terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Os labirintos do cinema pernambucano

    Sérgio Bernardo / Arquivo Folha

Para Paulo Cunha, professor de cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a história do cinema pernambucano é uma espécie de labirinto; os caminhos podem ser truncados ou mesmo sem saída, mas estão essencialmente conectados. Se hoje o cinema pernambucano é elogiado, ganha prêmios e se destaca internacionalmente é porque segue, por rotas incertas, conceitos estabelecidos décadas atrás. "Não tenha dúvidas que o cinema que temos hoje, em termos de qualidade, está vinculado, de maneira intensa, ao que aconteceu entre os anos 1930 e 60", destaca Paulo. "Foi uma época em que se produziu poucos longas-metragens, mas muito conhecimento de cinema", ressalta o professor. 

Paulo lança o livro "A imagem e seus labirintos: o cinema clandestino do Recife 1930-1964" hoje, às 16h, na Biblioteca Central da UFPE. A obra é uma continuação da pesquisa do professor, que estuda a história do cinema pernambucano. "Essa pesquisa ocorre há mais ou menos cinco anos. O passado não está guardado no formol. Ele está concretizado no presente. Comecei focalizando o período pré-cinema, de 1850 até 1931, a primeira fase, a chegada da fotografia. Falei da questão da cidade. Muita gente fala de 'cinema pernambucano', mas em grande medida é, na verdade, 'cinema recifense'. O grosso da produção é muito vinculado à Cidade", diz Paulo. 

Há dois momentos importantes na história do cinema pernambucano: o Ciclo do Recife, movimento que, nos anos 1920, provocou mudanças significativas no modo fazer filmes, com "Aitaré da Praia" e "Jurando Vingar", e, depois, na década de 1970, com o projeto estético Super-8, baseado em narrativas filmadas com a película de 8mm, formato associado a produções caseiras ou independentes. Entre esses dois momentos, a história do cinema pernambucano permanecia pouco conhecida, com ideias fragmentadas e alcance reduzido. 

"Escolhi falar sobre o período entre 1930 e 64 por uma razão particular", justifica Paulo. "Na historiografia do cinema pernambucano, esse momento é visto como uma fase de vazio. Entre o Ciclo do Recife e o Super-8, o cinema daqui ficou praticamente abandonado. Achava essa visão muito enviesada. Comecei a perceber que o que houve foi uma redução na produção de longas-metragens, mas a experiência do cinema como um todo cresceu. A crítica foi sólida, aconteceram visitas dos cineastas Orson Welles e Roberto Rossellini, estreou o primeiro filme sonoro, nos anos 1940, o cineclube 'Vigilante cura' promoveu debates. A experiência cinematográfica não encerrou, apenas mudou de foco. A cidade passou a vivenciar o cinema de outra forma", destaca o pesquisador, que além de professor é também jornalista e cineasta. 

Histórias de cineastas
e eventos culturais

Sobre os filmes da época, Paulo Cunha dedica atenção especial às obras de Firmo Neto e Rucker Vieira, além de Alberto Cavalcanti, realizador importante na história brasileira. "Cavalcanti gerou polêmica no Recife", sugere o pesquisador. "Ele veio quando a Vera Cruz fracassou, estava em decadência, magoado. Fez aqui o filme 'O canto do mar'. Por causa de comportamentos diferentes, atraiu a ira da parte conservadora da Cidade. Tinha gente que não gostava do filme dele antes de ser exibido. Não gostavam dele. Durante a exibição, no São Luiz, assassinaram um político na porta do cinema. Um cineasta que provoca tanta celeuma gera uma energia, positiva ou negativa, que influi no pensamento de cinema de uma cidade", sugere Paulo. 

O livro é composto por reflexões sobre pessoas e eventos culturais do Recife, e como esses fatos influenciaram na construção gradual de um ambiente cinematográfico. "Evaldo Coutinho iniciou em Pernambuco uma crítica diferenciada, erudita, filosófica", avalia Paulo. "Evaldo merece ser revisto, fazia uma crítica incrivelmente sofisticada. Jomard Muniz de Britto teve atuação importante como professor de cinema e depois fez filmes. Em Pernambuco as formas de lidar com o cinema são integradas: escrever, pensar, projetar, programar. Isso é essencial e uma coisa muito nossa, que repercute na qualidade da produção atual", aponta. 

O autor apurou, também, a interferência do pensamento estrangeiro no Recife. "Teve um crítico francês que veio ao Recife e tomou banho nu em Boa Viagem. Rossellini trocou correspondências com Josué de Castro com o intuito de filmar o livro 'Geografia da fome', o que nunca aconteceu. Algumas histórias são aparentemente pitorescas e anedóticas, mas criaram uma energia propriamente de cinema. Cinema é muito mais do que um filme. Por isso a palavra 'labirinto' do título: na história do cinema pernambucano há muitas saídas, algumas fazem com que as coisas circulem, outros caminhos são imprevisíveis", opina. 

Saiba mais 

HISTÓRIA - No livro, Paulo reflete sobre o sistema de exibição do Recife, destaca a importância das salas de cinemas, como o Coliseu, e programadores, como Celso Marconi. 

TRAJETÓRIA - Paulo Cunha é doutor em Artes e Ciências da Arte pela Universidade de Paris I - Panthéon-Sorbonne (1989), fez cinema experimental (em Super-8 e em 16mm) e lançou, recentemente, os livros "A utopia provinciana: Recife, cinema, melancolia" (2010) e "Imagem & cotidiano: ensaios de cultura visual" (2012). 

Serviço

"A imagem e seus labirintos: o cinema clandestino do Recife 1930-1964", de Paulo Cunha
Editora Nektar, 140 páginas, R$ 30

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O cinema segundo Abbas Kiarostami


Os filmes do cineasta iraniano Abbas Kiarostami apresentam características importantes para compreender procedimentos cinematográficos contemporâneos. A partir de obras como "Close-up" (1990), "Dez" (2002) e "Cópia fiel" (2010), Kiarostami investiga vestígios do real na encenação; narra, através da contemplação de uma realidade encenada para a câmera, os modos da vida cotidiana - temas que pautam o cinema independente atual em diferentes regiões.

O livro "Abbas Kiarostami", escrito pelo próprio realizador, com depoimentos do crítico e teórico de cinema iraniano Youssef Ishaghpour, oferece contribuições importantes para compreender a arte de Kiarostami - e, como consequência, concepções sobre o cinema atual. Antes dos textos há uma sequência de 52 imagens - o projeto "As estradas de Kiarostami", feitas pelo próprio cineasta -, que de certa forma antecipa o sentimento de seus filmes; a contemplação, a expansão vagarosa do olhar, a observação sobre eventos da rotina.

Nos anos 1990 o cinema iraniano passou a ser reconhecido; diferentes países perceberam, na cinematografia do país, a urgência de um movimento unificado por valores culturais e propostas estéticas em sintonia com o momento político pós-revolução islâmica, em 1979. "É interessante perceber como, depois das revoluções das décadas de 1960 e 70, os cineastas do Irã elaboraram uma produção consistente, acrescentando ao cinema europeu uma nova fronteira criativa", comenta Ana Farache, jornalista e fotógrafa, doutora em comunicação pela UFPE. "Esses diretores conseguiram desmontar a ideia de que a contemplação como dimensão do olhar não teria mais espaço na nossa cultura, pela quantidade de tentações visuais e velocidade de distribuição", destaca.

No livro, o autor explica sua perspectiva sobre o cinema, revelando, através de seu gosto cinéfilo, sua proposta de estilo. "Não suporto o cinema narrativo. Abandono a sala. Quanto mais se esforça por contar, e quanto mais sucesso tem nisso, maior é minha resistência. A única maneira de prefigurar um cinema novo reside em um maior respeito pelo papel do espectador", destaca o autor. Em seus filmes, a noção de cinema narrativo, em que a história é contada de maneira linear, é abandonada; o que permanece é um exercício consciente de identidade, uma espécie provocação, através de sensações abertas à interpretação.

"O primeiro plano de 'Five', que, como os demais, dura uns dez minutos, reduz-se à imagem de um pedaço de madeira à deriva na arrebentação das ondas do mar. É algo absolutamente insignificante e desprovido de qualquer nuance dramática", diz o cineasta pernambucano Marcelo Pedroso. "Mas a rigorosa insistência em centralizar o plano nessa situação banal, a temporalidade desconcertante que o cineasta consegue articular na ação e a infinitude de sentidos conotados que o simples recorte do quadro (e fora-de-quadro) sugere são capazes de introduzir uma tensão propriamente dramática a uma situação que seria justamente a negação desses mesmos princípios. Mas para senti-la, é preciso se permitir, aderir à frequência do filme", destaca Marcelo.

Pedroso é autor de obras como "A balsa" (2008) e "Pacific" (2009), filmes que desafiam por reformular características tradicionais do cinema narrativo. "Quando exibi 'Balsa' nas escolas, os jovens se amotinavam durante a sessão tentando fugir, o professor tinha que praticamente armar uma barricada na porta. Um dos estudantes, ao final de uma sessão, esperneou: 'Professor, você não disse que a gente iria ver um filme?!' Acho que essa fala resumia a situação: aquilo não era filme, não podia ser filme, não correspondia à ideia que eles tinham de filme", diz Pedroso.

"É preciso desconstruir essa ideia do filme de ação (que não é necessariamente ruim; o ruim é quando este modelo se impõe como único, quando ele se configura como determinante do que é cinema e do que não é). Lembro que [o diretor Emir] Kusturica disse que há dois tipos de cinema: o de Spielberg e o de Kiarostami. Acho que é isso, de forma caricata: o cinema do contra-campo e o cinema do extra-campo. Um não é melhor do que o outro, é preciso compreendê-los e saber desfrutar do que cada um oferece enquanto experiência aos sentidos", destaca o cineasta. 

A contemplação como 
proposta conceitual


   Marcelo Pedroso

O cinema de Kiarostami toca em aspectos essenciais da produção contemporânea; trata-se de um autor que sintetiza questionamentos sobre técnicas e identidades de países periféricos, marcas de estilo de geografias com tradições relativamente recentes de cinema. Uma dessas características é a contemplação; a observação como meio de sensibilizar.

"Acho o termo 'cinema contemplativo' um pouco perigoso", opina Marcelo. "Em geral, tende a afastar pessoas. Contemplativo pode sugerir um certo vazio, uma rarefação de acontecimentos e normalmente o público associa a filmes chatos. O que acontece é, na verdade, um descompasso de regimes sensórios. Nossa relação com a imagem em movimento é moldada pelo que a televisão e o cinema industrial nos convidam a experimentar", sugere o diretor.

A forma como vemos filmes se modificou; a tecnologia, primeiro através do rádio, em seguida da televisão e hoje da internet e meios digitais, interferiu na relação com as imagens. Kiarostami é exemplo de autor que trabalha, através da câmera e da montagem vagarosa de planos, a ideia da sublimação a partir do olhar. "Minha predileção pelo plano-sequência resulta da necessidade de poder acreditar no que se passa à frente da câmera. Não se pode acreditar em certos acontecimentos se não os filmamos em profundidade de campo e em plano-sequência, evitando os cortes de montagem", escreve o cineasta.

"Nossa relação com as imagens se funda a partir dos códigos que esses modelos nos oferecem: narrativas esquematicamente elaboradas, com uma mensagem a passar, um conflito estabelecido, um clímax", diz Marcelo. "O que esses 'filmes contemplativos' propõem é uma ruptura nesse código, um convite a uma atração a partir de outra percepção sensória. O tempo age de outra maneira, ele não condensa os acontecimentos, mas os expande, os conecta a seus aspectos aparentemente irrelevantes, situando os fatos dentro de uma arquitetura que não é exaustivamente elaborada em privilégio da ação. Não são filmes que mimetizam o tempo real, eles se aproximam do cotidiano, de uma certa desdramatização do mundo, mas fazem isso para introduzir curvas de tensão onde elas aparentemente não existiam", sugere o realizador.

A contemplação, nos filmes de Kiarostami, torna-se uma espécie de ação criativa. "Essa atitude segue o fluxo do pensamento de filósofos, como Plotiono, por exemplo, que postulam não haver contradição entre ação e contemplação. Ao observar seus personagens e suas ações, Kiarostami abre espaço para uma narrativa estabelecida no silêncio. Quando contemplamos, o silêncio se apossa de nós. Nossa mente se cala. Nas palavras de Plotino, 'a alma, então, atinge a tranquilidade e nada busca por estar plenificada, e a contemplação, nesse estado, repousa no interior, por confiar possuir'", reflete Ana Farache, cujo doutorado reflete sobre o espaço reservado à contemplação no contemporâneo.

Serviço

"Abbas Kiarostami", de Abbas Kiarostami e Youssef Ishaghpour
Cosac Naify, 328 páginas, R$ 95

Filme-propaganda contra os russos


Durante a Guerra Fria, parte de Hollywood serviu como uma espécie de arma contra o comunismo, colocando os russos como vilões, ameaças ao american way, apontando o dedo para pessoas de ideologias diferentes. Essa ideia parece ter voltado, talvez motivada pelo ataque terrorista de 2001; o cinema torna-se, então, ferramenta para instigar medo e revolta.

"Jack Ryan: operação sombra", filme ruim de Kenneth Branagh, parece resgatar o desconforto contra estrangeiros. O filme, uma ação nada original, é baseado em personagem criado por Tom Clancy (1947-2013), especialista em literatura de espionagem. Jack Ryan (Chris Pine), que apareceu em diferentes livros do autor, é um analista de dados da CIA - este filme, no entanto, não é baseado em nenhuma obra. 
Na primeira cena o vilão (interpretado pelo diretor) demonstra que é mau e estúpido; espanca um médico por ter aplicado errado uma injeção em seu braço. 

Quer destruir os Estados Unidos para vingar a Mãe Rússia. Ele e outros falam inglês errado, sem conjugar direito os verbos, embora negociem com empresários americanos. A construção do protagonista é ainda pior, um homem que combina inteligência e força extrema. Seu maior sonho é salvar o mundo e apertar a mão do presidente; um herói sem complexidade.


Há uma cena que ameaça transformar um filme num exemplar decente de ação, uma sequência de espionagem que, através da montagem em diferentes perspectivas, injeta adrenalina. Logo em seguida, no entanto, cenas que tratam os EUA como salvadores colocam este filme como peça descartável de propaganda. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Alegorias lúdicas sobre sentimentos universais

As grandes narrativas infantis consideradas clássicas, os textos que parecem crescer com o tempo e se tornam referências para diferentes gerações, apresentam não apenas um enredo favorável para o amadurecimento emocional de crianças; destacam-se, também, pela criação de vínculos afetivos com leitores adultos. É geralmente através de alegorias, histórias que podem ser interpretadas de maneiras diferentes de acordo com a idade e bagagem cultural do leitor, que clássicos se tornam memoráveis. 

A Cosac Naify lança neste mês três narrativas cuja possibilidade de compreensão é vasta. "A parte que falta encontra o Grande O", de Shel Silverstein (1930-1999) - sequência de "A parte que falta" -, lançado originalmente em 1981, parece especial pela maneira como sugere emoções reconhecíveis. O primeiro livro, publicado ano passado pela editora, é um relato sobre um ser redondo, como um Pac Man, em busca de algo que complete sua existência. Neste, a "parte que falta" do primeiro livro é a protagonista - um triângulo que procura se encaixar em algum círculo e, assim, tornar-se completa. 

Uma leitura possível é a partir das dificuldades nos relacionamentos, a busca eterna por um parceiro(a) que nunca parece corresponder a expectativas, gerando, assim, aprendizado. Silverstein cria, com sensibilidade, situações em que podemos reconhecer o processo gradual de aceitar o outro e, finalmente, amadurecer. A metáfora afetiva - e, em alguns momentos, sexual - é delicada, encarada com humor adulto. Esse parece o grande mérito do autor norte-americano: a maneira como cria situações que podem ser interpretadas de formas diferentes. 

Outros lançamentos da Cosac Naify indicam esse mesmo tipo de sensibilidade editorial. Em "O carrinho da Madame Miséria", da francesa Lise Mélinand, vemos desenhos que parecem representações impressionistas da relação de uma senhora moradora de rua com a cidade. Dependendo da intensidade da emoção, a autora transforma a realidade, coloca a Madame Miséria como uma gigante enfurecida ou uma mulher afetuosa. É uma narrativa que parece educar o olhar para perceber as gradações de cinza da região urbana, observar pessoas geralmente ignoradas pela lei. 

Já "Pelo nariz", terceira parceria entre Arthur Nestrovski, que escreveu o texto, e Marcelo Cipis, responsável pelas ilustrações (os outros livros foram "Barulho, barulhinho, barulhão" e "Cores das cores"), apresenta uma história guiada pelo olfato. Ao apresentar imagens que os leitores lembram o cheiro, como grama molhada, pão de queijo ou livro impresso, e outras que habitam apenas a imaginação e um sentido de aventura, como o odor do Abominável Homem das Neves, o autor parece fazer uma espécie de inventário da infância, catalogando as fragrâncias no instante em que são reconhecidas pela primeira vez. Trata-se de uma representação visual do processo de descoberta associado à consciência infanto-juvenil. 

Livros 
"A a Parte que Falta encontra o Grande O" (112 páginas, R$ 45), de Shel Silverstein 
"O carrinho da Madame Miséria" (32 páginas, R$ 35), de Lise Mélinand
"Pelo nariz" (48 páginas, R$ 39,90), de Arthur Nestrovski e Marcelo Cipis

domingo, 19 de janeiro de 2014

A literatura pernambucana que resiste fora do eixo

Hugo Viana

    Bruno Liberal

A atual produção literária de Pernambuco vem recebendo elogios, crescendo com o esforço de escritores que desenvolvem projetos pessoais; ao mesmo tempo, autores que moram no Interior do Estado, mesmo apresentando vigor criativo, não recebem reconhecimento equivalente. Essa situação parece sugerir a existência de fronteiras que dificultam o acesso a autores que gradualmente constroem uma trajetória relevante. 

Uma das revelações recentes é Bruno Liberal, de Petrolina, que venceu, ano passado, a primeira edição do Prêmio Pernambuco de Literatura (a segunda edição está com inscrições abertas), com o livro de contos “Olho morto amarelo”. A conquista rendeu ao escritor a certeza da publicação, pela editora Cepe, marcada para março. A vitória acabou chamando a atenção para um escritor de talento que, de outra forma, passaria despercebido. 

“O prêmio foi o mecanismo que me jogou na cena pernambucana de literatura”, comenta Bruno. “Antes disso eu era um cara com um sonho e uns textos na gaveta. Apenas. Não há dúvidas que esse tipo de premiação é muito importante para descobrir autores e também reafirmar a qualidade de escritores já consagrados. Mas o prêmio é uma visão fotográfica da realidade do concurso. O que vai fazer do livro uma obra de arte ou não são os leitores”, destaca. 

A surpresa com a revelação de um texto maduro, vindo de um município sem tradição na história literária pernambucana, parece indicar certo desconhecimento da produção contemporânea feita fora do circuito central. Políticas culturais, como o próprio Prêmio Pernambuco, ou ainda festivais e concursos, parecem assumir a importância de mapear esses autores, investigar nomes interessantes e divulgar obras com potencial. 

“A produção literária no Estado nunca se resumiu ao Recife”, destaca Wellington de Melo, escritor e coordenador de literatura da Secretaria de Cultura de Pernambuco. “O que acontece é que o olhar da mídia e de setores da academia não chega a essa produção. Parece que para serem vistos esses escritores precisam desenvolver sua carreira no Recife ou fora. Mas a literatura segue se desenvolvendo no Interior a despeito do nosso desconhecimento”, ressalta. 

O recente movimento de descoberta desses novos autores surge, em grande parte, através de projetos dedicados a examinar renovações na literatura, apresentando, em festivais, a obra de escritores que iniciam percursos autorais. “Temos polos com tradição literária, como Caruaru e Sertânia, e novos como o grupo u-Carbureto, em Garanhuns ou Silêncio Interrompido, em Goiana, os dois com proposta independente de editoração. Há também uma produção forte nas cidades irmãs Petrolina e Juazeiro. O Araripe tem uma jornada literária que ajuda a revelar nomes. Ou seja, há muito por descobrir”, diz o coordenador.


    Wellington de Melo

Autores buscam meios 
para entrar no mercado


 foto: Amanda Pietra (Nivaldo Tenório)

Eventos literários continuam sendo formas efetivas de divulgação para autores fora do Recife. “Embora alguns vejam com maus olhos, acredito que eles se tornaram imprescindíveis”, opina Mário Rodrigues, autor de Garanhuns que, ao lado dos escritores Helder Herik e Nivaldo Tenório, criou o projeto u-Carbureto. “Eventos movimentam economicamente a cadeia do livro, fornecem subsídios financeiros para o autor, além do contato com possíveis leitores”, lista Mário. 

Mesmo lançando livros desafiadores, como o recente “A invenção dos avós”, de Helder (pela u-Carbureto), que mistura formatos, usando contos, poesia e prosa na construção de um sentimento pessoal, e aparecendo em uma quantidade maior de eventos, como os projetos de literatura do Sesc, que levam debates para fora do Recife, escritores do Interior continuam enfrentando dificuldades antigas: a publicação e a distribuição. 

“Como a distribuição da Cepe é restrita, não dá para pensar em uma grande movimentação de marketing”, comenta Bruno. “Estamos desenvolvendo um site de divulgação e um booktrailer. As ações serão focadas na internet. Para alcançar mais leitores é preciso aparecer: palestras, universidades, festas literárias. Para quem não faz parte do círculo de autores que viajam o Brasil a convite de organizadores de eventos, o que resta é fazer barulho na internet”, diz. 

A distância em relação ao Recife parece sugerir que a fronteira - não apenas geográfica, mas também política e econômica -, interfere nos procedimentos do mercado editorial. “O Recife é central, pelo menos em relação a Garanhuns ou Petrolina, mas não é o centro“, avalia Nivaldo Tenório, que lançou, em 2012, “Dias de febre na cabeça”. “Escritores como Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito sabem disso e se hoje são reconhecidos é porque são bons”, diz.

O projeto que burlou a geografia 

 foto: Amanda Pietra (Helder Herik)

Projetos editoriais independentes geralmente surgem como uma espécie de resistência às regras impostas pelo mercado. A proposta u-Carbureto, de Garanhuns, tem essa essência; nasceu, inicialmente, em 2005, como um jornal de faculdade, editado por Helder Herik e Mário Rodrigues, na época estudantes, e Nivaldo Tenório. “O propósito era divulgar nossos primeiros textos e, com isso, amadurecer”, ressalta Helder. 

Aos poucos o projeto cresceu; além de apresentar textos dos três autores, surgiram contribuições que aumentaram o alcance do projeto, como dos escritores José Castello, Cristóvão Tezza, Sidney Rocha, Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito. “O jornal nos possibilitou trapacear a geografia. Como não era possível habitar o centro, trouxemos o centro até nós. Estabelecemos um diálogo e de algum modo subvertemos nossa condição de gauche”, destaca Nivaldo. 

Em2009, o u-Carbureto deixou de ser apenas um suplemento literário e se tornou um selo editorial, com a publicação de “As plantas crescem latindo”, primeiro livro de Helder. Até agora foram lançados nove obras, entre romances, contos e poesia. “Juntamos um capital inicial e começamos a publicar”, lembra Mário. “Os processos editoriais - a escrita, a preparação, a revisão ortográfica, a diagramação, o projeto gráfico, as fotos, as ilustrações -, ou dominávamos ou tínhamos conhecidos que faziam o serviço como freelancer”, detalha. 

Além de tomar conta dos meios de produção, como geralmente ocorre em editoras independentes, os integrantes da u-Carbureto enfrentam problemas antigos, a distribuição e a divulgação. “É difícil entrar nas grandes livrarias; mesmo que isso aconteça, a exposição seria rápida e irrisória. Contratar um distribuidor é inviável em virtude das baixas tiragens (em média são mil exemplares) e do preço. De modo que a distribuição fica restrita à nossa região e através de sites pessoais e/ou páginas no Facebook”, explica Mário. 

Uma característica importante do mercado em espaços com tradição literária recente é a necessidade de amadurecimento tanto do escritor quanto do leitor. “Aquela ideia ‘romântica’ de jogar tudo no papel, imprimir de qualquer jeito e ser reconhecido como gênio não passa mais pela cabeça de ninguém. Sabe-se da necessidade de leitura; sabe-se da necessidade de acompanhar o que acontece na literatura; sabe-se que a publicação não faz um escritor, mas sim o valor artístico intrínseco à obra. Portanto, o estofo intelectual, digamos assim, não é uma carência. O que falta, numa escala maior, são leitores críticos”, destaca Mário.


 foto: Amanda Pietra (Mário Rodrigues)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Em busca das mitologias da vida


O escritor carioca Alberto Mussa parece motivado pela história do Brasil, pela natureza de mitos da cultura árabe, africana e indígena, incorporando a atmosfera alegórica dessas narrativas em seu processo de escrita. A editora Record começa a relançar os livros de Mussa, com novo projeto gráfico e textos críticos. Os primeiros são "O enigma de Qaf" (2004) e "O senhor do lado esquerdo" (2011). 

A escolha desses livros para iniciar a reedição não parece aleatória; são obras que apresentam o método de escrita do autor, materializam sua proposta conceitual, reforçam a existência de um projeto literário baseado na documentação de mitos, transformando aspectos da cultura popular em criação literária, em enredos de ficção sobre a identidade de cidades, pessoas. 

"O senhor do lado esquerdo" usa estratégias do gênero policial para contar a história do assassinato do secretário da presidência da República em um prostíbulo de luxo no Rio de Janeiro, em 1913. A partir deste crime, o autor apresenta eventos excêntricos da história carioca, relatos sobre feiticeiros, índios, tesouros escondidos, criando, aos poucos, uma antologia de acontecimentos exóticos. 

Mussa escreve no limite sinuoso entre ensaio e ficção, pesquisa histórica e arranjo literário, sugerindo a dúvida sobre a natureza do enredo. A ambiguidade cresce gradualmente, provocando certa confusão sobre a origem das narrativas contadas - informações históricas ou simulações autorais? Talvez seja essa região imprecisa que torna o livro especial: o momento em que fatos se tornam lendas, quando rumores se transformam em fabulações que se misturam à própria história de uma cidade. 

"O enigma de Qaf" é um tipo de romance de aventura, a saga de um poeta-herói em busca de um poema. A obra é composta por três narrativas. Há a história do protagonista, dividida em 28 capítulos, que correspondem às letras do alfabeto árabe; entre esses segmentos, Mussa escreve trechos chamados "Parâmetros", lendas de heróis árabes, e "Excursos", textos relacionados ao enredo principal. Essa espécie de rigor estrutural não diminui o impacto da escrita e a perícia da construção progressiva de uma espécie de mistério. 

"Literatura representa 
a busca pela alteridade"

Para estes relançamentos, você releu os livros? Tem o hábito de voltar a seus textos (e modificá-los)?
Fiz uma revisão, e as modificações foram mínimas, apenas corrigi defeitos. Não tenho o hábito de reler meus textos, nem rescrevê-los. Mas quando se trata de reeditá-los, é sempre importante rever, sempre é possível melhorar, sempre tem um erro, ou uma frase que poderia ser mais clara, mais elegante.

Você escreve, na introdução de "O senhor do lado esquerdo", que "a literatura, para ser minimamente interessante, tem que ser diferente da vida". Pode desenvolver essa ideia?
Só a experiência literária, a experiência da leitura, permite que um indivíduo viva vidas que não poderia, fisicamente, viver. Literatura, para mim, representa essa busca pela alteridade. Quanto mais radicalmente buscada, melhor. Por isso, tenho pendor por narrativas históricas e fantásticas. A literatura pode ser uma máquina do tempo. A literatura pode fundar universos. Acho certa perda de tempo ler um livro e encontrar histórias já vividas por mim ou por pessoas que eu conheço.

Neste livro, além do enredo principal, há pequenas narrativas que criam uma atmosfera fantástica em torno da história do Rio de Janeiro. Qual seu interesse ao reunir esses casos? 
O objetivo de todas as histórias paralelas é exatamente esse: o de criar um clima meio fantástico, meio lendário, porque a matéria-prima da minha ficção é a mitologia. Todos os meus livros têm um fundamento mítico. É através dessa perspectiva que eu vejo a história, as cidades, as pessoas, a vida em geral. Existe um outro motivo para as histórias paralelas: na verdade, faz parte do meu próprio processo de criação, gosto de eleger um tema, um princípio ou um problema e explorar variações. Um leitor atento percebe que o fundo comum das histórias de crime neste livro é o mesmo.

O texto mistura realidade e ficção, ensaio histórico e narrativa policial. Que tipo de sensação buscava provocar ao propor essa união? 
Tenho muito interesse, sempre tive, na narrativa policial. Porque permite uma abordagem plenamente intelectual, mais ensaística e menos psicológica. E minha literatura foge intencionalmente do psicologismo, que domina a ficção ocidental desde pelo menos o século 19, e desde sempre o romance brasileiro. Também não acredito que a literatura "de gênero" (policial, histórico, aventura, ficção científica) seja necessariamente subliterária, como costuma ser encarada. 'Os irmãos Karamazov', por exemplo, é tecnicamente um romance policial; e não deixa de ser uma obra-prima. 'Moby Dick' é um clássico do romance de aventura e está no mesmo patamar. 

Livros que unem História e técnicas literárias parecem provocar uma tensão: a dúvida sobre a natureza do conteúdo. É uma sensação que te atrai?
Meus livros podem dar falsa impressão de que derivam de pesquisa. As únicas preocupações que me levam a consultar livros são relativas a verossimilhanças históricas. Por exemplo, se eu for narrar uma cena acontecida no tempo de dom João não posso introduzir um lampião a gás, que só veio depois. Não posso falar na floresta da Tijuca nos meados do século 19, quando ainda não tinha sido replantada. Para isso, disponho de volumes específicos, dicionários de ruas, compêndios de história que me resolvem em 15 minutos o problema. Praticamente todos os episódios que parecem reais, nos meus livros, são ficção, ainda que baseados em outro fato real similar. É a forma de narrar que faz cria essa aparência. Um truque literário, apenas. 

Como percebe a influência de outras culturas, especialmente a africana, a árabe e a indígena, em seus livros? Diria que é uma forma de investigar narrativas de diferentes regiões do mundo?
Embora as três estejam presentes na minha obra, minha relação com cada uma é muito diferente. Apesar de descender de libaneses por parte de pai, nunca falei árabe em casa, fui aprender de maneira autodidata, quando meu pai e meus avós tinham morrido. Minha relação com a cultura árabe, assim, é apenas intelectual. Sobre as culturas indígenas, minha relação é mais antiga, da época em que ingressei no doutorado para estudar as línguas tupis. Conheci a obra do antropólogo Lévi-Strauss, especialmente a série 'Mitológicas', que exerceu em mim uma influência enorme. Muita gente aponta que sou influenciado por Borges. Não nego; mas Lévi-Strauss é seguramente maior e mais importante. Sobre as culturas africanas, não seria justo dizer que têm influência na minha literatura, porque se trata da minha própria cultura. Minha formação estética e religiosa; minha sensibilidade, afetividade; minha perspectiva intelectual, a maneira de me relacionar com o mundo, é toda africana. Os mitos africanos, ou mais exatamente os mitos nagôs ou iorubás, são os meus mitos. São os mitos que aprendi nos terreiros que frequento desde criança. Está na minha essência. É mais correto dizer que a literatura ocidental me influenciou, porque me expresso na tradição desse cânone; não o contrário. Meus livros têm um projeto muito consciente de oferecer uma alternativa cosmogônica não-ocidental. Se o romance precisa agora reformar os conteúdos, nada melhor do que buscar estímulo em formas de ver o mundo diferentes da sociedade dominante.

Saiba mais

TRADUÇÃO - "O enigma de qaf" foi traduzido para o árabe e publicado no Egito. A negociação começou a partir do interesse do ensaísta de literatura do país árabe Wail Hassan, que indicou o livro para o Centro Nacional de Tradução do Egito. 

OBRAS - Além desses dois lançamentos, Mussa é autor dos livros: "Elegbara" (1997); "O trono da rainha Jinga" (1999); "O movimento pendular" (2006); e "Meu destino é ser onça" (2009).

Serviço

"O senhor do lado esquerdo"
Record, 304 páginas, R$ 35

"O enigma de qaf"
Record, 272 páginas, R$ 35



sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

#9 Secret life of Walter Mitty (2013)


A vida secreta de Walter Mitty ocorre durante lapsos, instantes em que o personagem de Ben Stiller, também diretor, foge da realidade e se imagina uma espécie de grande homem - herói, valente, eloquente. São momentos em que o filme se transforma em curta-metragem de gênero, sequências de um ou dois minutos que passam a sensação de comédia, aventura, ação; percursos excêntricos que revelam as necessidades emocionais do personagem. A vida real de Walter Mitty é reclusa, trabalha no setor de revelação de negativos da revista Life, passa o dia em um espaço escuro tratando imagens cheias de energia e vida. A estrutura do filme, baseada em opostos evidentes, não parece uma falsa profundidade dramática; apresentando a vida do protagonista através de dois extremos há uma espécie de afirmação realista sobre o vazio que preenche a região intermediária, cuja natureza é gradualmente sugerida em cenas familiares. A Life está prestes a migrar do impresso para o digital, cortes brutos serão feitos na equipe. Walter não parece ter muito a oferecer, a não ser a imagem "número 25" de um rolo enviado pelo principal colaborador da Life como sugestão para a capa da última publicação. Segundo o fotógrafo, essa imagem é a "quintessência" da vida (ou da Life revista, jogo de palavra). Naturalmente a imagem 25 não está entre as recebidas pelo departamento de Mitty, sugerindo que a vida é a busca, o percurso. Ele decide, então, procurar o fotógrafo, na Groelândia. É nesse instante em que o filme, a própria realidade de Walter, se transforma nos delírios iniciais; enfrenta um tubarão, se joga de um helicóptero para um barco, foge de um vulcão em erupção. Essas cenas são como uma realidade afetiva, o que parece tornar o filme, mesmo com alguns excessos dramáticos, um exemplo interessante de trajetória de um personagem em busca de controle de sua própria existência.