segunda-feira, 13 de maio de 2013

Realidade documentada através de fragmentos



Hugo Viana



O espanhol Agustín Fernández Mallo, 45 anos, tornou-se conhecido por escrever "Nocilla dream" (Nocilla é um tipo de pasta de chocolate, mais ou menos como Nutella), livro lançado em 2006 que jornalistas da Espanha se encarregaram de catalogar como uma das publicações que criaram a "Geração Nocilla" - movimento composto por autores que nasceram entre 1960 e 70 e que possuíam características recorrentes como fragmentação da história em pequenas narrativas, criação baseada em aspectos da cultura pop, princípios existenciais da juventude espanhola e mistura entre diferentes disciplinas como filosofia, matemática e arte. Talvez a analogia mais adequada para apresentar "Nocilla dream", primeiro livro da trilogia Nocilla (composta por "Nocilla experience" e "Nocilla lab", inéditos no Brasil), seja um telespectador zapeando canais da TV - uma literatura que reúne entretenimentos como novela, programa sobre física, seriados de humor. Agustín narra histórias de personagens diversos, pequenos enredos de uma ou duas páginas unidos por uma espécie de continuidade poética. Imagens como uma prostituta que pinta vagarosamente as unhas dos pés e uma árvore com centenas de pares de sapatos pendurados no deserto norte-americano parecem sugerir uma atmosfera de contemplação, a vida documentada através de paisagens áridas, objetos pessoais e histórias curtas. Em entrevista, o autor espanhol comenta técnicas literárias e fala sobre a "Geração Nocilla". 

Gostaria de saber sobre a estrutura do livro. Como chegou a essa forma fragmentada composta por histórias distintas? Experimentar era algo importante durante a escrita?
A ideia foi surgindo pouco a pouco, de maneira orgânica, como quando se escreve um poema ou quando se é levado de um lugar a outro por correntes elétricas repentinas, associações que têm a ver com analogias. Estava na Tailândia, uma moto me atropelou, quebrou meu quadril e tive que ficar 25 dias sem me mexer na cama do hotel. Durante esses dias lembrei uma imagem que havia visto em um jornal: uma árvore no deserto de Nevada, nos EUA, e ninguém sabe a razão mas ela está cheia de sapatos pendurados. A partir daí, na cama, esqueci de meu quadril e comecei a escrever. Fui introduzindo meu mundo, minhas referências poéticas, literárias, científicas, artísticas, musicais, a sociedade de consumo, até que se formou uma rede, um rizoma. E quando voltei para a Espanha já tinha quase terminado o livro. Mas esclareço que fiz tudo isso sem saber bem o que estava fazendo. Não me propus a escrever algo "moderno", simplesmente ia escrevendo o que acreditava que devia escrever segundo minha cultura, meus gostos e meu tempo. 

Há no livro imagens intrigantes - a árvore de sapatos, a prostituta que pinta as unhas, as fotografias, o deserto. O que essas imagens sugerem sobre a atmosfera do livro?
Trazem a ideia de que existe um lado da realidade que resta explorar. As epifanias podem aparecer em qualquer momento se você tem a mente educada para isso. Investigar o mundo é um ato 100% criativo, sem imaginação radical e sem perguntas não há nem poesia nem ciência. Entendo "radicalidade" no sentido etimológico da palavra: "Agarrar as coisas pela raiz". E isso é o que faz o livro, agarrar a realidade pela raiz, arrancar a raiz e ver que mundos existem embaixo. 

Este livro faz parte de uma trilogia inédita no Brasil. O que pode dizer sobre temas abordados neste projeto e sobre a repercussão, o surgimento da "Geração Nocilla"?
Esclareço que a Geração Nocilla é uma etiqueta cunhada pelo jornalismo cultural da Espanha, não pelos escritores. Nós autores nunca nos reunimos para fazer uma geração. Pessoalmente acredito que pensar a literatura em condições de gerações é antiquado. O que existem são correntes que captam o espírito de uma época. Sobre a repercussão de minha obra: ocorreu que não apenas foi vista como uma renovação da prosa em espanhol como se estendeu a um expoente de nossa época, de tal maneira que a trilogia se converteu em uma experiência sociológica que ultrapassou o âmbito estritamente literário. Uma forma de entender o período em que vivemos. Mas, insisto, eu não tinha intenção de fazer nada disso, quando escrevi a trilogia ninguém me conhecia e eu não conhecia nada do mundo do romance - e sim da poesia. Na verdade, enquanto escrevia pensava que ninguém iria publicar!

Você transcreveu textos de outros autores e os colocou no meio do enredo. O que diria sobre diálogos possíveis entre livros distintos?  
Me interessa muito o "apropriacionismo": tomar ideias de outros e combiná-las diretamente com as minhas. Dessa maneira aquilo que foi "apropriado" muda seu sentido, adquire outra significação, e por outro lado o que eu tinha escrito também muda de sentido, se estabelece um novo diálogo entre as diferentes partes e assim aparece um novo artefato literário. 

Como é seu processo de criação de personagens? Como foi compor personagens de maneira que, em poucas ações, o leitor se enterneça por suas histórias?
Pois não sei como os compus, mas me deixei levar pela síntese: dizer muito com o menor número possível de palavras. Isso, creio, tem vários motivos, que estão em minhas influências e interesses: 1) A poesia, que é o terreno natural da síntese. 2) A física, que participa também dessa síntese. Não se esqueça de uma coisa: se a um bom verso é tirada ou adicionada uma palavra, ele se estraga. Com uma equação matemática acontece o mesmo. Se você tira ou acrescenta algo, ela deixa de representar uma porção do mundo. Trata-se de um equilíbrio poético. 

Você fala sobre temas e artistas da cultura pop recente. Diria que "Nocilla dream" representa a geração formada nos anos 2000?
Creio que qualquer obra que permanece no tempo dela fala de uma geração, de uma época. Às vezes escritores ficam muito preocupados com as críticas que seus livros recebem nos meios de comunicação, e não se dão conta de que o importante é a soma de todas essas críticas e as opiniões dos leitores. O que se lembra de um livro é isso: o que deixou na gente, a atmosfera que gerou em uma determinada época, como se converteu em na "trilha sonora particular" de cada leitor. 

"Nocilla dream" (Companhia das Letras, 216 páginas, R$ 35)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

12. A importância de um posicionamento crítico


O jornalista Cristiano Ramos publicou em seu site, semana passada, uma análise sobre o novo livro de Raimundo Carrero, "Tangolomango: ritual das paixões deste mundo". Cristiano fez críticas duras ao romance, comentou negativamente aspectos da obra, apontou falhas nos diálogos, na narração e no ritmo do texto. Detalhes importantes: Ramos integra a cena literária pernambucana e mostra, na resenha, respeito pela importância de Carrero para a literatura nacional e conhecimento da obra pregressa do autor. Carrero, que é bastante ativo no Facebook, rebateu os argumentos de Cristiano, defendeu seu livro, ressaltou nuances da narrativa; o escritor, inclusive, recebeu apoio de leitores, que sugeriram, com um tanto de raiva, que o crítico "não percebeu as qualidades da obra", entre outros comentários. Essa situação parece reforçar embates antigos entre artista, crítico e público. Embora a reflexão de Cristiano tenha traços de um tipo panorâmico de jornalismo, que possui algumas frases de efeito e pouca profundidade analítica (possivelmente pelo espaço reduzido de uma crítica escrita para a Internet), é preciso ressaltar a importância de posicionamentos diferentes - e às vezes duros - no jornalismo cultural; o livro de Carrero vem sendo bastante elogiado (particularmente, gosto do livro); é importante a existência de dissenso, de profissionais com coragem para criticar autores admirados, pessoas que falam com seriedade o que pensam sobre lançamentos do mercado.