segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Os limites entre ficção e biografia

Hugo Viana



Em seu novo livro, "Procura do Romance" (Record, R$ 32,90, 144 páginas), Julián Fuks continua uma investigação presente em sua obra anterior ("Histórias de literatura e cegueira"): a literatura não apenas como base para a criação, mas também como medida de segurança que separa a região imprecisa entre biografia e ficção. O protagonista é Sebastián, um escritor que viaja à Argentina em busca de inspiração, uma procura que parece constantemente perguntar: há história? Por que escrever? Enquanto Sebastián transita por uma Buenos Aires vagamente familiar, recordando lentamente os rastros de sua família, um narrador atravessa os vínculos criados com o leitor, tornando explícitos os métodos de ficção e a própria biografia de Fuks, ele também morador da Argentina no passado e em processo de escrita de um romance. Nesta entrevista, Fuks comenta as camadas do livro e sua teoria literária pessoal.

Gostaria de saber sobre as origens de sua relação com a literatura, os primeiros livros que causaram fascínio, os autores.
O escritor sempre ficcionaliza ao responder a esse tipo de pergunta, inventa origens mais pertinentes, cria relações e sentidos onde não existiam. Eu confesso que não sei bem como foi que acabei enveredando para a literatura. Não fui um desses leitores precoces que, aos dez ou doze anos, desvenda com avidez as páginas de Cervantes, de Dumas, ou de quem seja. Lia minha cota de livros infantis e juvenis e, embora guarde boas lembranças de algumas dessas leituras, creio que nenhuma delas me marcou definitivamente ou me fez decidir que mais tarde escreveria minhas próprias histórias. Acho que a literatura foi decorrência de algumas decisões posteriores, e da percepção de que talvez eu me saísse bem no ofício, de que eu podia ter algo a dizer.

Na literatura nacional, você se enquadra no rótulo "jovem escritor". O que comentaria sobre esse perfil? Como é a rotina de quem vive de literatura e aspectos próximos (crítica literária, tradução, palestras, oficinas)?
Não me incomoda ser tachado de jovem escritor, desde que não se espere a partir disso uma postura específica, uma visão de mundo, uma literatura de certo tipo supostamente própria aos meus colegas de geração. Acho que o rótulo pode servir como estímulo às liberdades, como convite à inovação, já que em certa concepção caberia ao jovem abrir novos caminhos - mas também não convém acreditar muito nisso, tanto conservadorismo há entre os mais jovens. Mas de fato se criou algo interessante na cultura brasileira recente, na medida em que se pode viver de literatura sem chegar a vender muitos livros, ganhando o sustento com traduções, bolsas de incentivo, eventos, textos ocasionais.

Assim como seu livro anterior, mas em medida diferente, "Procura do Romance" tem a própria literatura como material base para a criação. É um interesse particular escrever ficções que tratem da literatura? O que atrai nessa busca?
Por não ter outra profissão, por levar a vida em atividades sempre correlatas à literatura, acabam ganhando proeminência em mim suas questões mais específicas, seus bastidores, seus mecanismos internos. A literatura se tornou problemática em nosso tempo, perdeu seu lugar cativo, e assim se passou a ser quase impossível exercê-la sem ponderar seu alcance tão restrito, sem considerar seus diversos limites.

O protagonista do livro é Sebastián, um jovem escritor que viaja à Argentina para escrever. Em que medida este é um livro autobiográfico? Sei que você morou na Argentina, e seu próprio nome, Julián, remete ao do protagonista...
Há elementos autobiográficos: a nacionalidade um tanto ambivalente do personagem, sua condição de filho de exilados, os episódios de sua infância que são inspirados em ocorrências reais da minha. Mas não tive nenhuma intenção de produzir uma autobiografia. O que fiz foi me valer de todos os aspectos que julguei pertinentes para a história, das situações que surgiam em minha memória e me instigavam a escrever. Não é a imaginação ou qualquer fantasia o que me leva a escrever: como tantos, escrevo porque observo algo no mundo.

Gostaria que você falasse sobre as possibilidades narrativas que surgem ao ter um escritor como personagem, e o quanto de questões pessoais você colocou no enredo.
Ao criar um personagem que era quase um decalque meu, eu podia lhe emprestar uns quantos pensamentos, algumas indagações pessoais, um certo olhar crítico que me interessa verter sobre as coisas. Mas é claro que a construção do protagonista segue as consabidas normas da criação ficcional, dando-se por meio de uma intensificação: tentei extrapolar o que me é próprio, a fim de levá-lo às suas consequências últimas, para que se tornasse algo mais expressivo.

O livro trata de um autor num momento de transição. Ele volta à Argentina, onde morou quando criança. Há uma sensação de "volta à infância" no livro. Em que medida essa investigação foi um recurso para o romance?
Sim, trata-se de uma tentativa de volta à infância, mas uma tentativa fadada ao fracasso. Porque Sebastián tem consciência da imprecisão de toda memória, de como o ato de lembrar e o ato de inventar são feitos da mesma matéria. Ele quer regressar à infância porque pensa que naquela época mais sofrida podia haver algo de mais relevante, de mais pertinente. Sabe, no entanto, que os momentos pretéritos também estão sujeitos à mesma irrelevância e à mesma impertinência de qualquer ímpeto literário do presente.

O livro parece ao mesmo tempo um romance que documenta, através da ficção, um processo de escrita, e defende um tipo de teoria literária que aparentemente o fundamenta. Gostaria que você falasse sobre essa estrutura dupla: um livro sobre a escrita de um livro e também um livro que descreve uma teoria, que revela os pensamentos de um autor.
Essa parece uma condição incontornável da literatura de nosso tempo: ter que justificar a que veio, ter que explicar por que ainda existe se tão poucos a desejam, se dispõe de tão pouco espaço neste mundo em que ela teima em se repetir. Acho importante que os livros comportem, de forma menos ou mais explícita, a teoria própria que os sustenta: não gosto da literatura arbitrária que se quer soberana, que ignora as vicissitudes da época em que se insere. Só assim, compreendendo-se, criticando-se, a literatura pode recuperar algo do alcance que teve em outro tempo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Biografia de um homem bruto

Hugo Viana



Clint Eastwood foi capa da edição de janeiro da revista M, que pertence ao jornal francês Le Monde, para divulgar seu novo filme, "J. Edgar" (EUA, 2012). Na ocasião, fez um pedido um tanto raro entre estrelas veteranas da indústria de cinema: a foto não deveria ser tratada por programas de edição de imagem, e então marcas dos 81 anos deveriam aparecer sem qualquer tipo de intervenção.

É curioso que justamente "J. Edgar" recorra tanto à maquiagem, à reconstrução de um personagem real a partir de artifícios. Leonardo DiCaprio interpreta a trajetória de J. Edgar Hoover, criador e diretor do FBI, de 1935 até 1972, quando ele morreu, aos 77 anos. Em boa parte do filme, DiCaprio e outros atores trabalham com maquiagem pesada, para sugerir o peso solene da idade, em cenas filmadas em penumbra, na biografia de um personagem controverso da história norte-americana.

Em seus filmes recentes, Eastwood parece cada vez mais interessado na passagem do tempo, nas mudanças ocasionadas por décadas. "J. Edgar" se divide em duas narrativas: no "presente", nos anos 1970, Hoover narra suas memórias para agentes do FBI, enquanto no passado acompanhamos as ações nem sempre legais que o levaram ao posto de diretor do FBI. Assim como em "A Troca" (2009), nos flashbacks Eastwood recria com incrível habilidade a atmosfera dos Estados Unidos nos anos 1920 e 30, em especial pela desordem causada pela máfia.

É através dessa estrutura dupla que conhecemos a personalidade polêmica de Hoover, e Eastwood estabelece as características dele em pequenas cenas potentes. Quando Kennedy assume a presidência, durante a carreata, Hoover vai à varanda de seu apartamento e saúda as pessoas na rua, que sequer o percebem; ou quando, imaginando combater o comunismo, Hoover invade a privacidade de cidadãos e põe em risco uma suposta liberdade.

Hoover é um personagem que mesmo real parece bem sintonizado com as criações anteriores de Eastwood; o homem de ações duras que não costuma se expressar, e em seu silêncio guarda rancor do passado. Assim como os personagens interpretados pelo diretor em "Gran Torino" (2009) e "Os Imperdoáveis" (1992), Hoover é descrito como turrão que esconde sentimento atrás de muralha fortificada.

O sentimentalismo do filme, que em algumas cenas é bastante alto, vem em grande parte de um aspecto sempre comentado da vida pessoal de Hoover. Bastante conservador, existia a suspeita de que ele e Clyde Tolson (Armie Hammer), agente que Hoover rapidamente promoveu a um cargo na direção, eram amantes. Por décadas os dois eram vistos juntos em eventos sociais e durante as férias, e essa proximidade iniciou rumores sobre a natureza da relação entre os dois.

Pode talvez surpreender o espectador acostumado ao cinema do tipo bruto de Eastwood perceber a sensibilidade do realizador para falar de um homem sexualmente confuso, mas é quando essa parte da trama é desenvolvida que os personagens rapidamente ganham ternura e complexidade.

Revisão da história sexual francesa

Hugo Viana



Alguns cineastas para falar do tempo atual costumam estudar a história passada em busca de vestígios que expliquem algo sobre o momento em que vivem. Parece o caso do diretor francês Bertrand Bonello em "L'Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância" (França, 2011), filme que concorreu à Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano e entra hoje em cartaz no Cinema da Fundação.

O filme narra a história de um grupo de prostitutas francesas num bordel no início do século 20. Não há exatamente uma trama, cada cena parece uma eloquente pintura que documenta a história social francesa a partir da decadência de um tipo peculiar de tradição, os prostíbulos. Homens vêm em busca de satisfação, mas não há qualquer aprofundamento nos personagens masculinos; eles são sombras que surgem e vão embora depois de satisfazer desejos sexuais, sem nenhum tipo de julgamento moral.

A permanência é a das prostitutas. Talvez como modo de sobrevivência elas se tratam com delicadeza honesta, e as cenas comuns do cotidiano parecem os melhores momentos do filme. A certa altura elas tomam banho de rio num dia de sol, e a impressão é de que são irmãs saindo em liberdade pela primeira vez, finalmente respirando ar puro longe da opressão do trabalho. O filme tem essa mistura curiosa entre melancolia e romantismo em estado bruto.

Bertrand parece ter uma curiosidade voyeur sobre o cotidiano dessas mulheres, narrando progressivamente as consequências de uma vida sexual sem controle higiênico. Há uma preocupação em detalhar técnicas rudimentares de limpeza e pequenas lições de paciência para suportar perversões sexuais, a descrição minuciosa de aspectos terríveis de doenças contraídas, um olhar duro sobre uma tradição e como ela se estabelece na sociedade.

Uma das personagens é cruelmente desfigurada por um homem durante algo que parece um pesadelo sexual, imagens que voltam ao longo do filme para lembrar os perigos do ofício. Ela fica com cicatrizes no rosto, simulando um sorriso constante, e o filme mostra com algum prazer como tudo aconteceu, enquanto a plateia vira o rosto, indício discreto de cinema de horror. Outras cenas têm carga pesada de submundo do sexo, momentos de dor e indiferença, uma violência que não apenas física, ou quase nunca, sendo talvez por isso uma degradação mais complexa.

Mais para o fim do filme entra um desagradável discurso moral que parece propor uma tese sobre o estado das coisas na França contemporânea, sugerindo que o descuido moral do século passado é o marco zero para problemas atuais. É um epílogo que tenta reconfigurar todas as cenas anteriores, formulando uma nova (e aparentemente conservadora) forma de compreender o que passou.

Drama familiar diluído por humor

Hugo Viana



Certos atores parecem idealmente conectados aos personagens que interpretam, e essa estranha comunhão é muitas vezes o que transforma um filme em uma experiência maior do que o cinema. Parece ser o caso de George Clooney em "Os Descendentes" (EUA, 2012), que entra em cartaz com o incentivo extra dos prêmios no Globo de Ouro (melhor filme e melhor ator, ambos na categoria drama), além de nomeações no Oscar (entre outros, direção, roteiro e atuação).

Clooney interpreta uma pequena variação de um personagem facilmente associado a sua própria estatura, Matt King, homem com pouco mais de 50 anos, um galã depois dos dias de vantagem, que se dedica mais a seu trabalho como advogado num gabinete do que à família.

Ele mora no Havaí e vem de uma família muito rica que é dona de parte considerável de um terreno numa área essencial para o turismo. O resto da família e Matt estão para vender esse terreno, local especial para a família, e existe uma pequena tensão social sobre o destino desse espaço. Todos os primos empresários, nas reuniões para definir o futuro incerto do negócio, usam camisas havaianas e bermudas, demonstração discreta de bom humor.

A mulher de Matt sofre um acidente num barco e fica em coma, e assim como em grandes tragédias épicas as notícias gradualmente pioram muito. Matt precisa se reaproximar de suas duas filhas, Scottie, precioso alívio cômico ao drama do filme, e Alexandra, jovem adulta que é a portadora de más notícias. Matt começa a juntar os cacos de sua vida, buscando apoio até então inexistente em sua família.

O que realmente transforma essa história até certo ponto comum é a interpretação dos atores, todos aplicados a uma proporção de intimidade que ressalta o aspecto "família" do filme, superando a forma banal como o enredo é ocasionalmente tratado.

O filme é dirigido por Alexander Payne, cineasta de poucos filmes, em geral obras sem grande impulso no mercado, mas cheios de personalidade (como "Eleição", de 1999, e "Sideways", de 2004). Parece ser comum ao cinema de Payne a observação de um indivíduo comum em momento de crise, a dificuldade em lidar com perdas e ganhos inesperados, e em "Os Descendentes" Payne parece pender fortemente para o drama comum ao tema, a ameaça iminente do exagero, refreado por ocasionais demonstrações de humor.

Crime e castigo na Suécia

Hugo Viana



É comum a indústria do cinema americano adaptar histórias bem sucedidas criadas em outros países e transformar partes do enredo, apagando curiosidades culturais ou excesso de violência como forma de facilitar a venda no mercado mundial. Vem da Suécia o material original do lançamento "Os Homens que Não Amavam as Mulheres" (EUA, 2012). O enredo é baseado no primeiro livro de uma série de três, escritos por Stieg Larsson. Foi adaptado para o cinema em 2009 na Suécia, e devido ao potencial foi comprado por Hollywood.

Na história, Mikael (Daniel Craig), um jornalista que tentou derrubar um empresário poderoso, mas perdeu no tribunal por falta de provas, é contratado por um homem rico para descobrir o que aconteceu há 40 anos, quando sua sobrinha Harriet desapareceu. Durante a investigação Mikael é ajudado por Lisbeth (Rooney Mara), agente especial eficiente, garota hacker meio gótica que passou a adolescência sob tutela do estado, diagnosticada com fobia social, raivosa e pronta para atacar. Todos são suecos e por algum motivo falam inglês com sotaque.

A escolha do diretor parece a opção natural, David Fincher, autor de "Seven" (1995) e "Zodíaco" (2007), duas formas diferentes de narrar uma história de crimes pavorosos e perseguição policial. Neste novo trabalho Fincher está mais próximo de "Zodíaco", uma forma realista e menos exuberante de contar uma história sobre crueldades e acessos de violência.

Ao contrário do que se poderia imaginar, Fincher não adaptou para o bom gosto os detalhes violentos da história original. A certa altura um homem é cruelmente punido por estuprar uma menina, e nesse instante a plateia cruza as pernas e faz careta. Perto do fim o assassino leva um golpe no rosto com um cano de ferro, e enquanto tenta fugir sua cara está sangrando deformada, o tipo de detalhe geralmente ignorado em filmes que mantêm classificação etária abaixo dos 18 anos.

O filme funciona mais ou menos bem como thriller de suspense, o típico enredo que estende o mistério da identidade do assassino. O problema parece ser o ritmo; quando a parte criminal da trama - que parece ser a principal -, é encerrada, depois de o clímax explodir, o filme sofridamente continua por mais 30 minutos, dedicando-se a um ponto menor da trama, de certa forma se arrasando a um final bem menos impactante.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O estranho mundo de Mario Bellatin

Hugo Viana



Em seus livros, o escritor mexicano Mario Bellatin quase sempre volta aos mesmos assuntos; uma excêntrica proposta literária sobre corpos mutilados ou geneticamente modificados em busca de crenças religiosas e formas alternativas de satisfação sexual. Seu novo lançamento no Brasil é "Cães Heróis" (128 páginas, R$ 37), em que o autor reforça a aparente preferência por histórias curtas que parecem conter na brevidade uma estranha intensidade. Mais uma vez a Cosac Naify, editora que em 2009 lançou o ótimo "Flores", criou um projeto radical: ausência de capa, lombada exposta, livros envoltos em sacos plásticos. No enredo acompanhamos a misteriosa história de um "homem imóvel", preso a uma cadeira de rodas, dono de 30 cães pastores belga malinois treinados para atacar a jugular de visitantes indesejados. Ele mora com a mãe e a irmã, ocupadas fazendo um trabalho aparentemente inútil: catalogar sacolas plásticas vazias para depois entregar a um grupo não identificado, além de um enfermeiro-treinador de cães, com quem o homem imóvel mantém uma curiosa relação de poder que envolve ter suas coxas massageadas e dividir a cama durante certas noites de tensão. Esse estranho relato é comentado por Bellatin nesta entrevista, em que o autor explica motivações e comenta técnicas de escrita.

Seus dois livros lançados no Brasil pela Cosac Naify possuem um projeto editorial radical, tanto na brochura quanto nos textos. Gostaria de saber primeiro se você fornece indicações para as editoras de outros países sobre como deve ser a versão final do livro, e em que medida, neste lançamento, essas intervenções são importantes para a narrativa.
Uma das razões para me sentir tão contente ao ser publicado por uma editora assim é precisamente porque cada edição tem uma proposta única. Sempre procuro que meu trabalho seja apenas uma plataforma para que outros possam fazer seu próprio projeto artístico. É o que ocorre quando se realiza alguma adaptação de meus livros a outros meios, ou inclusive quando um leitor reconstrói seu próprio livro depois da experiência de leitura. Assim como quando eu vou ao teatro ver uma adaptação de algum texto meu, a chegada de um livro editado pela Cosac Naify é uma verdadeira surpresa.

Em "Flores", no começo do livro, você escreve sobre "uma antiga técnica suméria", comentando a "construção de estruturas narrativas complexas a partir da soma de determinados objetos que, juntos, compõem um todo". Autêntico ou não, esse trecho sugere como fruir o livro. Pela ausência de parâmetros, "Cães Heróis" parece uma obra mais ousada. Como chegou a essa estrutura?
Essa "antiga técnica suméria" é um invento que me serviu para justificar aquele livro que tem a forma de um buquê. No caso de "Cães Heróis", por se tratar de uma experiência real - nada do que está escrito é produto da ficção, e sim de uma experiência que vivi uma certa tarde na Cidade do México -, eu senti que era mais necessário do que das outras vezes ressaltar os vazios, os silêncios, o que não pode ser dito através de palavras. Foi a primeira vez que um texto não foi criado inteiramente em meu gabinete de trabalho, e sim pela própria realidade esmagadora.

Muitos aspectos do enredo de seus livros não são detalhados. A sensação é de que algo permanece em segredo. Uma atmosfera de desespero iminente que surge através de metáforas. Como você enxerga esse recurso, em que dados são apresentados mas nunca realmente explicados?
Me parece que existe uma espécie de jogo no feito de não detalhar o que supostamente se deve detalhar e se deter mais da conta em aspectos na aparência banais. Creio que isso produz algo como um estranhamento no mundo que se está descobrindo. Desse modo o leitor se sente num espaço que lhe parece conhecido, mas que ao mesmo tempo adverte que funciona de maneira diferente do mundo que ele conhece todos os dias. Eu utilizo esse recurso duplo como um mecanismo de sedução. Trato de prever qual será a reação do leitor ao passar de uma linha para a outra. De algum modo me converto enquanto escrevo numa quantidade infinita de leitores.

Numa das metáforas, você escreve, sobre o quarto do protagonista, que os visitantes "intuem uma atmosfera que guarda relação com o que se poderia considerar o futuro da América Latina". Gostaria que você falasse sobre as possíveis leituras políticas desta história, e seu interesse em falar sobre a América Latina usando este "homem imóvel", imagem que parece carregada de simbologia.
Acabo de tornar público que não existem "as antigas técnicas sumérias", não quero ainda mostrar as leituras políticas que podem caber em "Cães Heróis". É um trabalho que quero deixar para o leitor, por hora. Uma vez que conte com diversas formas de abordar o tema arquivarei um diálogo a partir dos distintos pontos de vista. Já tenho várias opiniões e teorias dos leitores, muitas delas assombrosas, e preciso como autor, para seguir escrevendo, receber de vez em quando a voz do outro lado.

Nesses dois livros, os personagens têm corpos mutilados ou geneticamente modificados, e isso parece em excêntrica sintonia com uma busca por religiosidade e uma atração sexual fora padrão socialmente aceito (travestis, gays). Gostaria que falasse sobre o cruzamento reincidente em suas histórias entre corpo, sexo e fé.
É verdade. Há pouco foi editada uma compilação com quinze textos meus e percebi, com algo de estranheza, que essa constante estava presente em quase todos. Corpo, sexo e fé, mas todos eles alterados, fora da lógica do normal. Quando vi que isso era certo fiquei surpreso. Compreendi que estava tão absorto na construção dos livros que esses elementos estavam sendo criados sem que eu tivesse uma consciência plena de sua existência.

Você já ministrou oficinas literárias. Como enxerga a criação de uma história, os métodos ou técnicas para desenvolver um enredo? Seu texto parece muito mais intuitivo, liberdade em que algo inesperado surge não necessariamente por seguir determinadas técnicas, mas por um forte desejo de contar uma história...
As técnicas ou se inventam no momento da escrita ou não serão efetivas. Ao menos não para realizar um texto literário. Com "literário" me refiro a um texto absolutamente fiel a si mesmo. Me emociona o momento em que se deve utilizar qualquer recurso para sair incólume de determinada situação. É o que faço com as sessões de escrita que de vez em quando realizo. Reúno uma média de dez participantes, e em cinco dias devemos ter pronto um livro que nenhum dos assistentes, e menos ainda eu, tínhamos ideia antes de começar. Há pouco fiz uma experiência semelhante no Rio de Janeiro, da qual apareceu um livro publicado chamado "Circunvago".

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

As diferentes cores de um relacionamento

Hugo Viana



Algumas histórias são jornadas pessoais e ocasionalmente egoístas de personagens. Acompanhamos um curioso catálogo de equívocos, e surge então uma frágil sensação de empatia.

O novo trabalho de David Mazzucchelli, 51 anos, desenhista norte-americano que participou de edições de "O Demolidor" e "Batman", colaborando com Frank Miller, é um exemplar ideal de história sobre falhas humanas: "Asterios Polyp" (344 páginas, R$ 63), lançado em 2009 e publicado agora no Brasil pela Companhia das Letras.

Asterios é apresentado nas primeiras páginas como um tipo épico de derrotado, barba por fazer, deitado ébrio numa cama desarrumada, meias, camisas e jornais amassados jogados no chão, garrafas de uísque vazias na estante, luzes desligadas, filme pornô passando na TV, olhar ausente e melancólico, a representação da inércia de quem perdeu muito.

Um raio acerta seu prédio e queima completamente sua casa, mas antes de escapar ele salva rapidamente três pequenos objetos aparentemente sem valor, um isqueiro, um relógio e um canivete, deixando para trás fitas de vídeo e imagens de um passado talvez perdido.

Asterios sai de casa vestindo a mesma roupa suja que estava usando e com o pouco dinheiro que tem no bolso compra uma passagem para qualquer lugar. "Até onde isso me leva?", pergunta ao caixa na rodoviária, mostrando uns tantos dólares, movimentos automáticos de fuga. Chega a uma cidadezinha e encontra uma vaga de mecânico. Até este momento sabemos exatamente nada sobre Asterios, apenas que se trata de um pedaço acabado de homem, pessoa sem perspectiva de coisas boas, alguém que aparenta potencial maior do que sua vida atual oferece.

A narrativa então se divide em duas partes, presente e passado; instante atual, em cores pastéis, localizando os pensamentos desnorteados de Asterios, e momentos anteriores, em tons de azul e vermelho, ressaltando uma dualidade de sentimentos em conflito. O uso de cores parece não apenas definir tempos diferentes, mas também sinalizar um tipo reservado de emoção, uma carga de sensações que aos poucos revela personagens complexos.

O centro da história é a relação entre Asterios e Hana, uma tímida professora de artes plásticas que ele conheceu numa festa na universidade em que ele ensinava arquitetura. A relação deles é representada nos momentos importantes através de dois diferentes estilos; Hana é desenhada com traços livres, que sugerem instabilidade criativa, enquanto Asterios é ilustrado através de blocos geométricos, um tipo intelectualmente funcional, o equilíbrio calculado entre razão e emoção. É através do traço, e não apenas das palavras, que entendemos os personagens.

Ao mesmo tempo em que parece um tratado sobre linguagem de quadrinhos, colecionando diferentes tipos de atos criativos, como uma ótima ideia de usar diferentes fontes para representar as falas e os estilos de cada personagem, "Asterios Polyp" é também um resumo sensível de relacionamentos, familiares ou amorosos, que termina na incrível imagem de natureza absurda, sugestão melancólica do humor imprevisível da vida.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Estranho encontro num dia quente

Hugo Viana



Há uma unidade nos trabalhos do escritor e desenhista Lourenço Mutarelli, uma marca de estilo em geral obscura, como se em cada projeto existisse a presença alegórica de um calabouço em pleno dia de sol, e seus personagens fossem levados à força até lá e modificados emocionalmente com a experiência. Sua nova obra tem o ótimo título "Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente" (Companhia das Letras, R$ 44,50, 112 páginas), crônica em que uma medida de normalidade é modificada por algo espetacular. Depois da morte da mulher, o pai de um narrador sem nome encontra um ET num dia quente, e esse possível rumor se transforma nos desenhos de Mutarelli, evolui para uma misteriosa história sobre a lembrança distante de um passado vagamente familiar e a sensação de que algo permanece em segredo. Nesta entrevista, o autor explica, com um tipo peculiar de humor, motivações para a criação da história e ideias para o desenvolvimento da narrativa.

Você começou a produzir HQs nos anos 1980 e voltou agora, num outro momento do mercado editorial do Brasil. Gostaria que você falasse sobre as diferenças nesses dois períodos.
A grande diferença dos anos 1980 para cá é que quase não existem mais quadrinhos em banca de revista. Acho que é o que eu mais estranho e sinto falta. Não tenho acompanhado muito o que tem saído, mas tem essa forte tendência dos álbuns autobiográficos ou nessa linha. Sinto falta da fantasia ou da diversidade que era possível encontrar nas revistas. Mas se hoje tivessem revistas em banca eu também não estaria lendo.

Seu trabalho recente com literatura parece ter uma relação, às vezes discreta, com a narrativa em HQ: frases curtas, e, em especial em "Nada me Faltará" (2010), uso exclusivo do diálogo. Como é a correspondência entre livro e HQ?
Quando estou escrevendo um livro não vejo relação com quadrinho, desde a ideia inicial o pensamento é outro. Minha estrada pelos quadrinhos influenciou muito o meu olhar e a minha forma de narrar uma história. "Nada me Faltará" foi pensado como se com os balões de uma HQ. Da mesma forma que esse 'Quando Meu Pai...'. Eu acho que a literatura que venho praticando se refletiu nesse quadrinho. Tudo que eu faço acabo somando na minha obra, independente da forma que for contada.

Sempre que leio um trabalho seu percebo nos personagens uma espécie de brutalidade interior que vai crescendo, até que perto do final costuma explodir, mas neste notei um tom menor, talvez mais íntimo ou delicado. Você comentaria alguma motivação diferente nesta HQ?
Eu queria uma historia simples e que tivesse certa delicadeza. Eu estava buscando uma outra coisa. Nesse álbum a ideia nasceu de uma piada que o (escritor) Marçal Aquino me contou sobre um ET que não tem nada a ver com a história que eu desenvolvi, mas que trazia um clichê das historias de ET: a frase "Leve-me ao seu líder". Essa frase ficou ecoando da minha cabeça e eu não saberia a quem eu levaria o ET caso ele me pedisse isso. Foi daí que surgiu a história, foi daí que desenvolvi o argumento.

Ao mesmo tempo, assim como outros projetos, há uma medida de normalidade do cotidiano transfigurada por algo espetacular, algo que de certa forma está expresso no título (a relação entre encontrar um ET e a notificação de "um dia quente"). Em que aspectos esse novo trabalho continua questões suas?
A única coisa que tem de autoral nesse livro é que eu usei algumas fotos da minha infância, são referências puramente imagéticas. Como o livro é narrado em primeira pessoa por um personagem que não tem nome e não aparece dá a impressão que sou eu quem está contando.

Gostaria que você falasse sobre a relação entre palavra e imagem neste trabalho. Aos poucos vamos percebendo que os textos antecipam as imagens, e essa falta de sincronia parece representar uma memória fora de ritmo, um deslocamento das lembranças, talvez a sugestão de fabulações do narrador.
Como é uma história sobre a memória, e o personagem principal está contando algo que ele não vivenciou e que aconteceu dez anos antes, pensei em brincar com a ideia da arte sequencial. A memória é uma ficção e em nenhum momento eu queria que a imagem estivesse ilustrando o texto. Queria representar esse processo mental do personagem.

Houve alguma influência do cinema neste novo trabalho? Cada página é um único quadro, e é possível perceber um elevado grau de rebuscamento na construção das imagens, cada uma funcionando quase como uma tela autônoma.
Realmente eu pensava numa tela, pensava em apresentar o texto quase como uma legenda. Gosto de um conceito de William Burroughs, a 'tela mental': o espaço onde projetamos e vemos nossas lembranças.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Os fragmentos de um personagem

Hugo Viana



Alguns personagens parecem ocupar o ócio criativo do respectivo autor, permanecendo na memória mesmo depois que suas histórias ficcionais foram publicadas em livro, insistindo em aparecer em novas narrativas. O escritor Cristovão Tezza, vencedor dos prêmios Telecom, São Paulo e Jabuti, lança o livro "Beatriz" (Rercord, R$ 34,90, 144 páginas), composto por sete contos sobre a personagem do título, que já havia surgido em algumas pequenas histórias e no romance anterior do autor, "Um Erro Emocional" (2010). Tezza volta à Beatriz propondo uma investigação fragmentada em histórias curtas, uma pesquisa sentimental que examina afetos ocasionalmente sombrios que assaltam o cotidiano desta mulher de 28 anos, uma revisora de textos que rabiscou de seu passado um marido infiel e umas tantas boas oportunidades de emprego. "Eu não sabia bem quem era Beatriz", diz Tezza, em entrevista por e-mail. "Ela foi construída em degraus." Outro personagem que também volta é o escritor Paulo Donetti, ranzinza absoluto que cometeu um erro emocional ao se apaixonar por Beatriz. Nesta entrevista, Tezza comenta a relação com seus personagens e explica como foi voltar a escrever um livro de contos.

Gostaria que você falasse sobre as circunstâncias da criação desses dois personagens, Paulo Donetti e Beatriz. Eles parecem resultado de muita reflexão e trabalho.
Reflexão teórica ou formal, talvez não; sou um escritor bastante intuitivo. Mas trabalho, com certeza. Em cada texto ficcional, o personagem parece que se desdobra, revela outros pontos e traços, que eu acabo levando para o texto seguinte. A personagem Beatriz foi construída em degraus. Eu não sabia bem quem era ela. Já o Paulo Donetti está quase que inteiro no primeiro conto, em estado bruto. Os textos subsequentes, incluindo o romance "Um Erro Emocional", apenas revelam o que ele já havia mostrado em potencial. Mas é engraçado que ele quase que se suaviza no romance, que, por dar mais tempo, acaba criando nuances que estavam ausentes no conto de sua criação.

Com exceção de "Amor e Conveniência" e "O Homem Tatuado", os outros cinco contos de "Beatriz" já tinham sido publicados em antologias, sites e revistas. Como foi a organização do livro, no sentido de criar textos novos e adaptar narrativas antigas a um ponto comum, Beatriz?
Quando me deu o estalo de compor um livro de contos com os dois mesmos personagens, percebi que isso já era o que eu vinha fazendo sem saber, ao insistir na Beatriz e ao repetir Donetti em "A Viagem". "Amor e Conveniência" era um conto que só por acidente estava na gaveta, por falta de uma oportunidade de publicação. O único texto que de fato foi escrito para o livro, já tendo todo o conjunto em perspectiva, foi "O Homem Tatuado". Ao preparar a coletânea, tive apenas o trabalho de lapidar arestas, para marcar uma certa continuidade.

Neste livro há a sensação que alguns personagens (em especial do conto "O Homem Tatuado") também renderiam novas jornadas, histórias que parecem não se esgotar. Há interesse de continuar com algum deles? Há algo particularmente positivo ou negativo nesse fascínio que certas criações podem exercer sobre os autores?
Bem, cada caso é um caso; não há rigorosamente dois escritores semelhantes em seus métodos. A permanência de alguns personagens em livros diferentes é uma tentação que de vez em quando me bate. "O Fantasma da Infância" foi escrito com personagens de "Juliano Pavollini", embora os livros sejam completamente dessemelhantes. Sinto uma atração por este jogo. Talvez por eu ter sido um leitor apaixonado de Balzac e de Faulkner, que inventaram cidades paralelas às cidades reais.

Embora a tentação imediata seja entender Paulo Donetti como um tipo de alter-ego seu, ele na verdade parece ser uma forma de sintetizar alguns posicionamentos sobre o meio literário em geral, fabulações que não representam necessariamente seu ponto de vista sobre festivais, escritores, editores, além da proposta vida/literatura, real/criação. Gostaria que você falasse sobre Donetti, sobre as possibilidades narrativas que surgem ao ter um escritor como personagem.
Obviamente Donetti não é meu alter-ego; quem me conhece sabe que estou a quilômetros de distância daquele mau humor e daquela agressividade; também não sou um depressivo e (acho) nunca fui tocado pelo ressentimento - pois todas essas "desqualidades" parecem definir Paulo Donetti, o que me divertiu. E também me dá liberdade: muitas vezes Donetti fala exatamente o que penso, o que acontece muito na vida real: às vezes alguém com quem você não concorda em nada diz alguma coisa que você assinaria embaixo. O conto "Beatriz e o Escritor" revela um Donetti próximo da caricatura, do traço rápido e definidor, sem nuances, o que é frequente no gênero do conto. Mas ele ganha outra complexidade no romance. Um outro aspecto é que o personagem escritor é bastante frequente nos meus livros; é uma espécie de investigação paralela, mas sempre ficcional, sobre o que significa o ato de escrever.

Tanto "Um Erro Emocional" quanto alguns contos de "Beatriz" (penso em "Amor e Conveniência") tratam de uma noite em que os personagens não falam o que sentem, reproduzem ações mecânicas (ir ao restaurante, comer uma pizza, abrir uma garrafa de vinho), embora estejam em ritmo frenético de pensamentos. Gostaria de saber sobre essa estrutura narrativa, a pouca mobilidade em termos de história em oposição a um complexo movimento interno.
Costumo definir a mim mesmo como um escritor adepto do "realismo reflexivo"; o desafio é você fazer desta reflexão, muitas vezes abstrata dos personagens sobre as pessoas, as coisas e o mundo, uma ficção que não perca de vista a intensidade narrativa. Em "Um Erro Emocional" eles quase não se movem, mas a memória de cada um viaja sem parar. Há um sem-número de micro-histórias que vão se encaixando na lentidão do texto maior. Do ponto de vista da linguagem, essa estrutura acabou por amadurecer uma sintaxe muito particular que venho desenvolvendo desde "Breve Espaço Entre Cor e Sombra".

Até hoje você escreveu apenas um livro de contos, e agora o segundo. Além das diferenças básicas de tamanho e estrutura, o que você comentaria sobre "Beatriz"? O livro parece funcionar bem aprofundando a personagem a partir de fragmentos.
Sim, é bem possível que eu volte a publicar um livro de contos. Não sei bem o que dizer sobre o livro, apenas que Beatriz continua viva na minha cabeça. Estou com três novos contos em perspectiva. Não escrevi ainda nenhuma linha deles, mas já anotei os títulos num rascunho. Mas vão demorar. Acabo de entregar um livro novo para a editora - "O Espírito da Prosa" -, uma reflexão sobre o romance que deve sair no segundo semestre, e até lá quero descansar um pouco.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

História familiar marcada por sangue

Hugo Viana



Não é incomum a literatura recorrer ao sangue como um artifício para falar sobre outros aspectos da vida, uma metáfora mais ou menos versátil para fins tão diversos quanto o vício de seres mitológicos ou a união familiar. É nesse segundo tópico que se encaixa o novo livro do escritor Yu Hua, "Crônica de um Vendedor de Sangue" (Companhia das Letras, 272 páginas, R$ 41), autor chinês de maior alcance mundial, dos livros "Viver" (2008) e "Irmãos" (2010), também lançados pela Companhia das Letras.

A história se passa nos anos 1950. O protagonista é Xu Sanguan, operário de uma fábrica de seda, homem regido por um certo sentido de tradição, em especial pela noção de família como reduto de segurança. Sanguan gosta de duas mulheres, Lin Fenfang e Xu Yulan, acaba ficando com a segunda, uma jovem honesta em busca de mimos, e eles formam uma família com três filhos. No papel do provedor da família, Sanguan adquire o dinheiro necessário vendendo seu sangue para um hospital decadente, e com isso consegue manter certo grau de satisfação financeira.

Esse é um detalhe histórico autêntico, fato que nos anos 1950 levou chineses à morte, por métodos nem sempre adequados de extração, ausência de qualquer medida de higiene, mas ao mesmo tempo comum, por render "o equivalente a meses de trabalho na fábrica".

O livro tem então uma certa conotação política, em especial por tratar abertamente de um problema autêntico, a venda de ilegal de sangue, mas essa leitura aos poucos parece um interesse menor e inteiramente subjugado ao drama dos personagens, em parte pela grande habilidade de Hua para construir personalidades, dar a eles uma camada extra de humanidade.

Não há um enredo no sentido tradicional; acompanhamos vários anos da família Xu, alguns altos e em geral muitos baixos, pequenas situações fragmentadas que tratam da dificuldade de permanecer unido quando tantas decepções se acumulam. O que parece tirar o peso melodramático da história, que envolve traições e brigas no meio da rua observadas por vizinhos, é a própria escrita de Hua, um humor discreto, uma forma de relatar o desastre como uma delicada comédia da vida privada.

O texto de Yu Hua é inicialmente um relato quase documental sobre o cotidiano chinês, mas aos poucos essa prosa vai se modificando, tornando-se um incrível panorama emocional de uma família durante décadas; um drama que coloca os personagens à frente da história, localiza a família como meio de sobrevivência, e ao fim parece impossível não se admirar com fraquezas ou sucessos de cada um deles.