quarta-feira, 17 de abril de 2013

Família embrutecida pela violência


Hugo Viana


O escritor norte-americano Charles Frazier, 62 anos, narra, em seus livros, histórias sobre famílias do sul dos Estados Unidos, pessoas de ambições modestas ameaçadas por forças externas, homens e mulheres vivendo uma espécie bucólica de existência que é embrutecida pela violência. Depois de "Montanha gelada" (que se transformou no filme "Cold Mountain", com Jude Law, Nicole Kidman e Renée Zellweger), Frazier volta a ser publicado no Brasil com "Floresta noturna", um tipo de conto de fadas policial: nos anos 1960, Luce, mulher de meia idade que trabalha num hotel abandonado, precisa cuidar dos filhos de sua irmã brutalmente assassinada. As crianças possuem comportamento duvidoso, uma traquina propensão ao fogo e à violência, modificando a rotina absorta de Luce. A tensão continua se agravando com a notícia que Bud, ex-marido da irmã da protagonista e principal suspeito do crime, foi liberado pela polícia. Frazier parece sugerir suspense através de um ambiente socialmente caótico e politicamente desorganizado, uma geografia que ressalta aspectos selvagens do comportamento humano; a partir de uma prosa emocionalmente rígida, que parece fascinar pela contenção, o autor investiga a história da vida privada, os efeitos da violência na vida íntima de famílias inocentes. Nesta entrevista, o autor comenta inspirações para a história e explica suas técnicas literárias. 

Em "Floresta noturna", assim como em "Montanha gelada", o senhor escreve sobre famílias do sul, a presença da violência na vida bucólica. O que o motiva nessa proposta?
Eu cresci nas montanhas do Sul dos Estados Unidos e minha família está lá há mais de 200 anos. Então esse lugar, com sua bela geografia e às vezes violenta história humana, é o assunto que conheço melhor. Eu sempre me atraio por personagens que anseiam paz, casa e estabilidade enquanto, ao mesmo tempo, precisam navegar por ameaças, perigos e a instabilidade do mundo. 

No enredo, o suspense cresce devagar, através de sugestões, como o ótimo primeiro parágrafo, que insinua o comportamento violento de crianças. Como sentimentos de amor e ódio se desenvolvem em sua escrita? 
Acredito que muito da literatura e da vida envolve opostos, desespero e esperança, medo e desejo, ódio e amor. Em "Floresta noturna", a personagem principal, Luce, retirou-se do mundo e dessas polaridades e se colocou em isolamento, como uma zeladora de um alojamento turístico abandonado e cercado por natureza. Mas o mundo chega batendo em sua porta na forma de duas crianças problemáticas, filhas de sua irmã assassinada, seguidas pelo padrasto ameaçador. 

Nos dois livros o senhor parece ter cuidado especial com os personagens, desenvolvendo-os o suficiente para que o leitor possa, talvez mais do que empatia, entender suas ações. Como compõe seus personagens?
Para mim, personagens geralmente começam como imagens. Em "Floresta noturna", Luce chegou como a imagem de uma mulher jovem em pé, parada na varanda de um alojamento turístico abandonado numa estrada sem saída, longe da cidade. Eu comecei a me perguntar: quem é ela? Por que ela está ali? Como o mundo exterior pode se introduzir em sua vida? Bud, o assassino da irmã de Luce, apareceu como um carro à noite numa estrada escura numa montanha, o rosto do motorista fracamente iluminado pela luz do painel. Eu não sabia quem ele era, de onde veio ou para onde iria. Eu certamente não sabia como ele caberia em "Floresta noturna". Precisei de quase um ano para entender Bud. Um assassino, antes de tudo, mas não um psicopata travado em suas vítimas. Ele é uma bagunça. Impulsivo, facilmente assustado e em pânico, profundamente confuso sobre tudo. Ele faz coisas terríveis, mas em sua mente se enxerga como um inocente fazendo seu caminho através de um mundo que está contra ele. 

Lendo o livro lembrei o filme "O mensageiro do diabo" (1955): a ideia de um grande mal, personificado numa figura paterna, se aproximando de pessoas inocentes e problemáticas. Como o senhor trabalhou a tensão no romance? 
"O mensageiro do diabo" é um filme estranho e maravilhoso, visualmente muito rico e profundamente influenciado por contos populares, particularmente sobre o tema de crianças ameaçadas por adultos. Muitas histórias dos irmãos Grimm - por exemplo, João e Maria - usam esse motivo. Então eu certamente tentei trabalhar com esses elementos para fazer um tipo de conto popular policial. Em termos de tensão, eu revisei e ajustei para tentar estabelecer um ritmo entre os elementos do enredo que criam tensão enquanto deixam espaço para respiração e elementos mais literários, envolvendo o desenvolvimento de personagens e lugares. 

Gostaria de saber mais sobre o narrador do livro. Às vezes ele parece distante, em outros momentos parece consolar Luce. Como desenvolveu essa voz? 
Primeiro, deixe-me agradecê-lo pela pergunta, porque a narração em terceira pessoa é um dos elementos da ficção que mais me interessa. Lendo Homer, Dickens, Tolstoi ou Garcia Marquez, eu constantemente foco atenção na identidade de quem está contando a história. Em meu trabalho, acho que o narrador em terceira pessoa é um personagem separado do livro, não é minha voz nem a voz interna de um personagem. É a voz do contador da história, e eu tenho estabelecer regras para eu mesmo em relação a o que essa voz sabe e não sabe. Eu nunca consigo progredir num livro até começar a escutar essa voz conversando comigo enquanto escrevo. 

"Floresta noturna", de Charles Frazier
Alfaguara, 288 páginas, R$ 39,90

O ruído da realidade na literatura


Hugo Viana


O escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez, 39 anos, percebeu, na história recente de seu país, nos anos 1990, uma possível ideia para um livro. Juan partiu da influência do tráfico no cotidiano, a presença violenta de Pablo Escobar nos jornais, a corrupção política, para então confrontar os efeitos desses dados na vida íntima de uma pessoa comum. O livro se chama "O ruído das coisas ao cair", título que embora trate de um assunto concreto, a queda de um avião, parece ser mais amplo, sugerindo alegorias políticas e sociais em um país que se afunda em crise. Nesta entrevista, o autor colombiano comenta como concebeu o romance e comenta possíveis metáforas do enredo. O protagonista é Antonio Yammara, jovem professor de Bogotá com rotina dividida entre aulas na faculdade e noites bêbadas num bilhar decadente. Yammara conhece Ricardo Laverde, ex-presidiário cuja história irá modificar sua percepção sobre o cotidiano, destacando agruras políticas e convulsões sociais. Juan narra a história como um romance policial, em que a memória, o mistério e o crime são como métodos de uma ficção profundamente conectada com a realidade histórica. 

Gostaria de saber que tipo de metáforas podem ser observadas no título. Parece sugerir uma melancólica alegoria política...
No começo o título do livro era literal. Um momento importante do enredo narra um acidente aéreo que aconteceu nas montanhas colombianas em 1995, e um dos personagens escuta a gravação da caixa preta do avião. O título se referia, simplesmente, aos ruídos de um avião ao colidir com a terra. Mas pouco a pouco as palavras do título foram tomando conotações metafóricas: um destino individual que cai, uma família que cai, um país inteiro (a Colômbia dos anos 1990) que cai ao vazio, derrubado por efeitos nefasto do tráfico e do terrorismo. 

Em vários momentos você reflete sobre a memória, o aspecto vago e fragmentado como as recordações interferem na realidade. O que te motiva neste tema?
Escrevo sobre o que me preocupa, e a memória sempre me ocupou. Me refiro a nossa relação com o passado, o passado de nosso país ou sociedade (o que chamamos de história), mas também o passado privado. Como decidimos o que recordar ou esquecer? Eu vivo com mortos, ou melhor, me interessa mais a presença dos mortos entre nós. Posso dizer que mudou minha vida quando me dei conta que o passado (nossas culpas, nossos erros) não se vai nunca, permanece conosco. "O passado não está morto, nem sequer é passado", dizia Faulkner. 

A história de Yammara está profundamente conectada com debates políticos e sociais. Num país como a Colômbia, que assim como o Brasil sofre com violência e tráfico, a literatura pode ou deve afetar a realidade?
Não gosto de usar verbos imperativos quando falo de literatura. Mas sim, creio que as vidas individuais estão unidas à história e política de mil maneiras inescrutáveis e invisíveis, e que o romance pode falar sobre esse encontro muito melhor que outros gêneros que inventamos para pensar sobre nós mesmos. A literatura de ficção chega a cantos de nossa experiência que nenhuma outra forma pode alcançar, e por isso que é insubstituível: os romances são um termômetro da sanidade mental de um país. Um país sem romance está doente. 

Você nasceu em 1973, então viveu períodos conturbados da Colômbia, a violência, o tráfico. Podemos dizer que a realidade histórica é uma influência em sua produção literária (penso, por exemplo, na presença de Pablo Escobar na história)? 
Quando você me fala da realidade histórica, parece que escolhi temas abstratos (o tráfico, por exemplo) e me dediquei a ilustrar eles com uma história. Não é assim: não escrevo sobre a história como tema. Se escrevo sobre um momento de nosso passado social, é porque encontro nele uma espécie de buraco negro onde afunda o destino de um personagem concreto. Esse livro explora a relação que teve minha geração com o momento que viveu: esses últimos 30 ou 40 anos, desde o começo da guerra contra as drogas. Mas o que me interessa são vidas individuais. Já se escreveu sobre os efeitos sociais ou políticos do tráfico, mas pouco sobre os efeitos emocionais, íntimos, morais. Era isso o que me interessava explorar. 

Nas primeiras páginas você sugere que coisas importantes vão acontecer, antecipa que o destino de Ricardo Laverde é um mistério relevante. O que pode dizer sobre técnicas literárias e, neste livro, um estilo que prende o leitor a partir do mistério?
Meus narradores se relacionam com o mundo da mesma maneira que eu. Escrevo sobre assuntos que me parecem obscuros e misteriosos, ou movido pela intenção de indagar uma vida alheia. "Os informantes", por exemplo, nasceu de uma conversa com uma mulher que conheci na Colômbia e cuja vida me interessou. Fiz perguntas, investiguei, e isso me levou a outras investigações e a um momento histórico mais amplo. O mesmo aconteceu com este livro. O que quero dizer é que escrevo por uma sensação de que a realidade é escura, de que a condição humana é um grande mistério, que as vidas individuais escondem segredos apaixonantes. 

"O ruído das coisas ao cair", de Juan Gabriel Vásquez
Alfaguara, 248 páginas, R$ 39,90

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Vida e obra do poeta kamiquase


Hugo Viana


Ano passado a literatura nacional recebeu uma interessante oferta de livros de poesia (Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Britto, Angélica Freitas), obras que embora tenham qualidades evidentes parecem geralmente menos relevantes, do ponto de vista de mercado, do que o romance. Nesse sentido é curiosa a mudança de valores acionada pelo lançamento "Toda poesia", publicação que reúne a obra completa do poeta kamiquase curitibano Paulo Leminski (1944-1989): o livro se mantém na lista de mais vendidos, mesmo competindo com furacões comerciais como "Cinquenta tons de cinza". 

Um lançamento assim, que agrupa toda a poesia de determinado autor numa única publicação, permite a observação cuidadosa de uma produção literária vasta; no caso de Leminski, textos que revelam, através de ardis e jogos intelectuais, a criatividade de um dos poetas nacionais mais celebrados. O livro tem mais de 600 poemas, de diferentes publicações - obras que, com títulos como "Caprichos & relaxos", "Distraídos venceremos", "La vie en close", "O ex-estranho" e "Winterverno", ressaltam marcas de estilo, posicionamentos estéticos, uma erudição pop, o rigor de um pensamento de vanguarda baseado na emoção. 

"Esses livros são diferentes entre si, mas têm a mesma marca de sua escrita poética. Raízes na poesia concreta e na síntese, na experimentação e no coloquial", escreve Alice Ruiz, poeta e tradutora, que foi casada com Leminski, no texto de introdução. "O mesmo compromisso com duas coisas aparentemente excludentes: a inovação e o afã de comunicar, de dizer. Um dizer repleto de consciência da necessidade do silêncio. Talvez por essas e outras razões sua poesia continue tão atual e ainda converse com o futuro", ressalta Alice, que ajudou a Companhia das Letras na organização do livro. 

Leminski, filho de pai polonês e mãe negra, é reconhecido como intelectual performático, de habilidades que excedem o texto, como se sua personalidade fosse uma extensão necessária às palavras. Uma das páginas de "Caprichos & relaxos" mostra, por exemplo, uma foto sua, vestido à maneira tradicional japonesa, evocando a imagem da cultura asiática, com a inscrição "Kamiquase", exercitando assim uma ironia com várias camadas de significados. 

Em seus melhores momentos Leminski mostra profundo senso estético, conhecimento intelectual sobre arte e história, compreensão a respeito de métrica, rima e combinação de termos, a mistura entre sentimento, sentido etimológico das palavras e referências do cotidiano, da cultura popular. Em frases curtas o poeta curitibano pareceu deixar seu legado, formulando observações como "tudo sucede súbito", "perhappiness" (junção das palavras "talvez" e "felicidade", em inglês) e "teses, sínteses, antíteses, vê bem onde pises, pode ser meu coração", demonstrando assim uma proposta poética intensa e relevante. 

Trechos

Contranarciso (em Caprichos & relaxos)

Assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

O que quer dizer (em Distraídos venceremos)

O que quer dizer, diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz. 

Ópera fantasma (em La vie en close)

Nada tenho.
Nada me pode ser tirado.
Eu sou o ex-estranho,
o que veio sem ser chamado
e, gato, se foi
sem fazer nenhum ruído.

Olinda wischral (em Ex-estranho)

Pessoas deviam poder evaporar
quando quisessem
não deixar por aí
lembranças pedaços carcaças
gotas de sangue caveiras esqueletos
e esses apertos no coração
que não me deixam dormir


SERVIÇO

"Toda poesia", de Paulo Leminski
Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 46


segunda-feira, 8 de abril de 2013

Comédia da vida privada em tempos modernos


Hugo Viana


Foto: Caroline Bittencourt

A família e as formas de se relacionar mudaram ao longo do tempo, e "Machu Picchu", oitavo livro do escritor e guitarrista do Titãs Tony Bellotto, aproveita o que há de cômico nessa nova configuração. A história é dividida em duas partes. Na primeira, um casal quarentão está voltando para casa, cada um em seu carro, para comemorar 18 anos de casamento com jantar romântico. Bellotto alterna dois pontos de vista, o do homem, Zé Roberto, e o da mulher, Chica, enquanto um trânsito exageradamente real testa a paciência do casal. Zé nunca traiu, mas vem pensando com fervor manual nos contatos virtuais, através de chats eróticos e webcam, com W19, mulher jovem de pernas longas que parece a representação sexual de uma doce inocência, uma Lolita vagamente fácil e perspicaz. Chica ama seu marido, pai tranquilo e amante apaixonado, mas mantém relacionamento com Helinho, médico bigodudo que suporta duas rodadas sem pedir tempo. Na segunda parte essas verdades transformam o enredo num carnaval de grandes revelações, o humor baseado no exagero farsesco. O livro, comédia sem credencial dramática, avalia o circo familiar e o desespero da idade com certa truculência, recorrendo ao humor como maneira permanecer popular. Nesta entrevista, o autor explica motivações e comenta a criação dos personagens.

Gostaria que falasse sobre a simbologia do título, "Machu Picchu", o cemitério de automóveis, e da capa, um trânsito que leva ao fim do mundo, um problema que as capitais do Brasil enfrentam.
Machu Picchu é a fotografia de uma civilização extinta, um espaço lúgubre habitado por fantasmas de quem pouco sabemos. O cemitério de automóveis é o Machu Picchu do futuro, a incógnita que deixaremos como legado de nossa civilização. O livro fala também sobre isso, sobre um tempo de mudanças, em que uma sociedade que buscou a mobilidade e a velocidade a qualquer preço acabou imobilizada num enorme congestionamento.

Você criou duas partes: a primeira, com depoimentos humorados sobre a crise de meia idade, e a segunda, uma espécie de humor farsesco. Como pensou essas partes, e como o exagero cômico ajuda o drama da história?
Realmente na segunda parte, a do jantar, pedia desde o começo um tom burlesco, pois foi pensada assim, como um desfecho de vaudeville, de comédia de costumes, teatral. O exagero foi necessário na medida em que toda a trama - e a vida familiar em especial - é mesmo uma grande comédia. Para qualquer um. Pense na sua própria família...

Na primeira parte, mais longa, você alterna confissões do homem e da mulher, numa narrativa composta por duas perspectivas. Como chegou a essa estrutura?
Comecei escrevendo pelo ponto de vista da personagem feminina, a Chica. Narrava em primeira pessoa, e achei que o livro seria inteiro narrado por ela. Porém outros personagens se intrometeram na narrativa, e acabei optando pelas narrativas alternadas na primeira parte do livro. Na segunda parte, no jantar em que tudo se precipita, achei que adotaria as mesmas narrativas alternadas da primeira parte, mas não funcionou. Depois de muitas tentativas, acabei optando pela narrativa em terceira pessoa na segunda parte, com uma pegada teatral e farsesca.

Assim como "O buraco", seu livro anterior, você trata do tempo: a juventude passou, os dias de glória estão perto do fim, o passado amoroso parece mais atraente. Poderia comentar essa recorrência?
Acho que a finitude é um dos grandes temas de todos os tempos. Quando você chega aos 52 anos - meu caso - começa a pensar na sua própria morte, não tem jeito.

Um tema importante do livro é a família: a construção e as novas configurações na relação entre pais e filhos. O que te atraiu neste assunto?
A família sempre me atraiu como tema. No disco "Cabeça Dinossauro" há uma canção minha e do Arnaldo Antunes que se chama "Família". As tragédias gregas são todas baseadas em dramas familiares. Nelson Rodrigues, nosso grande dramaturgo, explorou as relações familiares de forma brilhante. É um tema que me interessa por ser paradoxalmente trágico e cômico.

Como foi a composição dos protagonistas? Você enfrentou problemas com a personagem da mulher? Ela tem menos depoimentos do que o homem (às vezes o trecho narrado por Zé segue por dois ou três seguidos, prendendo mais o leitor).
Bem, pode ter havido um conflito interno, um ataque súbito de "machismo" enrustido, mas o livro foi inicialmente concebido para ser narrado pela personagem feminina. Me diverti à beça descrevendo em primeira pessoa as transas dela com o marido e o amante...

Em seu blog na editora Companhia das Letras conhecemos mais sobre seu lado leitor/escritor, enquanto a música é normalmente o campo artístico ao qual você é mais associado. Uma influência a outra?
São formas bem distintas de atuação, mas têm pontos em comum. A disciplina necessária para a criação é a mesma. A fluência com as palavras, que o exercício da prosa acarreta, ajuda bastante no trabalho de feitura das letras de música. E o mais importante, a alternância do silêncio e solidão da escrita literária com o ruído e coletividade da produção musical me fazem muito bem e me conduzem, numa visão meio zen, a um equilíbrio improvável.

SERVIÇO

"Machu Picchu", de Tony Bellotto
Companhia das Letras, 120 páginas, R$ 32

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose


Hugo Viana


Se uma pesquisa rastreasse a influência do medo no cinema - os diretores que transformaram o cotidiano em imagens aterradoras, os filmes que demonstraram prazer autêntico em gerar sustos -, o realizador britânico Alfred Hitchcock (1899-1980) e suas obras certamente seriam, considerando a vasta história do cinema, as respostas mais populares. 

Hitchcock é tão associado a seu gênero preferido que recebeu a alcunha de Mestre do Suspense, além de seu nome ter se tornado uma espécie base de comparação e adjetivo para catalogar novos filmes ou diretores do gênero. Um dos trabalhos responsáveis por esses notáveis feitos artísticos é "Psicose" (1961), que teve seu imprevisível assassinato no chuveiro e trilha sonora que remete ao movimento rápido e sugestivo de uma faca adaptados tantas vezes e de maneiras tão diferentes em outros filmes, programas de TV ou toques de celular. 

No livro "Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose", o jornalista e escritor norte-americano Stephen Rebello narra a história que envolveu a produção desse filme. Rebello entrevistou a figurinista, os diretores de arte, o autor do livro que inspirou o filme, roteiristas, protagonistas e atores coadjuvantes, explicando como cada um percebia as excentricidades do cineasta britânico, compondo dessa forma um interessante panorama com contradições e peculiaridades de Hitchcock. 

O autor explica na introdução como desde criança era fã dos filmes de Hitchcock, ressaltando como esse interesse acabou direcionando sua carreira para o jornalismo e o cinema. "Ainda menino, com a tolerância de meus pais amorosos e incríveis, eu ligava para o escritório do diretor na Universal, depois da escola", diz Rebello. Depois, em janeiro de 1980, o autor conseguiu uma entrevista, a última conversa de Hitch com a Imprensa. "Consegui após uma série de acontecimentos improváveis e milagrosos. Sentei-me em eu escritório na Universal como um jornalista novato e desconhecido", comenta. 

É um livro que ocupa uma estante popular nas livrarias dos Estados Unidos, mas ainda pouco usual no Brasil: obras que são, ao mesmo tempo, reportagens extensas, que relatam, através de técnicas jornalísticas (apuração, entrevistas, descrição de fatos), histórias de bastidores, e também uma espécie de análise cultural, falando sobre o contexto social e refletindo como as forças políticas e culturais desse período influíam no pensamento cinematográfico da época (um exemplo é Peter Biskind, que teve traduzido no Brasil o ótimo "Como a geração sexo, drogas e rock'n'roll salvou Hollywood"). 

Na publicação, Rebello ressalta como Hitchcock, que na época era também produtor de um popular programa de TV e hábil manipulador da curiosidade da Imprensa, usou poucos recursos, trabalhou mais rápido do que o normal, burlou rigorosas regras para o roteiro ser aprovado e filmou a famosa cena do chuveiro pensando exatamente em provocar um tipo de revolução no mercado, pela sugestão de violência e sexo e uso criativo de montagem e enquadramentos. É uma obra que através de curiosidades instigantes apresenta uma nova perspectiva sobre um dos grandes filmes da história do cinema. 

CINEMA

O livro foi transformado em filme (estreou no Brasil em fevereiro, mas infelizmente permanece inédito no circuito exibidor do Recife), e, na introdução, Rebello descreve a leitura do roteiro, a emoção ao estar próximo de estrelas como Anthony Hopkins (que interpretou Hitchcock), Helen Mirren (Alma, a mulher do diretor) e Scarlett Johansson (Janet Leigh, a protagonista de "Psicose"). 

SERVIÇO
"Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose"
Intrínseca, 256 páginas, R$ 29,90

quarta-feira, 3 de abril de 2013

História de amor e ódio familiar


Hugo Viana*


foto: Bruno Tetto

CURITIBA (PR) – Renata Sorrah, conhecida atriz global, juntou-se ao grupo curitibano Companhia Brasileira de Teatro no espetáculo “Esta criança”, baseado em texto do dramaturgo francês Joël Pommerat, encenado domingo à noite, na 22ª edição do Festival de Teatro de Curitiba. 

“É um trabalho libertador”, disse Renata, em conversa com a imprensa na manhã de domingo. “A TV me deu fama, mas eu nunca vesti essa fama. Gosto de trabalhar com pessoas que me identifico. Vi deles a peça ‘Vida’ e me tocou profundamente, me fez acreditar no teatro de novo. ‘Esta criança’ nos afetou, é uma peça em que as pessoas se reconhecem, pois se não são pais, são filhos”, ressaltou a atriz.

Embora o espetáculo tenha gerado risos, é um intenso drama familiar. A peça é dividida em dez fragmentos, cenas conectadas pelo tema, a família, a relação entre pais e filhos. Em pouco mais de 70 minutos, os atores encenam, em diferentes enredos, o momento exato em que as pessoas perdem o conforto da razão, chutam a porta e gritam com raiva toda amargura gerada pelo desgaste familiar.

Nesse sentido é uma peça de extremos; histórias envolvendo brigas e acusações, sem no entanto o trabalho gradual de uma dramaturgia que torne essa explosão complexa. O interesse é observar a fúria, o que é protestado na embriaguez da raiva, e não investigar a situação emocional que leva ao descontrole (e o que acontece depois do desespero). 

Essa estrutura fragmentada sugere a aparência de uma peça preenchida por vazios, um espetáculo dedicado inteiramente a observar um único ponto de vista na relação familiar, o momento em que as pessoas perdem o controle. Os personagens não têm nome, são apenas pais, mães, filhos e filhas devastados pela percepção de que as pessoas mais amadas podem também machucar. 

Um aspecto negativo da peça é de certa forma uma certa tendência curiosa do teatro nacional. O texto é sempre superior ao ator; a palavra escrita tem a identidade da literatura, e não da linguagem que se acomoda ao perfil de quem fala. Personagens de origens humildes falam com os mesmos termos que psicólogos usariam durante grande descoberta. 

Não parece existir o personagem autônomo: há apenas o texto a ser falado em voz alta, sem particularidades. São quatro bons atores (além de Renata, estão no palco Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha), profissionais que se entregam com paixão aos enredos curtos, mas que não vão além da palavra escrita. Numa peça que coloca as relações familiares no tom do realismo, esse parece um problema incômodo. 

HISTÓRIA

A Companhia Brasileira de Teatro começou sua trajetória no fim de 1999, com a peça “Volta ao dia”, baseada em texto do escritor argentino Julio Cortázar. Desde então, o grupo encenou outras dez peças. “Temos inquietações que ainda persistem, obsessões que estão no fundo do grupo e se transformam, trazem as bases do nosso pensamento sobre teatro”, explicou Marcio Abreu, diretor da Cia. “As peças são apenas a ponta do iceberg.”

*Jornalista viajou a convite do festival


Humor e reflexão social nos palcos


Hugo Viana*


foto: Lina Sumizono/Divulgação

CURITIBA (PR) - Durante o 22º Festival de Teatro de Curitiba a cidade parece se envolver com as artes cênicas, interessada na possibilidade de satisfação, lotando teatros e dialogando com intervenções urbanas organizadas pelo evento. No primeiro fim de semana do Festival, a programação contemplou forças opostas no mercado: peças de companhias pouco conhecidas e espetáculos com atores globais.

Uma das atrações mais aguardadas era “A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento”, peça dirigida por Guel Arraes (de “O auto da compadecida” e “Lisbela e o prisioneiro”), um monólogo interpretado por Marco Nanini, baseado em texto do escritor francês Georges Perec (1936-1982), autor que observou os mecanismos da vida em sociedade e os modos de influência da rotina no comportamento.

O espetáculo, apresentado no Teatro Marista (parecido com o Teatro da UFPE), é como uma palestra de auto-ajuda: Nanini atua no papel de um empresário que relata a jovens trabalhadores como conseguir um aumento. O roteiro é baseado em variáveis: como agir se o chefe está ou não na sala; se convida ou não para entrar; se oferece ou não uma cadeira.

O espetáculo, então, é feito de digressões: o enredo não é uma história linear, uma narrativa que descreve o trajeto de um homem comum em busca do aumento em tempo real, e sim uma combinação aleatória de possibilidades, desvios, retornos, um jogo de probabilidades.

A ironia do espetáculo remete ao cineasta francês Jacques Tati (1907-1982), que, em 1967, dirigiu dois filmes sobre o mundo impessoal das corporações, o longa “Playtime” e o curta-metragem “Curso noturno”. De Tati, Guel Arraes parece incorporar o humor sobre burocracia empresarial e a pequenez do homem comum diante da instituição. A interpretação de Nanini, excelente em cena, também remete à maneira desajeitada de Hulot, personagem icônico de Tati (destaque também para a iluminação, que modifica o único cenário e sugere sentimentos de acordo com a cena).

Embora a peça tenha uma ótima ideia, uma ironia sobre modos contemporâneos, obsessões que afastam as pessoas de felicidades possíveis, parecem existir problemas de roteiro: as piadas se repetem, reiteração que tem como conceito afirmar o labirinto cíclico das corporações, mas que, na prática, no palco, gera cada vez menos risos. É como se diante de tantas possibilidades criativas, enredos de humor que poderiam surgir nos temas “aumento” e “trabalho”, o roteiro se dedicasse apenas a duas ou três ideias, girando em torno dos mesmos tópicos durante uma hora. 

*Jornalista viajou a convite do festival