configuração física do japonês o lembrava a todo instante que ele era diferente. É difícil para o ser humano não se reconhecer naquele que vê a sua frente. Outro aspecto que causou um grande sofrimento foi a língua. O japonês não conseguia compreender a língua portuguesa, e da mesma forma era difícil se fazer entender usando a língua japonesa. As diferenças culturais entre os dois países eram gritantes. Eles estavam acostumados a dormir em tatames e a comer peixe cru, e de repente foram obrigados a se deitar em colchões de palha e comer feijão cozido em gordura de porco. Além disso, havia a fidelidade que devotavam ao imperador japonês e o orgulho da raça. Essas condições fizeram com que os imigrantes japoneses e seus descendentes mantivessem os seus costumes por tantos anos. 

Podemos notar aspectos pessoais no livro? Ou a realidade é apenas incentivo para a ficção? 
"Nihonjin" é uma obra de ficção e todos os personagens, inclusive o narrador, são criações do escritor. Mas também é um romance sobre a imigração japonesa escrita por um nipo-brasileiro, portanto o autor está presente, sim, na obra e no narrador. Um exemplo é a profissão de ambos: professor. E o modo compreensivo e afetivo, mas também crítico, como o narrador avalia a história da imigração japonesa marca a presença do escritor na obra. 

Mesmo falando sobre a vinda de japoneses para o Brasil, o enredo parece se desdobrar por diferentes dramas universais. Acredita que a universalidade é importante na literatura?
Não escrevi um romance direcionado a leitores nipo-brasileiros, mas frequentemente eles me escrevem dizendo que se reconheceram ou que se lembraram de histórias que pais e avós lhe contavam. Mas também já ouvi pessoas sem ascendência japonesa dizerem que se reconheceram no romance. Esse fato indica o caráter da obra. A questão da universalidade não me preocupou quando escrevia o romance, mas, naturalmente, pela minha experiência como leitor, esse aspecto foi incorporado. Eu quis contar a história de uma família de imigrantes japoneses e enfatizar seus dramas particulares, mas, prioritariamente, quis escrever sobre a vida. 

Como este é seu primeiro romance, gostaria que falasse um pouco sobre sua maneira de trabalho.
Não penso na literatura como um trabalho. Felizmente não necessito dos direitos autorais para meu sustento e da minha família. Eu escrevo nos momentos de folga, sem pressão, sem estabelecer uma rotina, aproveitando o que já armazenei na minha cabeça nos momentos de caminhada, de ócio numa poltrona de avião ou de ônibus. As histórias e os personagens surgem do emaranhado de lembranças, de leituras, de observações do cotidiano. 

Você ganhou o Jabuti, mas essa escolha acabou cercada pela polêmica com o jurado Rodrigo Gurgel. Qual sua opinião sobre o caso?
Eu não gostaria mais de falar sobre esse assunto, mas não posso fazer de conta que nada aconteceu e que a premiação foi tranquila. É natural que a Imprensa e todos aqueles ligados à literatura queiram saber a minha opinião sobre esse assunto. Embora não tenha lido os romances de Ana Maria Machado e de outros autores que receberam notas muito baixas de Rodrigo Gurgel, creio que o fato de serem finalistas do Jabuti os coloca num patamar elevado, distante da nota zero, mas, por outro lado, o regulamento previa notas de zero a dez, portanto não houve descumprimento da norma. 

Acha que essa polêmica será positiva para o livro? Acabou chamando a atenção para uma obra que, sem o Jabuti, talvez fosse pouco percebida.
Obviamente gostaria de ter recebido o Jabuti sem o peso da polêmica que envolveu a premiação. Embora o debate tenha dado maior visibilidade ao romance e tenha despertado a curiosidade sobre o livro, não posso dizer que a polêmica tenha sido positiva. O desconforto que ela me causou foi muito grande, e durante um período se falava mais dela que do prêmio. Espero que a polêmica seja esquecida e o livro permaneça. 

SERVIÇO

Nihonjin
Benvirá, 176 páginas, R$ 19,90

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O silêncio expressivo de Eucanaã


Hugo Viana

Ao longo de 2012 a prosa brasileira foi muito elogiada, ganhou espaço internacional (com tradução de autores para o inglês através da Granta e o anúncio da presença nacional na feira de Frankfurt de 2013), além de algo essencial: foram lançados ótimos romances, livros que demonstram maturidade narrativa e estilo pessoal sem exagero de ego. Ao mesmo tempo, a poesia brasileira passa por um momento que - mesmo sem tanta aprovação de mercado - parece especial. Entre alguns ótimos lançamentos, um dos destaques é "Sentimental", sexto livro do carioca Eucanaã Ferraz.

"Não há dúvida de que poesia é o gênero que menos vende", diz Eucanaã. "Mas, curiosamente, ela exibe uma história de prestígio, que guarda uma dimensão mitológica, como o teatro, a música e a arquitetura. Mas se é da natureza de tais artes poderem se tornar mais ou menos úteis, com a poesia não ocorre o mesmo. Portanto, se sempre se escreveram e ainda se escrevem versos, o impulso nunca tem a ver com um sucesso financeiro desejável", reflete o autor.

O nome do livro sugere certa medida de romanstismo, um apelo emocional ao amor romântico - algo que, na ironia da geração contemporânea, é visto com medida excessiva de desdém. Já no primeiro poema, "O coração", no entanto, Eucanaã promove uma espécie de ruptura de expectativas. "Quase só músculo a carne dura / É preciso morder com força", escreve o autor, ressaltando, com humor e fúria, que o título parece mais uma espécie de jogo de reconstrução.

"Percebi uma liberdade de escrita, uma intensidade emotiva que eu desejava destacar", diz o autor. "O título tem a ver com o tom dominante do livro, anuncia sua ambição: a intensidade dos sentimentos. E estive sempre muito excitado com a ideia de usar um qualificativo que, no mundo das artes, antipatiza de imediato com a comoção fácil, a confissão, a afetação romanesca, compreendidos como traços opostos ao rigor formal, ao predomínio da inteligência. Quis recuperar a palavra exatamente para contrabalançar tudo isso. Sentimental aponta para algo que ninguém quer ver e que está lá", sugere Eucanaã.

"A maior parte dos poemas do livro foi escrita ao longo dos últimos quatro anos", explica o autor. Sobre seu método de trabalho, Eucanaã detalha: "Escrevo e reescrevo muitas vezes. Jogo muita coisa fora, abandono. Rasgo muito. Rabisco, anoto, refaço, corto. Faço sempre muitas versões em diferentes cadernos. Quando os rascunhos chegam a um estágio que considero mais acabado, vou passando para o computador. Tem início, então, uma outra etapa de escrita, com impressão, reescrita, leitura, na qual vou experimentando combinações, arranjos", revela.

A poesia de Eucanaã parece sugerir a necessidade de uma imagem, a sugestão de uma cena que construída com delicadeza, palavra e silêncio. "Digamos que há um modo oblíquo de dizer", explica o autor. "Num poema, a coisa dita deixa um vazio grande entre as palavras. Gosto de sentir esse silêncio vibrando. O ritmo só pode ser sentido porque há pausas. E, quando falo de ritmo, não me refiro a uma coisa estritamente formal. Ritmo é também significado. Não é por acaso que nos emocionamos com músicas sem letra. No poema, há mais coisas não ditas que ditas. Se um poema nos dá a sensação de que disse tudo, algo está errado: ou o poema ou a impressão do leitor", opina.

Eucanaã faz um tipo de poesia de parágrafos longos, com descrição de cenas e criação de pequenos enredos - lembram a estrutura da prosa. "Não penso em termos de poesia e romance", diz o autor. "Mas, sem dúvida, vários poemas do livro têm da algo da prosa: o comparecimento de vozes, personagens, ambientes. Disso resulta alguma narratividade. Mas a estrutura rítmica é característica da poesia. A divisão de versos pode parecer, às vezes, aleatória, mas há um rigor na construção desse efeito, algo que nasce de uma exploração de possibilidades do poema que não o dissolvem naquilo que chamamos de prosa", detalha.

SERVIÇO

"Sentimental", de Eucanaã Ferraz
Companhia das Letras, 96 páginas, R$ 32

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Prazer pela literatura de gênero


Foto: Gabriela M. O

Hugo Viana
 

O termo "pulp fiction" se refere a um tipo de publicação barata, pequenos livros que entre os anos 1920 e 50 exageravam meio sem vergonha em violência e sexo (para os padrões da época) e custavam U$ 0,25 centavos ou menos. Nestes livros existia uma espécie de desejo por brutalidade, a vontade de narrar histórias que chocam ou geram curiosidade, algo como um excêntrico show de horrores ("pulp" remete também a páginas impressas no papel mais barato possível, feito da polpa da madeira).

Livros compostos por histórias que pertenciam a gêneros definidos (horror, ficção científica, crime) e que revelaram grandes autores (como, por exemplo, Isaac Asimov, William S. Burroughs e Raymond Chandler). No Brasil não existiu, ao menos não tão forte quanto nos Estados Unidos, a tradição da literatura pulp. Não exatamente para preencher esse espaço, mas para ressaltar o prazer que há em histórias marcadamente de gêneros, a editora gaúcha Não Editora lança o quinto volume da série "Ficções de Polpa", que nesta edição trata de histórias de aventura.

Esse projeto é como uma máquina do tempo artesanal; a capa, a diagramação e a escolha por anúncios de jornais seguindo a tradição de uma imprensa sensacionalista norte-americana dos anos 1950 sugerem a conexão com o espírito da literatura pulp, feito por uma editora do mercado independente. Mantendo a tradição de décadas atrás, Ficção de Polpa coloca, na capas, a imagem de uma mulher com pouca roupa aguardando desesperada ser resgatada por um herói enquanto algum vilão permanece à espreita: um tipo de realidade 100% dividida em bem e mal, carregada de tensão sexual e sugestão de violência.

Nos textos de cada pequeno livro é possível notar um interesse apaixonado pelas engrenagens dos gêneros; no primeiro volume, "Horror", há textos que incentivam certo ranger de dentes e franzir de testa, indícios de efeitos físicos do horror. Na quarta edição, "Crime", os contos tratam, de maneira original, temas marcantes, como a mulher fatal e o suspense investigativo - o tipo de leitura que fascina pela relação entre curiosidade e mistério. Neste lançamento, "Aventura", a proposta é remexer um imaginário fantasioso que envolve cenários exóticos e aventuras fantásticas: florestas, geleiras, dinossauros, tesouros e o tradicional capa e espada.

Talvez o diferencie esse projeto de algo como uma referência exclusiva à literatura do passado seja a maneira como esses gêneros são interpretados de maneias criativas pelos autores envolvidos - são textos que têm a herança pulp mas parecem reconfigurar para uma certa atmosfera contemporânea.

O organizador da série, o escritor Samir Machado de Machado, explica que embora a atmosfera da literatura pulp esteja presente no projeto gráfico, os textos se referem a maneiras contemporâneas de interpretar a cultura pulp de décadas passadas. "Michael Chabon, uma influência para a concepção de Ficção de Polpa, disse que depois de 'Eneida' toda a literatura é fanfic. O que sobra são referências passadas, mas alguém precisa colocar elas em perspectiva com o mundo que se vive, para que disso se possa tirar uma interpretação do presente, ou fazer uma ressignificação do passado. Algo, aliás, que só a literatura contemporânea pode fazer", ressalta Samir. 


  "Pulp é a base da indústria cultural americana"

Gostaria que você falasse um pouco sobre a Não Editora. Como surgiu e que propostas vocês tinham?
A ideia era bem simples: um grupo de amigos e conhecidos que, egressos das oficinas de criação literária de Porto Alegre, queriam encontrar uma forma de publicar seus livros com mais qualidade editorial do que víamos disponível - em termos de editoração, design gráfico, divulgação e distribuição. A ideia era publicar nossos textos e de quem mais chegasse, garimpar novos nomes e fazer com que a editora servisse de trampolim para estes autores.

O que motivou a criação da série "Ficção de Polpa"?
Ficção de Polpa surgiu um pouco antes da Não Editora - e acabou servindo de catalisador. Eu queria publicar algo bacana, tanto meu quanto de amigos que escreviam bem, e sempre gostei de literatura de gênero. A ideia de algo que fizesse referência à literatura pulp veio quando me dei de conta que o pulp é a base da indústria cultural americana - nos quadrinhos, nos filmes, na literatura de gênero. Eu queria uma literatura com um foco claro no entretenimento do leitor mas que, ao mesmo tempo, mantivesse uma pretensão autoral.

Talvez mais do que os contos, chama a atenção o projeto gráfico: a capa, a diagramação, a escolha pela estética de publicidade e jornais antigos. O interesse era homenagear o gênero pulp?
Sim. Não quis que os textos em si simulassem o pulp, que é um estilo e uma linguagem presos a um tempo e espaço. Mas no projeto gráfico, eu adoro a estética pulp, e o que mais gosto é o quanto ela é absurda, exagerada, politicamente incorreta e até preconceituosa sem se dar conta disso. As escolhas dos anúncios publicitários reflete essa visão de mundo, uma realidade preto-no-branco que não questiona os próprios valores, e esse contraste entre o passado (o projeto gráfico) e o presente (os textos).

Como foi o processo de seleção de textos deste volume? Como definir o que constitui o gênero "aventura"?
Alguns já eram conhecidos, outros eu fui atrás e outros me foram indicados. Eu queria que o conjunto dos contos fosse o mais abrangente possível - piratas, nazistas, dinossauros, ladrões de tesouro, a Antártida, capa-e-espada. Porque o próprio gênero aventura nem bem é um gênero, é mais uma sensação que o texto transmite: excitação, maravilhamento, apreensão e, quase sempre, retorno. A minha definição do que consiste uma aventura é, basicamente, uma história - com perigos, assombros - que lida com a relação de um personagem com o cenário que ele atravessa.

No Brasil, diferente de outros países, não existiu uma forte tradição de literatura de gênero. Por que acha que isso aconteceu?
Bem, existir, até que existe - o leitor brasileiro não parece se interessar por uma produção nacional de literatura de gênero. Em parte, talvez seja um pouco de preconceito cultural com nós mesmos, porque muito do que se tentou produzir aqui foi mais um pastiche do que uma adaptação de estilos com o qual outros países têm mais tradição. Olha a ficção científica, por exemplo: talvez tenhamos nos acostumado a pensar a tecnologia de forma tão passiva, como algo que vem de fora, que isso acaba se refletindo na nossa aceitação das possibilidades de uma ficção científica brasileira. Ou da dificuldade de escrever fantasia quando nos falta uma Idade Média e olhamos com desdém pra culturas indígenas ou regionais. Dificuldade, não impossibilidade, claro. Sou otimista quando à mudança desse quadro.

SERVIÇO

"Ficção de Polpa: Aventura", vários autores
Não editora, 208 páginas, R$ 29,90