segunda-feira, 23 de abril de 2012

Literatura que surge do luto

Hugo Viana


Algumas dores emocionais fazem pessoas procurarem um espaço seguro para reflexão; no caso do escritor paulista Ricardo Lísias esse local é o gabinete de produção literária, o hábito da escrita como meio para entender ideias contraditórias. Seu novo livro, "O Céu dos Suicidas" (Alfaguara, 192 páginas, R$ 34,90), surgiu a partir do sentimento real de perda. Seu amigo André tirou a própria vida, e então o autor lidou com o sofrimento da maneira que acredita ser a mais eficaz: a literatura. O protagonista também se chama Ricardo Lísias, um colecionador que através de seu costume de catalogar metodicamente pedaços de sua história em partes significativas procura entender sentimentos de culpa, saudade e fé. Parece ser esse aspecto religioso o segredo expressivo do livro; enquanto pesquisa sobre o suicídio, Ricardo percebe que as religiões não acreditam no descanso dos que encerram a própria vida, e essa suposta amargura eterna aciona no protagonista o desejo de paz para aqueles que são movidos pela ternura, mas que encontram tragicamente o fim. Nesta entrevista, Lísias fala sobre a produção literária feita a partir desse luto pessoal, e como procurou dissolver o aspecto biográfico dentro da ficção.

Este livro surgiu da necessidade de falar sobre a morte de seu amigo. Gostaria que comentasse o modo como recorreu à literatura como forma de refletir sobre uma perda real, e como sentimentos autênticos de raiva, angústia e culpa foram encaixados num produto de ficção.
Quando uma perda muito grande ocorre (e pior ainda de maneira traumática) imagino que seja normal as pessoas terem necessidade de externarem os sentimentos tão complexos e contraditórios que as atingem. No meu caso, recorri à ficção porque acredito ser essa a minha forma mais eficaz de expressão. Mas é possível também fazer o caminho contrário: quando voltei a escrever, depois do descanso da redação do meu livro anterior, "O Livro dos Mandarins", não consegui fazer nada que não se referisse ao tema do suicídio. Simplesmente é a continuidade natural do meu trabalho de ficcionista.

O protagonista tem seu nome, o enredo trata essencialmente da morte de seu amigo. O que diria sobre o aspecto biográfico do livro? Em algum momento esse cruzamento entre real e ficção foi incentivado (ou reprimido)?
Trabalhei para deixar tudo o que fosse biográfico, com exceção do motor do livro, bastante diluído. Mas não foi uma questão de repressão ou de incentivo: foi essa a forma que encontrei para moldar o romance. Há muito de biográfico, mas minha biografia não pode ser percebida em nenhum momento do livro.

O protagonista compartilha com você algumas características. Como ele se insere em sua galeria de personagens? 
É uma personagem que não consegue lidar com o mundo, quando o mundo lhe cai nas mãos (ou explode diante dela). Nesse sentido há um certo massacre emocional que eu vinha tentando compor nos outros textos, cada um a partir das necessidades diferentes das respectivas tramas.

Em certos momentos o livro é muito doloroso, uma dura jornada de aceitação e superação. Gostaria que falasse sobre o processo de escrita, essa meditação longa que é a produção de um romance. 
Sem dúvida, alguns momentos foram muito dolorosos para serem elaborados, mas o processo de escrita foi o mesmo que para os outros livros: pesquisa, criação de rascunhos, primeiras tentativas e depois a redação do livro. Esse tipo de engenharia facilita muito o controle da dor.

O livro trata de histórias paralelas à principal, enredos curtos que amplificam o complexo estado emocional do personagem. Como foi conectá-las ao drama que motivou o livro?
A personagem está perdida, como se estivesse em um labirinto de histórias de onde não consegue sair. Cada uma delas fornece uma pista, mas ao mesmo tempo embaralha as outras. Eu gostaria que tudo servisse para tornar confuso o estado emocional do narrador-personagem.

Você propõe aproximações interessantes entre colecionismo, saudade e religião (ou talvez fé). Como relaciona esses aspectos? Parece uma forma criativa de falar sobre alguém que se apega metodicamente ao passado e busca nesse apoio alguma revelação.
É exatamente isso. Colecionadores pegam fragmentos de passado e tentam a todo custo montar uma coerência. A saudade também me parece um pouco isso e a fé do mesmo jeito talvez seja a tentativa de criar elos em sentidos muito frágeis. Para mim é uma tentativa de união de tudo, frágil e ilusória, mas que é possível.

O personagem tenta compreender a religiosidade e as relações afetivas. Acredita que a literatura pode acionar transformações no leitor ou mesmo no autor?
Como leitor, muitas vezes os livros me trouxeram algum conforto, ou ao menos distração. É deles aliás que tiro parte do meu sustento, como professor. Descobri muita coisa e aprendi a ver o mundo de formas alternativas através deles. Como autor, em momentos de crise muito violenta, eu descobri que simplesmente estava escrevendo...

terça-feira, 17 de abril de 2012

A literatura política de Hernán Rivera Letelier

Hugo Viana



Alguns livros celebram o ofício do escritor por meios indiretos, de maneira que o fascínio pelo ato de contar histórias não seja um elogio gratuito, mas exemplo de como experiências do passado permanecem na vida do autor e ao mesmo tempo modificam a história de uma comunidade. O livro "A Contadora de Filmes" (Cosac Naify, 112 páginas, R$ 29,90), escrito pelo chileno Hernán Rivera Letelier, 61 anos, sugere esse raro encontro entre ficção, história pessoal e memória coletiva.

O enredo fala sobre uma pequena família que mora num acampamento próximo a uma mina de salitre, no Chile, no final dos anos 1950. Depois da tragédia sentimental ocasionada pela fuga da mãe 25 anos mais nova que o marido, um acidente deixa o homem paralítico da cintura para baixo, tirando boa parte da renda dessa família de cinco filhos, e então apenas uma das crianças pode ir ao cinema. Elas disputam o posto de "contador de filmes", em que um deles recebe o bilhete do cinema e ao voltar para a casa deve descrever todos os detalhes, e está aí uma bela homenagem do autor aos contadores de histórias, às pessoas que narram ficções a outras por prazer.

"Me criei no deserto", diz Letelier, em entrevista por telefone. Até os 11 anos o autor morou no povoado de Algorta, conhecido pelas minas de salitre, e neste livro ele parece consultar sua biografia naqueles anos para criar adequadamente o enredo. "Havia um cinema que exibia filmes diferentes todos os dias, então eu podia ver 365 filmes por ano. Éramos cinéfilos empedernidos, não tínhamos para onde ir ou o que fazer, então o cinema era nosso entretenimento. O cinema era o centro social mais importante, nos juntávamos para mostrar a camisa nova, nos penteávamos, engraxávamos o sapato, usávamos roupa nova", lembra o escritor.

Há no livro momentos em que Letelier descreve reminiscências de seu passado, acessando suas lembranças de quando era garoto e o cinema era um movimento social na comunidade. "Eu me fascinava pela mudança de atmosfera que se produzia ao entrar num cinema, a luz crua de fora e ao passar pelas cortinas pesadas de veludo encontrar um mundo de cinema", comenta o autor. "O cinema era quase um vício. Depois nos juntávamos nas esquinas para contar os filmes que tínhamos assistido. Havia meninos e meninas que os contavam de maneira extraordinária. Tudo isso influenciou essa novela, que no fundo é uma homenagem ao contador de histórias. Penso que todos gostam de ouvir histórias", diz Letelier.

O começo do livro lembra "Como Era Verde Meu Vale" (1941), em que John Ford descreve a força da união familiar num meio social destruído. Aos poucos no entanto Letelier trata de outras influências, lembranças cinematográficas que fizeram parte de sua coleção pessoal de lembranças. "Eu não tinha um filme particular enquanto escrevia, estavam todas os que vi quando garoto. Os filmes de múmia, os com marcianos, de cowboys, filmes mexicanos - que eram os que atraíam mais gente -, os de Jerry Lewis, e é claro também os de Charles Chaplin. Um ator era suficiente para encher os cinemas", detalha.

Além desse aspecto do enredo em que o autor parece se colocar nos termos pessoais, existe também um interesse em debater politicamente a história do Chile, lembrando sutilmente um aspecto difícil na trajetória coletiva dos trabalhadores. "No livro falo a história desse deserto, da mina de salitre, e isso é muito importante no país, uma história que estava esquecida e que estorvava certos setores políticos. É uma história cheia de injustiça social. Eu desenterrei essa história sobre os trabalhadores de salitre, homens que conquistaram o Deserto do Atacama, que é o deserto mais cabrón do planeta. Esses acampamentos se tornaram povos fantasmas. Com meus livros estou dando vida de novo a essas regiões, mostrando essa história a novas gerações", diz o autor.

Ao mesmo tempo o livro não possui esse aspecto político mais forte do que o interesse de contar o drama dessa pequena família, cujo destino parece a cada página mais desolador, envolvendo gradualmente situações de abuso de poder, alienação, uma puberdade apressada e a tensão entre classes sociais. "Estou contando a história do nascimento do salitre, e essa é uma história entre o político e o social; o panfletário também, e é claro o histórico. O livro tem algo político, e acho que ao escrever sobre o pampa salitre o aspecto político aflora por si só. Aflora também o panfletário, e eu cuido para que as minhas novelas não se transformem em obras políticas panfletárias, que sejam apenas novelas e sejam bem escritas. Esse é o primeiro compromisso do escritor, antes do moral, social ou político, o compromisso com a literatura, ou seja, escrever bem", opina Letelier.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

9. Sobre a ausência

Hugo Viana



Uma das características frequentes de narrativas contemporâneas é a inclusão do autor como agente da história, o protagonista de um enredo que parte de fatos da vida pessoal do escritor para então iniciar a criação literária. O escritor americano, filho de pais líbios, Hisham Matar parece consultar a própria memória no livro "Anatomia de um Desaparecimento" (Record, 224 páginas, R$ 37,90), um delicado relato sobre a ausência de seu pai, ou talvez em termos gerais sobre a falta gerada quando uma pessoa que se ama inadvertidamente desaparece. A primeira frase situa esse transtorno quieto: "Às vezes a ausência do meu pai pesa tanto quanto uma criança sentada no meu peito", escreve Hisham. Outra presença do livro é a personagem Mona, a namorada do pai, e por quem o filho nutre admiração próxima ao romance. Essa confusão sentimental causa transtornos no garoto, que passa a desejar o desaparecimento paterno, um enredo algo psicanalítico, até que esse pensamento negativo de fato ocorre, devido ao súbito exílio durante o regime de Muamar Kadafi, nos anos 1970. A partir de então o jovem e a mulher passam a refletir sobre a figura silenciosa do pai, até que percebem que não o conheciam tão bem assim, e a ausência é o que motiva a procura pelo conhecimento.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A união sagrada dos oprimidos

Hugo Viana



Na literatura do angolano Valter Hugo Mãe, 41 anos, existe um tipo sincero de ternura mesmo quando trata dos sentimentos mais sombrios das pessoas. Seu novo livro é "O Filho de Mil Homens" (Cosac Naify, 256 páginas, R$ 39,90), em que o autor narra um enredo sobre uma família que se une por amor e ocasião do destino, não obrigação. A história é dividida entre personagens que casualmente se encontram e formam laços que embora não sejam sanguíneos ou talvez oficiais parecem tão sagrados quanto os que ligam uma família tradicional. Ao mesmo tempo em que procuram conforto esses personagens são enxotados a cada página por uma turba que sente raiva por eles exercerem de forma inofensiva exatamente aquilo que os torna humanos. São colocados à margem pelos vizinhos por serem homens maricas ou mulheres enjeitadas, mas convocados por Valter Hugo com um tipo raro de delicadeza. O livro não tem uma época definida, o que parece sugerir uma espécie de arqueologia do preconceito, leis de homens que não mudam mesmo depois de anos. Nesta entrevista, o autor explica como entende o amor e a família em seu novo livro, assim como detalha motivações para a escrita.

O livro é dedicado às crianças, e de fato existe um grande respeito pelo o que elas significam em termos de futuro e possibilidade de mudança social, política e afetiva. O que lhe interessou nessa escolha?
Confessei que este livro me ensinou a pensar sobre a hipótese de ter um filho. Nunca pensei nisso de ter filhos, sentia-me incapaz de cuidar de alguém assim. Mas a idade parece retirar-nos alguns medos. Não tenho mais medo de crianças. E creio que entendi, nestes últimos dois ou três anos, que se tivesse um filho ele seria todo um patrimônio da felicidade. O que este livro me mostrou foi isso. Como um filho é alegria e como é pena que muita gente não o perceba. A felicidade está sempre mais perto de nós do que julgamos.

Em seus livros parece ser o amor a grande busca, o que move os personagens, o que torna a escrita necessária ou mesmo urgente. Como percebe o tema amor em sua obra?
Sim, não há mais temas senão o amor e a morte. Sempre tenho isso nos livros, uma problemática afetiva que se resolve bem ou mal. É verdade que sou romântico e essa característica impele-me para acreditar no amor. Mas está também em causa a questão da confiança. Acho que esse é um tópico essencial do que faço, pensar sobre a capacidade de confiar. É muito o que precisamos de conquistar no futuro. A humanidade não será viável sem se dar à confiança. Esse é também um ponto de partida para um amor saudável.

O que lhe atrai na ideia de falar sobre a família em seus livros? Ainda mais neste, em que a família não vem necessariamente de laço sanguíneo, mas uma união sagrada de quem se quer bem.
A família bíblica tem muito valor mas não tão absoluto. A incapacidade de alguém se entregar por inteiro numa amizade também é uma tirania preconceituosa. Somos muito criados para defender a família a todo custo e a ver alguém de fora como potencial inimigo. Abomino isso. O meu bem estar depende de gente muito distinta e eu quero seguir entregando meu empenho nessas amizades com toda a digna fidelidade de que for capaz. Gosto muito de ter família. Talvez por gostar muito queira que ela se estenda muito para lá do que o sangue manda.

No enredo, os personagens são colocados à margem por força da sociedade. Ao mesmo tempo existe ternura quando a história dura deles é descrita. O que diria sobre esses personagens, o que o motivou a criá-los?
Sempre tento que, enquanto leitores, estejamos disponíveis para transpor a barreira que nos separa do modo como são os outros. Interessa-me criar personagens que se exponham dum modo tão genuíno que se tornem verdadeiras e passíveis de ser entendidas. Acho que é isso, gerar entendimento. Normalmente fugimos do que não sabemos, do que não conhecemos. Quando se trata de pensar sobre os outros, é fundamental sermos capazes de respeitar melhor todas as suas diferenças.

Quando escreveu o livro pensava em alguma época específica? Você trata do preconceito, e essa indiferença quanto ao tempo parece sugerir que sempre existiu abusos. Isso o motivou a escrever?
Sempre escolho temas que me solicitam necessidade de um melhor entendimento. Crio ficções para estudar. Aprendo muito com essa meditação longa que é a escrita de um romance. Por isso abordo esses assuntos intrincados, assuntos que talvez já devessem ter uma solução há muito. Coisas do preconceito, por exemplo. Rejeitar algo que é da natureza de cada um e que se coloca como inofensivo é muito burro. Seria bom que não fôssemos mais burros.

Gostaria que falasse um pouco sobre os narradores de seus livros. Eles parecem indiferentes ao julgamento moral, mas ao mesmo tempo profundamente tocados pela tortura emocional dos personagens, uma ternura sincera a favor de qualquer característica que os torne humanos.
Sim, sempre opto por contar as coisas de um modo muito subjetivo, meio a retratar a delicadeza das personagens ou dos temas. Gosto de trazer as personagens muito para perto do leitor. Torna-se o texto em algo cru, sem tréguas, entre o muito belo e o assustador, entre o muito bom e o muito mau. Nessa oscilação acaba por ser mais natural a intensificação das personagens. Tornam-se vívidas. Como gente aqui da rua. Contar histórias é muito mágico, como contar já é uma personagem do livro.

No texto de agradecimento você escreve que "a cada 50 páginas de todos os livros quero ser outra pessoa qualquer e começar um outro livro qualquer que ainda não exista e sobre o qual não saiba quase nada". O que acha da escrita, da exposição e da influência nas pessoas?
Eu preciso de escrever. Muitas vezes, o que acontece é que tenho urgência. Preciso de ter mais do que posso ter, nos textos, quero dizer. É como amar várias pessoas, numa família por exemplo. Amar e querer ter várias pessoas por perto. Em algumas alturas, se não houver disciplina, os livros começam e atropelam-se uns aos outros, correndo o risco de sobrarem inacabados. Estou sempre fascinado com a oportunidade de imaginar a vida de outras pessoas. Isso retira-me também da minha vida. Gosto de não viver autocentrado. Gosto de pensar em ser outro.

A Cosac Naify opta por publicar seus livros diretamente do português de Portugal, adaptando ao novo acordo, mas com preferência à grafia lusitana nas situações em que se admite dupla grafia. O que acha da unificação das línguas? Acredita que a união completa facilitaria o movimento literário ou acha que implicaria em perdas de pequenas tradições da escrita? E no caso de seus livros, o que acha dessa opção de não adaptar ao português brasileiro?
Eu sou a favor das expressões diversas. Claro que é uma maravilha que possamos entender o que escrevem os brasileiros. Mas é importante que não se mude tudo, porque dentro de Portugal, como dentro do Brasil, as expressões também são muito distintas. Seria uma perda muito grande se impedíssemos modos de falar e de escrever típicos de alguma região. Existe uma norma, um padrão, mas depois disso a liberdade tem de existir e deve ser assumida. Eu prefiro que o público brasileiro contate com meus livros como eles são. Seria muito redutor fazer uma adaptação profunda, como se fosse uma tradução, porque nós podemo-nos entender. Isso também é fundamental. Continuar contatando com as diferenças para poder continuar entendendo.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Realidade dura pela ótica infantil

Hugo Viana



Algo interessante de perceber em cada livro é notar quem conta a história, a identidade do narrador que relata ao leitor o enredo. No caso de "Festa no Covil" (Companhia das Letras, 96 páginas, R$ 29,50), escrito pelo mexicano Juan Pablo Villalobos, o narrador é uma criança, jovem o bastante para não ter a medida exata das coisas. É então através de uma certa inocência infantil que Villalobos trata de uma realidade brutal, a violência social do México, o tráfico, mas uma dureza atenuada pela incompreensão de uma criança.

"Conforme comecei a escrever passei a buscar uma voz narrativa que me pegasse, que me atraísse também como leitor", explica Juan. "Eu como leitor gosto de livros com voz narrativa interessante. Primeiro testei a voz em terceira pessoa, transparente, a voz que sabe de tudo e vê a ação de fora. Depois percebi que era melhor narrar pela perspectiva de alguém dentro da história. Quando surgiu a voz do garoto gostei primeiro por motivos estilísticos, uma voz humorística. E por ser uma criança eu não precisava me preocupar tanto em ser politicamente correto, com questões morais ou em propor soluções para o tráfico e a violência", avalia o autor.

Tochtli é filho de um poderoso traficante, Yolcault. Tochtli não sabe bem o motivo, mas vive preso em casa, residência que ele chama de "reino". É cercado por adultos, que na verdade são prostitutas, assassinos, capangas, mas no entanto Tochtli não consegue dar conta da natureza dessa realidade. "Acho que uma das coisas interessantes do livro ao assumir a perspectiva da criança é essa mistura entre crueldade e inocência. Crianças são assim, ao mesmo tempo inocentes e cruéis", sugere Juan.

Por tratar do tráfico, o texto de Villalobos parece naturalmente enfrentar temas políticos do México contemporâneo. "Toda narrativa tem conotação política, não só os livros que têm discurso político direto", reflete o autor.

"A literatura em geral é política em outros sentidos. No meu caso a leitura política é muito direta, o tráfico, a realidade mexicana, a violência. Não foi uma questão que surgiu de forma inocente ou ingênua. Mas num primeiro momento eu estava mais interessado na historia íntima de pai e filho, os valores em jogo - ou nesse caso anti-valores -, e no segundo momento a questão política. Ou seja, eu tinha neste livro outras motivações iniciais que não eram exclusivamente políticas. Acho que quando a questão política fica em primeira importância o resultado literário ou artístico não é tão bom", opina Juan.

O livro trata da paternidade, da relação entre pai e filho, e veio num momento particular da história pessoal de Juan. "Comecei a escrever o romance quando fiquei sabendo que minha mulher estava grávida", diz o autor. "Foi o que me motivou a pensar na história. É um romance de iniciação, uma reflexão sobre a paternidade, a aprendizagem da cultura da violência", detalha.

No livro, o México é não apenas cenário mas também um certo estado de espírito de uma época. "Ao longo do texto uma frase é repetida duas ou três vezes, que o México é um país 'magnífico mas também nefasto'. Essa é um pouco a relação que nós mexicanos temos com o México. Um pouco como aqui no Brasil: reclamamos porque gostamos muito. Gostar muito e odiar muito", ressalta o escritor.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Mergulho numa delicada relação

Hugo Viana



Existe algo ao mesmo tempo solitário e sentimental na experiência visual proposta pelo desenhista francês Bastien Vivès na graphic novel "O Gosto do Cloro" (Leya Brasil, 144 páginas, R$ 49,90). Nesta pequena história silenciosa, Bastien parece recriar com delicadeza emoções do começo do amor, mas a partir de um curioso ponto narrativo, a piscina, os corpos que se movimentam sem conversar e quase anonimamente em locais públicos.

Uma dúvida natural de pessoas que trabalham com artes visuais é decidir qual deve ser o ponto de vista da cena, optar pelo ângulo do enquadramento adequado para narrar a história, e a sensação nesta HQ é que Bastien está correto 100% das vezes. "Eu tentei uma narração cinematográfica", explica o autor. "Eu venho de uma escola de animação. Com o tempo eu fui descobrindo o poder dos quadrinhos, e é incrível. Não há limites. É uma arte autêntica e você pode descrever tudo o que quiser apenas com um lápis e um papel", diz.

A história é simples, um jovem com dor nas costas é aconselhado por seu massagista a fazer algum tipo de esporte, e então esse homem começa a frequentar a piscina de um clube, a pequena rotina de trocar de roupa, ir ao chuveiro e mergulhar. A princípio esse protagonista silencioso não tem qualquer habilidade ou noção de espaço, esbarrando nas braçadas da raia vizinha e olhando furtivamente para as pessoas tentando entender melhor o meio no qual está inserido.

Tudo muda quando por acaso ele conhece uma nadadora exemplar, vencedora de um campeonato regional e que se exercita no mesmo clube. Ele então passa a admirar em silêncio seus movimentos e aos poucos começa a aguardar ansiosamente novos encontros casuais. Surpreende como essa aproximação ocorre com poucas palavras, baseada quase exclusivamente no movimento de corpos embaixo d'água. "O silêncio nesse livro foi apenas por realismo: quando você está numa piscina, você não fala. E então desse jeito cada palavra é muito importante", comenta Bastien.

Algo que surpreende no trabalho de Vivès é o uso do espaço como uma espécie de reflexo emocional de seu personagem, a capacidade de em poucas imagens sugerir um certo mapeamento afetivo sobre pessoas que se conhecem brevemente e sentimentos que adquirem força inesperada no cotidiano. "Quando comecei a criar essa história percebi que precisava de muito espaço na imagem para descrever todas as coisas que eu queria mostrar. Quando no desenho se usa poucas palavras e algumas elipses, é possível dizer muita coisa", ressalta o autor.

A história ocorre exclusivamente nesse ambiente da piscina, sempre às quartas-feiras, quando o jovem protagonista vai se exercitar na esperança de encontrar sua nova amiga. Os desenhos de Bastien possuem um interessante fascínio pelo efeito da luz e da água no corpo humano, desenvolvendo de maneira quase impressionista os movimentos de nadadores a partir de diferentes pontos de vista, dentro ou fora da piscina. "Eu tinha algumas emoções para descrever com esses corpos embaixo d'água", diz Vivès. "Umas das coisas que achei interessante era a viagem entre realidade e imaginação nessa relação embaixo d'água", reflete.

Ao mesmo tempo, existe também algo de muito singelo no relacionamento entre o homem e a mulher. Já perto do fim acontece um breve momento que parece sugerir um encaminhamento emocionalmente discreto sobre aspectos que permanecem indefinidos num relacionamento. Enquanto estão embaixo d'água, a mulher soletra algo para o rapaz, que não compreende, e a dúvida gerada pela falta de compreensão insinua algo maior. "Na relação entre duas pessoas, por motivos diversos, há muitas coisas que nós não dizemos, vemos ou sentimos. No fim, eu queria descrever essa sensação", explica Bastien.

A trajetória de um homem detestável

Hugo Viana



Nas histórias em quadrinhos alguns personagens inspiram admiração e respeito, heróis que são celebrados por sua bravura ou coragem. A nova graphic novel do autor norte-americano Daniel Clowes traz como protagonista alguém que é absolutamente o oposto desse ideal: "Wilson" (Companhia das Letras, 80 páginas, R$ 39).

Wilson é uma pessoa comum sem o censor que geralmente inibe comentários negativos sobre qualquer coisa. Costuma denunciar pessoas estúpidas com ironia terrível, sendo em geral comicamente injusto com a humanidade, ridicularizando sem mágoas adultos sem personalidade ou instituições que provocam queda do nível cultural na sociedade.

É o tipo de pessoa que provavelmente apontaria com sarcasmo gente que fura a fila no cinema ou joga porcaria no chão tendo uma lata de lixo na esquina. Ao mesmo tempo Wilson também ironiza familiares e amigos, o que sugere uma pessoa mais ou menos insuportável. Por algum motivo envia uma caixa cheia de bosta de cachorro para a ex-cunhada, e parece difícil não rir alto da maneira absurda como ele lida com a realidade.

As tirinhas parecem produto da observação de detalhes do cotidiano, pequenas cenas de humor sobre o distanciamento entre pessoas e as novidades tecnológicas. A certa altura Wilson constata que "é meio perturbador ver pessoas passando reto por um mendigo morrendo, mas babando como débeis mentais quando veem um cãozinho", enquanto uma amiga está ao seu lado acariciando efusivamente um cachorro.

A impressão é que Clowes concebeu essas situações no improviso enquanto desenhava, notas cômicas sobre dados reais do cotidiano que surgem meio por acaso durante o dia. Os desenhos mudam de estilo ao longo da história, podem vir realistas, como esboços ou ainda com estética cartum tipo retrô, algo que reforça esse aspecto de criação informal sem roteiro rígido.

As histórias duram apenas uma página, e embora cada uma tenha certa autonomia, narrando um pequeno momento de humor terrivelmente negro da rotina de Wilson, a HQ se torna uma experiência única apenas quando lida inteira, com cada quadrinho complementando os anteriores, descrevendo um longo trecho da vida do protagonista.

Aos poucos entram outros temas, esses mais duros e indefinidos, como a relação distante com o pai, a solidão, a tentativa de aproximação da filha adolescente, as motivações existenciais de um canalha sincero. É quando Wilson deixa de ser apenas uma caricatura que ataca erros cívicos para se tornar uma pessoa com sentimentos e angústias.

Clowes é geralmente celebrado como um dos autores mais significativos dos quadrinhos alternativos norte-americanos (no Brasil foi lançado o ótimo "Mundo Fantasma", que foi adaptado para o cinema, assim como em breve deve ser também "Wilson"). Neste novo trabalho ele cria um personagem que aparenta ser completamente detestável mas que aos poucos mostra um coração desajeitado; um trabalho genial que termina laconicamente como um maravilhoso mistério a ser desvendado.