terça-feira, 31 de dezembro de 2013

#1 The housemaid (2010)


As opiniões de Sang-soo Im sobre a sociedade tendem perigosamente para um tipo de maniqueísmo, insistindo em apontar a localização precisa do bem e do mal, tratando o problema evidente da hierarquia de classes através de representações que excluem a possibilidade de nuances. As pessoas ricas deste filme têm coração ruim, são cruéis de uma maneira que parece repetir um comportamento condicionado pela história social, convocando de forma abrupta e razoavelmente óbvia as necessidades do melodrama. A técnica repete métodos do passado; a câmera é posicionada de maneira didática para enfatizar o poder da hierarquia social, algo que era engenhoso nos anos 1940 mas parece politicamente primário hoje. Os personagens que representam possibilidades de mudança, que tensionam essa suposta crueldade adquirida, ameaçam transformar o filme em um melodrama sofisticado, mas são ofuscados por caricaturas da maldade e decisões arbitrárias que reforçam o que há de ruim e desgastado no gênero. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O eterno impasse do cânone literário

Hugo Viana

Alguns livros permanecem relevantes anos ou décadas depois do lançamento; são obras que, de maneiras diferentes, sugerem ideias pertinentes para gerações seguintes, testemunhos sobre a natureza de dilemas sociais, argumentos que debatem a representação da realidade - pessoas ou lugares - através de enredos e personagens que incentivam uma forma especial de perceber o passado e o tempo atual. Podemos chamar de cânones Machado de Assis e Jorge Amado, por exemplo, pela maneira como ultrapassam barreiras do tempo: continuam vivos como autores importantes para entender costumes sociais e impasses morais ainda hoje simbólicos. 

"São tantas as definições de cânone, e, ao mesmo tempo, reina ideia de que se trata de tábua inflexível, tirânica", comenta Cristiano Ramos, crítico literário e professor. "Harold Bloom, por exemplo, além das qualidades estéticas, defende que 'toda originalidade literária forte se torna canônica'. Mas, hoje, ninguém ignora que algo pode ser considerado belo e original em dado momento, e banal ou mesmo vulgar noutro contexto. Certo é que um autor canônico não pode ser 'homem do seu tempo' - esse clichê que críticos e professores tanto gastam. Para que uma obra sobreviva, precisa justamente do contrário: transcender seu tempo, para que outras gerações possam lê-la, atualizá-la e também considerá-la excepcional", reflete. 

A gênese do conceito não está no processo natural de reavaliação constante de livros; é possível entender o início da ideia de cânone atrelado a pensadores originais que cunharam conceitos e foram seguidos por gerações posteriores. "Se observamos 'Poética', de Aristóteles, veremos que ali está estabelecido o primeiro cânone daquilo que chamaríamos de literatura ocidental", aponta Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de Letras da UFPE. "Aristóteles mostra quais são os livros que deveriam ser imitados, caso alguém decidisse escrever tragédias e epopeias. Obras que atendiam aos procedimentos formais que o modelo clássico defendia como necessários para levar a bom termo uma ação dramática ou épica e, principalmente, promover o processo de catarse", reflete. 

"Durante muito tempo o critério para canonizar uma obra era: quanto mais ela se aproximava do modelo clássico, ela era uma boa obra; quanto mais se afastava, era uma péssima obra. Claro que as coisas não eram tão pacíficas assim. Dois exemplos: o teatro de Shakespeare e o romance inaugural de Cervantes. O primeiro, desrespeita as regras clássicas, e inscreve em suas tragédias o riso e o cômico; o segundo, empareda tanto o modelo de narrativa legado do medievo - a novela de cavalaria - quanto o modelo narrativo da prosa épica", destaca o acadêmico. 

É fácil identificar, hoje, livros e escritores que permanecem relevantes. É difícil, ao contrário, perceber, no momento da publicação, quais as obras que podem eventualmente se tornar cânones. "Se há algo em comum entre obras canonizadas, é que elas tensionaram a linguagem até o máximo grau possível", sugere Anco. "Algumas entram no cânone pela radicalidade com que promoveram a ruptura da linguagem, criando um divisor de água entre o que se fazia antes e o que se sinaliza como os novos caminhos que a literatura deve percorrer. Não podemos deixar de citar tanto os autores que criaram um novo gênero literário, como Cervantes, quanto os que obrigaram a literatura a se reoxigenar, como James Joyce, Guimarães Rosa, Dante", lista o professor. 

Ao mesmo tempo em que há o cânone literário, o modelo de estilo e método que é seguido por novas gerações, existem autores esquecidos; não apenas escritores que lançam livros fadados ao descarte, peças que serão arquivadas nos fundos das livrarias, mas os criadores que embora tenham talento e vigor evidentes não conseguiram, por diferentes motivos, emplacar uma trajetória literária vasta. "Como fenômeno social, o texto literário lida com novas demandas, já que o mundo também está em transformação. Mas me parece que fatores midiáticos, editoriais e de recepção crítica continuam sendo fundamentais. Se não ocorre interesse dos meios de comunicação, ou das editoras, ou dos críticos e pesquisadores, continua sendo muito raro que qualquer autor se sobressaia", sugere Cristiano. 


Cristiano Ramos, jornalista professor e crítico literário

Qual o papel do crítico literário, do editor e dos cursos de letras no debate entre cânone e obras esquecidas?
Papel do crítico e do professor é transformar sua inquieta paixão pela literatura em sugestões, em caminhos possíveis para que o leitor faça sua própria jornada. Dos cursos de letras, oferecer ferramentas teóricas e práticas para esses mesmos profissionais. E do editor, ter sensibilidade para lidar com as demandas do meio literário e também do mercado. Problema é que entre críticos e professores tem faltado aquela paixão inquieta; nos cursos, vontade política e intelectual para enfrentar seus vícios, dilemas e desvalorização; e, quanto aos editores e donos de livraria, quantos verdadeiramente possuem essa sensibilidade que os impeça de vender literatura como se fosse sabão ou refrigerante?

Luz sobre 
obras esquecidas

Hugo Viana

O projeto Reserva Literária, concebido na Universidade de São Paulo (USP), tem como proposta renovar o olhar sobre livros e autores esquecidos, lançando novas edições de obras que causaram impacto na publicação original mas acabaram sem versões recentes. Os três primeiros lançamentos, até agora, são "Contos cariocas" (1928), de Artur Azevedo; "Marta" (1920), de Medeiros e Albuquerque; e "Mau-olhado" (1919), de Veiga Miranda. 

A ideia surgiu a partir da disciplina Introdução à Ecdótica, ministrada por José De Paula Ramos Jr., doutor em literatura brasileira e professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, que apresenta aos alunos fundamentos teóricos da crítica e da preparação do texto para a publicação. "Depois, esse conteúdo torna-se objeto da disciplina Laboratório de Produção Editorial, em que os alunos dão sequência às atividades necessárias à publicação, do design gráfico até a revisão, impressão e lançamento do livro", detalha De Paula. 

A escolha dos livros lançados é baseada em análises em diferentes setores do meio literário. "É uma atividade que compreende pesquisas em bibliotecas, sugestões de amigos, garimpagem em sebos, consultas à historiografia e à crítica literária, o conhecimento da reputação das editoras e, sobretudo, a leitura crítica de obras com potencial interesse para a coleção", diz o professor. 

Até agora foram editados três livros. "'Mau-olhado' era quase invisível na historiografia e na crítica literária. Quando li, tive a convicção de que era uma obra de excelência, pela perícia na construção da trama e das personagens. Medeiros e Albuquerque, célebre em seu tempo, é hoje conhecido por poucos. 'Marta' obteve três edições, a última em 1932. Por ser notável exemplo de nossa um tanto obscura prosa de ficção decadentista, e por ser obra pioneira no aproveitamento literário da psicanálise freudiana, tem méritos", destaca De Paula. 

O primeiro livro da Reserva Literária foi "Contos cariocas", de Artur Azevedo, lançado em 2011. "Artur ainda goza de certo prestígio, sobretudo como autor de comédias como 'A Capital Federal', mas está longe de ser a celebridade que fora em sua época, quando seu talento como poeta e cronista era reconhecido. 'Contos Cariocas' foi publicado uma única vez, em 1928. Essas narrativas breves ensejam uma divertida viagem ao imaginário brasileiro do fim do Império e início da República e ainda guardam muito de seu frescor", aponta. 

Relançar livros e autores chama a atenção para critérios de avaliação, os motivos que levam a uma espécie de esquecimento gradual de mestres do passado. "Os fatores podem ser sintetizados na noção de poética cultural", sugere De Paula. "Cada época tem a sua, composta pelos hábitos, crenças e valores vigentes. Esses fatores se circunscrevem na dinâmica de suas épocas, que prestigiam ou não as suas produções literárias conforme a maior ou menor afinidade da criação artística com o gosto hegemônico em cada período. Assim, o que era considerado de modo positivo, pode ser rechaçado por um momento posterior", ressalta o acadêmico. 

Saiba mais

FUTURO - O projeto Reserva Literária pretende lançar, no primeiro semestre de 2014, o romance "Navios Iluminados", de Ranulfo Prata. Para o segundo semestre, ou no primeiro de 2015, a coleção publicará o romance "O feiticeiro", de Xavier Marques. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Mestre do gênero investiga os contos de fadas

Hugo Viana


O conto de fadas é exemplo de um gênero literário pouco compreendido, geralmente interpretado na tendência superficial de gerar narrativas infanto-juvenis. Um dos mestres desse tipo de literatura, o escritor britânico J.R.R. Tolkien (1892-1973), autor da série clássica "O senhor dos anéis", reflete sobre a natureza do gênero no livro "Árvore e folha", volume que contém o ensaio "Sobre contos de fadas" e, em seguida, o conto "Folha, de Migalha". 

O título desta edição é uma espécie de metáfora para interpretar os dois textos do livro: a árvore e a folha, o macro e o micro; o universo em geral e a parte significativa em particular. Os textos foram escritos no mesmo período (1938-1939), época em que Tolkien começava a desenvolver "O senhor dos anéis" - e, de certa forma, este ensaio permite compreender algumas escolhas estéticas feitas pelo escritor em sua história mais conhecida. 

Tolkien parece uma espécie de professor que defende a possibilidade vasta do conto de fadas, limitada apenas pela imaginação criativa de um autor; um voo alto para além de rótulos previamente estabelecidos, interessado em observar as bases que constituem os contos de fadas. Ao longo do ensaio, Tolkien tem como meta responder questões essenciais e ao mesmo tempo sem definição única: o que são contos de fadas? Qual é sua origem? Qual sua utilidade? 

O autor pesquisa a gênese e os usos da palavra "fada" como um arqueólogo, observando a herança e a difusão cultural, em diferentes épocas, revelando histórias que desdobram o sentido das lendas. Tolkien parte da imagem tradicional da fada (consideradas, em geral, "seres sobrenaturais de tamanho diminuto, que a crença popular supõe possuírem poderes mágicos") para então investigar seus papéis na história da ficção literária. 

Depois de sugerir respostas e percursos para as questões iniciais, Tolkien assina um conto que, de certa forma, exemplifica e aprofunda ideias apresentadas inicialmente como teorias e suposições instintivas. "Folha, de Migalha" é uma narrativa curta cujo início é estruturado a partir de códigos da literatura infantil (especialmente no uso do clássico início "Era uma vez"), mas aos poucos o autor insere ideias que podem revelar a potencialidade dramática de metáforas abertas à interpretação. 

É uma narrativa sobre a jornada de Migalha, um pintor que "precisa fazer uma longa viagem". Nos anos seguintes à publicação, diferentes leitores passaram a ver na trajetória de Migalha uma relação, através de alegorias, com o percurso do próprio Tolkien. Nesse sentido, é particularmente reveladora a (auto?) análise que o escritor faz de seu personagem: um pintor "não de muito sucesso", porque tinha coisas "aborrecidas" para fazer, e "fazia-as razoavelmente bem" - um personagem que resmungava, perdia a paciência e praguejava "quase sempre para si mesmo". 

Migalha "tinha quadros em andamento, em sua maioria grandes e ambiciosos demais para sua habilidade" (na época Tolkien se dedicava à escrita de "Senhor dos anéis"). Se a teoria apresentada por pesquisadores ávidos esconder alguma verdade, o tempo provou que qualquer receio do autor sobre o alcance de seu talento não resistiu no choque com a realidade - gerações de leitores que se formaram nas décadas seguintes encontraram qualidades em seus projetos. 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Crítica amarga aos modos contemporâneos

Hugo Viana


Parte essencial da literatura é a construção de personagens, a criação de figuras que através de gestos e ideias podem ser interpretadas como perspectivas sobre a sociedade. Em seu novo livro, "Seu azul", Gustavo Piqueira trata o casal protagonista como fantoches para falar sobre certos hábitos da classe média brasileira, ironizando costumes guiados por crescente nível de superficialidade.

No enredo, Luiz Fernando e Giuliana são casados há 10 anos e parecem derrotados pela rotina; não conversam sobre nada significativo além das contas para pagar e não demonstram afeto por seu filho, Allyson, de sete anos. Depois de uma consulta, o psicólogo sugere um tipo de terapia: todas as noites, durante o jantar, devem conversar sobre notícias publicadas em grandes portais de notícia.

O livro, então, passa a ser composto apenas por diálogos motivados por reportagens acessadas em empresas de comunicação. Através de notícias como "O que você sabe sobre milionários?" e "Beyoncé compra tênis feitos com pele de animal", Gustavo parece interessado em sugerir um tipo de declínio cultural, criticar a inversão de valores dos dias de hoje e a maneira como o público parece aceitar essas modificações de forma passiva.

O autor debocha de características do mundo superficial, tratando com ironia seus personagens, que exibem níveis incríveis de preconceito, demonstram raciocínio torto, surpreendem pela maneira mesquinha avaliam amigos, família e vizinhos. Luiz Fernando e Giuliana parecem arrogantes com o pouco conhecimento que possuem, um casal verdadeiramente jeca, que acredita na virtude da ostentação, no benefício do luxo.

Gustavo parece consciente das deficiências éticas e morais de seus personagens, criando propositalmente adultos falhos como sintoma de uma sociedade em perigo, personagens que ilustram obsessões contemporâneas de natureza duvidosa. Mas a ironia, que inicialmente é uma espécie de espelho, parece se perder no desprezo contínuo; percebemos o lado mesquinho do brasileiro de classe média, mas nada além disso - uma reunião de cenas que não parece ir além da crítica superficial e humorada, uma sequência de situações que perde o fôlego pela repetição sem aprofundamento.

Não há narrador que direcione a narrativa. A ausência de uma voz dissonante torna a leitura especialmente confusa, por acompanharmos com insistência personagens que abrem a boca apenas para falar bobagens. Algo semelhante a um comentarista, dentro do livro, é Allyson, que durante o jantar desenha o diálogo dos pais, uma ilustração que demonstra, através de acessos de violência e egoísmo, que o futuro parece ainda mais sombrio.

O livro tem um projeto editorial cujo propósito é reforçar o sentimento do enredo através do tato. A capa e a contracapa vêm com areia colada porque, segundo o autor, revela a sensação desagradável que há no livro, um casal em crise. Bem, ele conseguiu, é uma sensação bastante desagradável, a areia cai no leitor, na estante. É preciso ler o livro com espanador do lado. É um tipo de design que leva em conta uma proposta conceitual e não o ato da leitura, embora exista o mérito de assumir riscos e pensar em possibilidades narrativas para além do texto.

Serviço

"Seu azul", de Gustavo Piqueira
Lote 42, 208 páginas
R$ 42,90

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Retrato de uma realidade aumentada sobre o amor

Hugo Viana



O cinema independente norte-americano parece historicamente interessado em avaliar as contradições sociais do país. Temas considerados ariscos para o "grande público", como aborto, incesto e preconceitos em geral são transformados em enredos de qualidade variada no circuito alternativo dos Estados Unidos. O novo exemplo desse gênero é "A Filha do Meu Melhor Amigo" (The oranges), tipo de tradução baseado em reducionismo equivocado, em cartaz na Sessão de Arte. 

O enredo narra o rompimento de um casal maduro, David (Hugh Laurie) e Paige (Catherine Keener), consequência da armadilha da rotina e da incapacidade mútua para demonstrar afeto. A filha do casal amigo vizinho, Nina (Leighton Meester), volta de uma longa viagem "para se conhecer" e, aos poucos, mais ou menos como em "Manhattan" (1979), de Woody Allen, acontece a magia da sedução; a formação de um par romântico inesperado e socialmente julgado como inadequado, o homem grisalho e a mulher com a metade de sua idade. 

O elenco conta com atores experientes como Hugh Laurie, Allison Janney, Oliver Platt e Catherine Keener. Eles tentam interpretar com algum grau de sutileza e sofisticação, procurando demonstrar sentimentos na medida de homens e mulheres adultos calejados, mas o roteiro de Ian Helfer e Jay Reiss parece insistir em aumentar o volume das reações, injetando histeria em situações em que o silêncio poderia indicar uma maior robustez dramática. 

O filme foi lançado nos Estados Unidos em 2011 e estreou no Brasil em setembro. O atraso de dois anos parece indicar certo desprezo das distribuidoras nacionais, ou talvez dúvidas sobre como comercializar um filme que não se enquadra diretamente no cinema alternativo, pela teor mais ou menos conservador, nem tampouco no cinema comercial, pela forma como fala sobre tabus da cultura ocidental.

Cotação: regular

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

As vias indiretas da literatura

Hugo Viana

A editora carioca Confraria dos Ventos promove hoje o lançamento de quatro livros de escritores que, de maneiras diferentes, experimentam construções narrativas pessoais: "Estrangeiro no labirinto" (R$ 50), de Wellington de Melo, "Decadentistas", de Plácido Villanova, "O aquário desenterrado", de Samarone Lima, e "O vencedor está morto", de Bernardo Almeida (cada um por R$ 30). O evento será às 19h, no Centro Cultural Correios. 

É um evento que de certa forma materializa a produção literária de autores que participam do mercado editorial na perspectiva de criadores independentes. Wellington apresenta, neste seu primeiro romance, uma complexa estrutura que ao mesmo tempo em que convida para um enredo sobre personagens à beira do abismo, cria um labirinto de histórias em volta do leitor. Conhecemos um juiz acusado de homofobia, um matador de aluguel, uma prostituta viciada em crack, mas esses rótulos se tornam gradualmente largos e sugerem a humanidade escondida no limite da existência. 

"Talvez uma das coisas mais difíceis da ficção, para mim, que tinha escrito até então poesia, é delimitar as vozes dos personagens", diz Wellington. "Queria compor harmonicamente vozes dissonantes num coro bizarro em que cada integrante está num diapasão diferente. Ao mesmo tempo, me preocupava dar aos personagens a dimensão humana de que precisavam. No livro há muitos jogos de espelhos em que o leitor, desconcertado, se descobre em cada uma das faces que os personagens revelam, só para saber que, na verdade, caíra em uma armadilha. Por isso acho que os personagens só crescem no desenvolver do livro porque se confundem com o leitor, se camuflam em seus medos, seus preconceitos, suas iras", opina.  

Samarone, que semana passada lançou a segunda parte da Trilogia das Cores - crônicas sobre o Santa Cruz -, apresenta seu terceiro livro de poesias. Depois de "Tempo de vidro" e "Praça azul", finalistas do prêmio Jabuti deste ano, Samarone retorna à memória, ao processo ritualístico de lembrar como etapa essencial do processo de criação. Aos poucos, as palavras parecem formar imagens da infância, a manifestação do efêmero, a mistura de tempos: a herança ancestral e o cotidiano presente. 

"A escrita é um processo lento, lentíssimo", avisa Samarone. "Raros são os poemas que saem de primeira. Reescrevo, corto, retorno várias vezes ao texto, antes de considerá-lo pronto. Neste livro, tive leituras exaustivas com o amigo e grande amante da poesia, Arsênio Meira Jr, e com Karla Melo, editora da Confraria do Vento. É quase uma vigília com a palavra. Creio que aprofundei um pouco mais o fluxo de imagens, de memórias, encontrei algumas novas metáforas, como a do aquário desenterrado, que acabou se tornando o título do livro", aponta.

O evento se completa com dois outros lançamentos. Em "Decadentistas", primeira parte da Trilogia do Insulto, Plácido exercita uma escrita de frases curtas que promovem a mistura sinuosa entre afeto e agressão, lirismo e uma certa crueza do cotidiano. Em "O vencedor está morto", o autor baiano Bernardo Almeida apresenta três contos em que Salvador é um espaço contraditório e violento. "Sem, no entanto, excluir ou negar a alegria cínica do baiano, que segura as pontas sempre que pode, conseguindo, muitas vezes, manter o bom humor e o amor pela sua terra, apesar dos muitos motivos que tem para se envergonhar dela nos dias atuais", avisa Bernardo .

EDITORA 

A Confraria do Vento é uma editora com perfil independente, reunindo autores estreantes e experientes. "As grandes editoras raciocinam, ao que parece, levando em conta apenas o mercado", sugere Wellington. "É o modus operandi de um paquiderme ferido: não se movem pelo novo, pela experimentação estética, mas pela segurança do investimento, mesmo que a estética seja essa sombra que repousa em algum lugar da missão da editora. Minha decisão por escrever um romance foi estética: precisava da experiência da faena (o romance é um touro que vamos conduzindo ao sacrifício). Uma editora independente é o melhor parceiro para essa tourada, porque tem a agilidade de perceber a novidade e a audácia de arriscar no novo". 

Perguntas

Wellington de Melo

Você usa a metalinguagem tanto como recurso gráfico quanto em conceitos amplos, como a ideia de livro como "prisão". Como avalia o uso da metalinguagem? 
Só faz sentido para mim usar metalinguagem se for para testar os limites do pacto ficcional, como dar tapas para acordar alguém de um sono profundo para depois deixá-lo voltar ao sonho da narrativa. Acho que só me interessa esse leitor no estado de vigília, caminhando pelo labirinto de linguagem. A metalinguagem, no romance, para além de fazer uma reflexão sobre a natureza da literatura, acaba se tornando um jogo de esconde-esconde, um playground com brinquedos quebrados e crianças estranhas querendo brincar. É talvez por aí que faz sentido usar metalinguagem, se não acaba virando um exercício narcisista de não dizer nada. 

Samarone Lima

Gostaria de saber mais sobre o tema deste livro (e de certa forma também dos anteriores): a memória, a influência das lembranças na formação de um indivíduo. Qual papel da memória em sua literatura?
Na minha poesia, a memória é onde tudo começa. No livro anterior ela já estava muito presente, mas agora assumiu um papel ainda maior. É como se houvesse uma liberação. Sou do Crato, no Ceará, mas vivi em outras cidades e saí de Fortaleza os 18 anos, para viver no Recife. Toda a minha família permaneceu. Nos poemas, há uma constelação de pessoas que me tocam, porque foram responsáveis de alguma forma pelo que sou. A distância não desfez os laços, mas os aprofundou. É como uma louvação aos que vieram antes. Na última viagem que fiz ao Crato, ganhei vários poemas de presente. 

Saiba mais

AUTORES - Além deste primeiro romance, Wellington já lançou "O diálogo das coisas" (2007), "[desvirtual provisório]" (2008), "O peso do medo: 30 poemas em fúria" (2010) e "O caçador de mariposas" (2013). Samarone publicou, em 2012, o livro "Viagem ao crepúsculo", composto por crônicas sobre o período em que passou em Cuba. 


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Fred Navarro reúne expressões e palavras nordestinas em dicionário

Hugo Viana

"Acho que foi Aldir Blanc que disse que o Brasil não conhece o Brasil", lembra o jornalista pernambucano Fred Navarro, autor da terceira edição de "Dicionário do Nordeste", livro que apresenta pouco mais de 10 mil verbetes de palavras e expressões típicas da região (a edição anterior tem 5 mil), que será lançado hoje, às 18h, no Museu do Estado de Pernambuco. "Se uma pessoa do Acre conversar com alguém do interior de Santa Catarina, considerando o sotaque, as gírias, devem levar pelo menos 10 minutos pra entender que falam a mesma língua. A base é única, mas as variações regionais são muito grandes", exemplifica o autor. 

O livro de Fred é uma espécie de roteiro cultural e sociológico de uma língua tão ampla quanto pouco conhecida em seu alcance. O autor compilou expressões típicas, termos que falamos no cotidiano e que geralmente são desconhecidos em outras partes do Brasil. O processo de pesquisa, segundo o autor, levou em conta escritores, músicos e historiadores que contribuíram para a reflexão sobre a linguagem peculiar do nosso Estado.

"Sempre que viajava para o Nordeste comprava livro, disco, cordel. A música popular, o teatro regional, as citações de Ariano, Jorge Amado e Tom Zé e os nordestinismos de José de Alencar são minas de ouro. Quando eu procurava uma citação específica, encontrava duas que não estava procurando. Uma inspiração importante foi 'Dicionário do Folclore Brasileiro', em que Câmara Cascudo não só registra expressões como vai atrás das histórias delas", lista o autor. 

Saiba mais

Fronteiras - O livro será lançado em Portugal, em abril do próximo ano. A tiragem inicial será de dois mil exemplares. 

Guia - O autor diz que um amigo precisou rever o filme "Baile perfumado" com o livro do lado, pois na primeira vez não entendeu metade. Enquanto escrevia o romancce "Big jato", Xico Sá também recorreu ao dicionário de Fred. 

"Dicionário do Nordeste", de Fred Navarro
(Editora Cepe, 711 páginas, R$ 70)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Fragmentos para montar o todo

Hugo Viana

Renato Parada/Divulgação

Os textos da escritora gaúcha Veronica Stigger surpreendem pela maneira como diferentes gêneros, formatos e sentimentos se misturam. Fatos estranhos acontecem sem explicação precisa, eventos do cotidiano são modificados por ocorrências excêntricas e abruptas; a realidade é retorcida por encontros perversos, personagens cedem à insanidade, certo mal-estar provoca o leitor e em seguida a normalidade é retomada, mas parece essencialmente modificada pela experiência.

Veronica lança seu primeiro romance depois de publicar quatro livros de contos. O título apresenta o interesse pelo inusitado: "Opisanie świata", que em polonês significa "Descrição do mundo". O livro parte de uma história de afetos - um filho, que está no hospital com uma doença grave, escreve para o pai que não conhece, um senhor polonês que passou uma temporada na Amazônia. Como último pedido, o filho convida o pai para visitá-lo, para buscar em seu rosto rastros de uma história familiar.

Para chegar a esse pequeno núcleo narrativo, Stigger experimenta uma criação fragmentada, reunindo textos em que a jornada do pai, Opalka, passa por zonas escuras, alternando entre comédia de equívocos e intimidade trágica. Assim como em suas narrativas curtas anteriores, a autora transforma o exagero e a brevidade em um tipo excêntrico de beleza; o absurdo e a união de fragmentos como forma de debater valores existenciais e crises sociais.

O livro é composto por diferentes modalidades de narração: relatos de viagem, cartas, diários, imagens (fotografias e publicidades), recortes de jornais dos anos 1930 - evocando, com essas escolhas, o autor paulista Valêncio Xavier (1933-2008), através da manipulação irônica de gêneros literários. A partir desses fragmentos, pedaços significativos de enredo, o leitor reconstrói a história - o mistério se revela a partir da união de partes distintas.

"Todo relato de viagem é
uma descrição do mundo"

Como foi a escolha do título e que tipo de impacto pretendia causar no leitor? Que alegorias nota em seu significado, "Descrição do mundo"?
"Opisanie świata" é o título de um conjunto de gravuras do artista Roman Opalka, que eu estava estudando lá por 2006, 2007. Foi pesquisando o que significa que descobri que era como se traduzia para o polonês "Il Milione", de Marco Polo. Achei que era o título perfeito para o livro que eu pretendia escrever, um livro cuja ação se dava no deslocamento do protagonista da Polônia até a Amazônia, portanto um livro de viagens. Quanto ao significado do título, se falar muito a respeito, acabo contando o final. Mas posso dizer que todo relato de viagem é, em certa medida, uma descrição do mundo.

Como planejou a estrutura do livro, composta por formatos diferentes - relato em terceira pessoa, carta, diário?
Desde o início, imaginei o "Opisanie świata" como um romance descontínuo, constituído através de várias formas narrativas, entremeadas de imagens, muitas delas provindas de anúncios de jornais e guias da época. Pensei essas imagens e alguns textos curtos que pontuam o livro como recordações que Opalka foi recolhendo ao longo da viagem. A narrativa em primeira pessoa seria como uma espécie de diário, de anotações que ele fosse fazendo no percurso - ou, talvez, depois de ter chegado a seu destino.

Este é seu primeiro romance. Recentemente outros autores que se destacaram através do conto lançaram primeiros romances. Como aconteceu essa transição para você?
Gosto de experimentar diferentes formas e gêneros literários. Nos meus livros anteriores, há textos que tomam forma de poemas, de legendas de fotos, de notícias, de palestras, de peças teatrais, de anúncios publicitários. Faltava experimentar o romance, o que foi um desafio. O conto é uma forma concentrada, com menos personagens e ações. O romance, ao contrário, flerta com o excesso, e eu fiz questão de trabalhar com vários personagens e, principalmente, com várias situações, o que, para mim, era inusual.

Em termos de mercado editorial, acredita que o romance é mais facilmente vendido do que o conto?
Sim, há essa crença, por parte do mercado editorial, de que o romance é mais facilmente comercializável. Por isso, dei a meu primeiro romance um título em polonês, que ninguém consegue pronunciar. Assim, ele não corre o risco de parar na lista dos mais vendidos.

É possível notar características recorrentes em seus textos: o interesse pelo detalhe, pela maneira abrupta como fatos inusitados irrompem na rotina. Como percebe essas características de sua escrita?
O interesse não é tanto na descrição detalhada da rotina quanto na descrição dos gestos dos personagens. Em vez de dizer "Fulano está constrangido", tenho preferido mostrar este constrangimento por meio da descrição pormenorizada de seus gestos. Alguns textos se resumem a isso. O conto "Caverna", de Os anões, de 2010, por exemplo, narra a movimentação de uma série de personagens dentro de uma sala pouco iluminada. Neste conto, o inusitado reside justamente na troca incessante de lugares, sem uma aparente razão para tal.

Em seus textos parece existir certa estranheza: a realidade é retorcida por absurdos. Neste livro a estranheza está já no título. Como percebe o excêntrico como recurso narrativo e estilístico?
Queria, com o título em polonês, justamente criar estranheza no leitor. Minha ideia era colocar o leitor, nem que fosse por um instante, na condição de estrangeiro, que é aquela não só do protagonista da história, como da grande maioria dos personagens. Com exceção de um e outro, todos estão deslocados de seu lugar de origem; estão em trânsito. A estranheza, em Opisanie świata, provém muito deste deslocamento, desta condição de estrangeiro.

Serviço
"Opisanie świata", de Veronica Stigger
Cosac Naify, 160 páginas, R$ 25


Saiba mais
Narrativas - A autora já lançou outros quatro livros, todos compostos por histórias curtas: "O Trágico e Outras Comédias" (2004), "Gran cabaret demenzial" (2007), "Os anões" (2010) e "Delírio de damasco" (2012).

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Muito além da imaginação

Hugo Viana

A literatura fantástica representa o impossível, a imaginação desenfreada que através do inusitado, fatos estranhos ou ocorrências perturbadoras oferece alegorias sobre o mundo real. Os amigos escritores argentinos Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, numa noite de 1937, debateram suas ficções fantásticas favoritas; três anos depois, em 1940, foi lançada a "Antologia da literatura fantástica", que reúne contos, trechos de romances e peças de teatro de autores clássicos do gênero, escolhidos pelos colegas.

A obra compila textos de diferentes épocas, autores e nacionalidades, agrupando narrativas que ressaltam fases e possibilidades distintas do gênero fantástico. De escritores reconhecidos, como o irlandês James Joyce, o tcheco Franz Kafka e o argentino Julio Cortázar a pesquisadores, antropólogos e filósofos cujo trabalho parece arquivado pelo tempo, como o chinês Chuang Tzu, o escocês James Frazer, e o norte-americano Thomas Bailey Aldrich, Borges, Casares e Ocampo parecem destacar o alcance e a força do universo fantástico, as características que encantam leitores. 

"Não considero a literatura fantástica como um gênero, mas sim como um modo", opina a mestranda Iaranda Barbosa, que estuda a escritora Silvina Ocampo em sua dissertação. "Podemos dizer que há elementos que caracterizam algumas narrativas como sendo de corte fantástico. Em 'Introdução à Literatura Fantástica', Todorov nos deixou de herança elementos pertinentes como hesitação, questões metafísicas, mortos andando entre os vivos e metamorfoses", explica. 

"A modalidade literária fantástica tem surgimento num mundo pautado pela razão: dos romances góticos ao escritor alemão Hoffmann encontramos suas primeiras manifestações ambientadas em castelos temporalmente longínquos, associadas ao onírico, ao noturno, ao macabro", detalha José Ronaldo de Luna, que escreve mestrado sobre Bioy Casares. "A partir de Hoffman e dos contos de Edgar Allan Poe, temos um dispositivo de cotidianização das narrativas: o narrador nos apresenta um mundo cada vez mais familiar, precisamente para potencializar o efeito da intromissão de algum acontecimento inquietante", diz. 

As narrativas fantásticas que sobrevivem ao tempo, à passagem de gerações, parecem ser os textos que a partir de características que desafiam a lógica e o sistema racional apontam para a sociedade, para relações humanas; o fantasma como o apego ao passado, o vampiro representando o parasita afetivo, o avanço científico como uma espécie de busca existencial através da razão; o sobrenatural como forma de chegar a questões históricas e universais. 

"Quando se fala em literatura fantástica, fatalmente teremos que pensar em situações cotidianas: o fantástico é a possibilidade de introdução de uma anomalia dentro da realidade", opina Ronaldo. "A relação da literatura fantástica com o real se dá pela naturalização dos fenômenos sobrenaturais", aponta Iaranda. "O caráter verossímil das obras tira o leitor do senso comum. A 'Antologia de Literatura Fantástica', que foi de encontro ao realismo vigente e renovou o cânone da época, é uma ferramenta imprescindível para compreender tanto o que se entende sobre essas obras, como o entendimento de tais escritores sobre esse tipo de literatura", ressalta a pesquisadora. 

Essa antologia é um projeto importante que, além da qualidade dos textos, revela nomes importantes da literatura internacional que permaneciam pouco debatidos no mercado atual, como Silvina Ocampo. "Poetisa, contista e novelista, Ocampo surge na cena latinoamericana como uma escritora cruel, criadora de contos sinistros e que subverte ainda mais a ordem da realidade. A relevância de Ocampo pode ser entendida pela utilização de uma linguagem própria e renovadora, que confere a seus contos um humor refinado, sem ser patético, e as sensações de empatia, desespero e angústia, sem cair no sentimental", destaca Iaranda. 

Serviço

"Antologia da literatura fantástica", organizado por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo
Cosac Naify, 448 páginas, R$ 69

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TRADUÇÃO - Esta publicação da Cosac Naify é uma tradução de Josely Vianna Baptista a partir das versões originais vertidas por Borges e Bioy Casares. Em 1982, quando foi lançada a versão italiana da Antologia, com traduções a partir dos textos originais, Borges criticou, avisando que os leitores saíram prejudicados. 

Textos

"Sozinha com sua alma", de Thomas Bailey Aldrich 
Uma mulher está sentada sozinha em sua casa. Sabe que não há mais ninguém no mundo: todos os outros seres estão mortos. Batem à porta.

"Definição de fantasma", de James Joyce 
O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de hábitos.

"O sonho da borboleta", de Chuang Tzu
Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar não sabia se era Tzu que havia sonhado ser uma borboleta ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu. 

"O lenço que se tece sozinho", de W.W. Skeat
A mitologia malaia fala de um lenço, sansistah kalah, que se tece sozinho e a cada ano ganha uma fileira de pérolas finas; e, quando esse lenço estiver terminado, será o fim do mundo. 

"Viver para sempre", de James Frazer 
Outro relato, compilado perto de Oldenburg, no Ducado de Holstein, trata de uma dama que comia e bebia alegremente e tinha tudo o que um coração pode almejar, e que desejou viver para sempre. Nos primeiros cem anos tudo correu bem, mas depois ela começou a encolher e a ficar enrugada, até que não conseguiu mais andar, nem ficar de pé, nem comer, nem beber. Mas também não conseguia morrer. No começo a alimentavam como se fosse uma menininha, mas acabou ficando tão diminuta que a puseram numa garrafa de vidro e a penduraram numa igreja. Ainda está lá, na igreja de St. Marien, em Lübeck. É do tamanho de uma ratazana, e uma vez por ano se move. 

Depoimento

"Creio que o tema fantástico, longe de ser um assunto alheio ao cotidiano, é o que mais revela sobre nós. Por exemplo: ninguém viajou no tempo, mas não há quem não tenha sonhado com a ideia. Ou escapar da morte. Não conheço nenhum bebedor de sangue, mas existem pessoas capazes de se alimentar das energias dos outros. Cada tema do fantástico corresponde a fantasias coletivas que atravessam anos; por isso eu creio que a literatura fantástica é muito mais realista que a literatura "realista", justamente por sua universalidade." 

Pablo de Santis, escritor argentino


domingo, 3 de novembro de 2013

Como ler um escritor?

Hugo Viana


Enquanto a literatura nacional está aquecida, com o número elevado de lançamentos por ano e a quantidade crescente de obras que entram no mercado estrangeiro, parece importante retomar questões basais sobre leitura e escrita, refletir sobre etapas do processo literário contemporâneo. São alguns dos desafios do escritor e crítico literário norte-americano John Freeman, ex-editor da Granta - publicação que reúne "os melhores jovens escritores" -, no livro "Como ler um escritor". Freeman entrevista 55 autores, como Ian McEwan, David Foster Wallace e Norman Mailer, observando a maneira como esses escritores trabalham e o que move suas produções.

Você foi o editor da Granta por quase cinco anos. Depois de ler e julgar muitos jovens escritores, quais as características de um bom autor?
As características são mais ou menos as qualidades que fazem as pessoas amarem alguém. Você talvez pense que goste de um certo tipo de pessoa, e então conhece alguém que é o completo oposto. E então você não consegue parar de pensar nessa pessoa. Um bom escritor é assim. Eles impressionam de uma maneira difícil de ignorar. Mostram coisas sobre o mundo que você não sabia que queria conhecer. Eles tornam a vida mais misteriosa e reconhecível ao mesmo tempo. E escrevem frases que apenas eles poderiam escrever. Há muita proficiência mascarada de profundidade por aí. Os verdadeiros grandes escritores têm algo importante a dizer, e o fazem em histórias impossíveis de esquecer.

Agora parece um bom momento para a literatura brasileira: o número crescente de autores com estilo pessoal e o aumento de autores traduzidos para o mercado estrangeiro. Qual o impacto da Granta para o mercado editorial? O que mais acha que influencia esse movimento atual da literária brasileira em outros países?
Acho que o perfil emergente do Brasil no mundo, como uma força econômica e cultural, ainda possuía uma lacuna - a literatura não era empurrada para o mundo da mesma maneira. Antes da Granta, existiam grandes romancistas brasileiros - como Machado de Assis, Jorge Amado e Clarice Lispector, modernistas como Oswald de Andrade e Mário de Andrade -, mas poucos, além deles, eram traduzidos. Havia uma geração faltando, e com romances é preciso escutar a voz de jovens escritores, pois eles percebem a atualidade de uma maneira diferente. Desde a Granta em português, muitos escritores da lista negociaram traduções - e alguns foram comprados por editoras de língua inglesa. Espero que isso continue a acontecer. O que é ainda mais interessante, para mim, é que a edição da Granta com autores brasileiros saiu em edições em sueco, chinês, espanhol. Acho que o governo brasileiro merece crédito, por estarem empurrando as artes - e ajudando a bancar traduções e viagens de escritores de uma maneira que coloca outros países em vergonha.

Você entrevistou grandes escritores contemporâneos. O que compartilha sobre essa experiência?
Acho que o que mais me atingiu falando com escritores como Haruki Murakami e Philip Roth foi um sentido de implacabilidade no processo de escrita. O romance não é uma corrida de velocidade, é uma maratona, e todos os melhores escritores pareciam quase destruídos fisicamente. E, ainda assim, não conseguiam imaginar fazer outra coisa. Isso significa jogar fora o que não é bom o suficiente, começar de novo, escrever múltiplos rascunhos, revisar com editores, talvez até apagar o texto, e escutar aquela voz interior; uma busca incansável pela linguagem de um personagem, o som de sua voz. É uma tarefa estranha, se sentar sozinho, escutando vozes, mas os melhores escritores pareciam ser capazes de fazer esse salto entre o que saiu de suas cabeças e o que filtram a partir de suas culturas.

Como crítico literário, quais aspectos você presta atenção durante a leitura?
Primeiro eu quero me sentir bem. Acho que é fácil para críticos, por lermos tantos livros, nos tornarmos uma espécie de assassino. Procurar, nos livros, momentos frágeis e atacar. Mas quem lê desse jeito? Quem vai à livraria e diz: quero encontrar um livro que eu realmente odeie! Seria um leitor estranho. Então procuro uma história que me incentive a continuar a leitura, uma voz que agarre minha orelha. Quero encontrar frases que nunca li antes - e o menor número possível ou nenhuma das que já tenha lido, os clichês. Finalmente, quero que o livro mexa comigo. Eu não digo isso de maneira vaga. Acho que estilistas podem ser tocantes, como Nabakov, por exemplo, porque ele tem um jeito de usar a linguagem que é muito bonito. Quero, enquanto crítico, encontrar um escritor que me faça esquecer que estou lendo, me puxando para mim mesmo e para o mundo ao mesmo tempo.

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TRAJETÓRIA - Freeman já escreveu para publicações como The New York Times Book Review, Los Angeles Times, The Guardian, e The Wall Street Journal. Foi presidente da instituição norte-americana National Book Critics Circle, que reúne editores e críticos.

Como ler um romance?
Incentivados pelo livro de Freeman, levamos uma questão basal sobre literatura a professores, escritores e críticos literários.

Anco Márcio Tenório Vieira, professor

Deve se ler um romance, assim como qualquer obra literária, com a mesma disposição que se vai para a cama para dormir: sem medo do que se vai sonhar, do que o nosso subconsciente nos reserva. 1. Assim como os sonhos, a literatura duplica os homens e a vida, criando outras realidades, outras respostas para a nossa realidade empírica; 2. Assim como os sonhos, a literatura pode nos dar prazer, medo ou nos ser indiferente. A literatura nos permite sonhar acordado. A literatura é o brinquedo lúdico do adulto. Devemos ler um romance como quem vai sonhar, como quem vai descobrir todas as possibilidades lúdicas de um novo brinquedo.

Sidney Rocha, escritor

Ninguém assiste a um Grande Prêmio de F1 porque os carros são como foguetes luminosos. Mas sim porque esperamos que numa daquelas curvas a vida atue pra valer. Ninguém assiste às lutas de boxe somente pela técnica dos jabs, mas para que a técnica resulte em um dano real qualquer à ordem das coisas. Assim se deve ler um romance: é como pedir um sonho emprestado, na esperança de que, ao devolvê-lo, a realidade tenha se alterado para os inquilinos daquele sonho, para nós que o roubamos e, de alguma forma, para nocautear quem sonhou aquele delírio pela primeira vez.

Eduardo Cesar Maia, crítico literário

Não acredito que haja uma fórmula ou regra para se ler um romance. Entendo o romance como um espaço narrativo aberto a uma pluralidade, à polifonia, à incerteza. Por isso a dificuldade que os teóricos - esses obsessivos - sentem em estabelecer definições sobre um gênero caracterizado pela fluidez. Prefiro um leitor "sem método", porém atento e receptivo, do que um crítico que está limitado por uma metodologia inflexível: os métodos são modificados, reformulados e, muitas vezes, abandonados com o passar do tempo, mas a experiência individual de leitura autônoma e "impressionista" é insubstituível.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A permanência de Gilberto Freyre

Hugo Viana



As propostas de Gilberto Freyre (1900-1987), especialmente as ideias apresentadas no livro Casa-Grande & Senzala - publicação que, em 2013, completa 80 anos de lançamento - permanecem sendo ferramentas relevantes para discussões. O intelectual pernambucano será debatido em duas mesas na programação de hoje da Expoidea: "Relendo Casa-Grande & Senzala: Gilberto Freyre, Roges Bastides e o conceito de democracia racial", com Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de pós-graduação em Letras da UFPE, às 16h; e "O Recife de Gilberto Freyre", com Maria Lúcia Pallares-Burke, autora do ensaio biográfico "Gilberto Freyre: Um vitoriano nos trópicos", às 18h. Os eventos, gratuitos, acontecem no Centro Cultural Correios.

"Minha mesa vai mostrar que não foi Freyre que criou o termo 'Democracia Racial' (esta palavra não se encontra em nenhuma das suas obras dos Anos 1930, 40 e 50), mas Roger Bastide, que escreveu, na década de 1950, um estudo sobre a condição do negro em São Paulo", adianta Anco. "Quando perguntado se o Brasil era uma 'Democracia Racial', Freyre negava. O que ele mostrava é que nosso preconceito racial era menor do que os registrados nos Estados Unidos e África do Sul, e que as bases da nossa formação racial (a miscigenação) habilitava o Brasil - mais do que outros países que tiveram formação semelhante -, a ser, no futuro, a primeira democracia racial. É um sonho generoso? Sim. E é um sonho que todos nós deveríamos lutar para que venha a ocorrer", ressalta o professor.

A atualidade de Freyre pode ser percebida na maneira como suas ideias continuam relevantes, na forma como oferecem, ainda hoje, contribuições valiosas. Temas atuais, como representação, identidade e sustentabilidade, foram abordados por Freyre em estudos que observam temas complexos de maneira profunda. "Sua insistência para que os brasileiros se aceitem como uma mistura de grupos étnicos e de culturas, ao invés de se fragmentarem entre ítalo-brasileiros, afro-brasileiros, ainda é uma questão atual. Seu precoce interesse pelo meio ambiente, sua preocupação com a perda de árvores, com os efeitos maléficos das monoculturas, inclusive a poluição do Capibaribe estão no livro 'Nordeste', de 1935", aponta Maria Lúcia.

A mistura social e cultural - e as maneiras como diferentes religiões, crenças e orientações habitam o cotidiano brasileiro - também foram discutidas por Freyre. "Se a miscigenação de raças e de culturas é talvez o nosso maior capital social, como usar essa miscigenação como base para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna? Como usar esse diálogo de culturas e ideias que nos formou e continua presente como antídoto contra políticos messiânicos e ideias reacionárias que tentam impor ao Brasil um modo único de comportamento (seja religioso e ideológico-político, seja no campo da orientação sexual)? Nestes dois pontos, a obra de Freyre tem muito a nos dizer e muito a nos ajudar a pensar a nossa contemporaneidade", atesta Anco.

"Quisemos ressaltar a 
originalidade de Freyre, mas
também apontar fraquezas"
Maria Lúcia Pallares-Burke

Os 80 anos de Casa-Grande & Senzala sugerem refletir sobre o pensamento de Gilberto Freyre. Qual a importância das ideias apresentadas na obra?
Uma das características mais importantes do pensamento de Freyre, e que o torna extremamente atual, é sua preocupação em minar as oposições binárias que ele originalmente estabelece entre casa-grande e senzala, sobrados e mocambos, ordem e progresso, senhores e escravos. O que ele faz com maestria é chamar atenção para o que existe entre essas oposições e o que as une. Daí sua busca de mediações entre opostos, que se revela no rico vocabulário que usa para descrever essas mediações, como acomodação, adaptação, conciliação, mistura, hibridismo. Essa é uma abordagem valiosa que pode ser utilizada para quaisquer outras oposições binárias, e que é facilmente exportável para problemas contemporâneos. Pensando na oposição herói e vilão, por exemplo, o que Freyre faz é apontar para o que não é tão heroico no herói e o que não é tão vil no vilão. O que é extremamente valioso no pensamento de Freyre é sua ênfase em não se ver o mundo em preto e branco, mas buscando nuances nas idéias, pessoas, instituições.

Como foi o processo de pesquisa para "Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos" e "Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre"? Que tipo de imagem é de Gilberto Freyre é possível notar nos livros?
Nossa pesquisa se baseou numa variedade de material: cartas, recortes de jornal e anotações feitas por Freyre em seu livros. Especialmente curiosos foram os quatro volumes organizados por Magdalena contendo artigos hostis a ele. Para mostrar seu desagrado com as críticas ao marido, Magdalena deu aos volumes o título de WC. Para o meu "Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos", fiz uma pesquisa detetivesca na Inglaterra para identificar o jovem com quem Freyre teve, como descreveu, uma "breve aventura de amor homossexual, no melhor sentido da expressão sem canalhice alguma". Descobrir Linwood Sleigh, suas origens e interesses estéticos ampliou minha compreensão da personalidade do jovem Freyre, seu empenho por legitimar e enobrecer o episódio de sua juventude, rejeitando qualquer insinuação de vulgaridade. Nesses livros, quisemos construir a imagem de um Freyre complexo, diferente de um modelo de perfeição, que mais parece uma estátua de mármore do que um homem - tal como Freyre criticava as "biografias triunfais" que "deixam os grandes homens descansar na sua glória de estátuas", por quererem vê-los "sempre olímpicos e cor de rosa". 




segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Memória da literatura pernambucana

Hugo Viana


Tarcisio Pereira tem uma relação profunda com a literatura pernambucana: fundou, em 1970, a Livro 7, livraria que, até 1998, ofereceu publicações raras, e abriu espaço para lançamentos de escritores do Estado. Tarcisio é um dos homenageados da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que termina hoje. "É muito gratificante ver o trabalho reconhecido", diz livreiro. "Em janeiro, completo 50 anos de trabalho com literatura. Então é muito bom ser lembrado numa Bienal como a nossa, a terceira maior do Brasil", ressalta. 

Durante a Bienal, Tarcisio divulga um projeto que destaca a relevância da história literária de Pernambuco e a importância da memória cultural: a coleção Geração 65, composta por escritores que frequentavam a Livro 7. "Nossa proposta é chegar a 15 volumes", avisa Pereira, que lançou as duas primeiras edições na quinta-feira - obras de Ângelo Monteiro e José Mário Rodrigues - e apresenta três obras hoje: "Haikais", de Joca de Oliveira, "Frutas de arribação", de Wilson Vieira, e "O corpo em composição", de J.C. Marinho, às 16h. 

"Quero fazer uma antologia de cada membro da Geração 65, que foi importantíssima na poesia", diz Tarcisio. "Vejo isso como uma obrigação minha. Essa é a minha geração, esses poetas viviam dentro da Livro 7, então sei naturalmente o conteúdo da poesia de cada um. Sei que são poetas que em qualquer circunstância representarão bem a poesia pernambucana. Até dezembro, pretendo lançar obras de Almir Castro Barros, Gladstone Vieira Belo, Marcus Accioly, Jaci Bezerra, Alberto da Cunha Melo, Severino Silveira, entre outros", adianta Tarcisio. 

A história da Livro 7 está intrinsecamente conectada com a produção e fruição literária em Pernambuco - tanto na maneira como apresentou obras importantes sobre filosofia e política durante a Ditadura, período em que debater esses temas era um risco, quanto na forma como apresentou escritores pernambucanos. "Fui aluno de Jacob Berenstein, fundador da Livraria Imperatriz. Ele era um dos melhores livreiros do Brasil. Depois de trabalhar sete anos com ele, abri minha livraria, em 1970, vendendo livros de arte, literatura e ciências humanas", lembra Tarcisio. 

"Naquela época havia muita repressão. Os livreiros tinham receio em trazer obras de filosofia, política. Mas eu sabia da necessidade do mercado, da procura dos leitores. No Brasil não se publicava quase nada de política. Comecei a importar de Portugal, França, Espanha, Argentina. Obras de interesse para estudiosos, políticos, leitores. Com o crescimento, em 1972 duplicamos o tamanho, para 50m². Em 74, nos alojamos em um casarão no Centro. Nesse espaço, além de livraria, tínhamos loja de discos, artesanato, galeria de arte, um pequeno teatro e uma cervejaria", detalha. 

A Livro 7 encerrou as atividades em 1998, resultado de uma mistura de razões. "O fim foi muito difícil. Tinha me espalhado pelo Nordeste, abrindo lojas em Fortaleza, Campina Grande, João Pessoa e Maceió. Além da matriz tinha filiais em Boa Viagem e Cidade Universitária. Não existe um fato que possa dizer que definiu o fim, não tem um motivo. Mas uma das coisas que mais afetaram foi que, naquela época, aconteceu um achatamento muito grande do salário dos professores, e a Livro 7 vivia, em geral, da vida acadêmica", explica.

Atualmente Tarcisio trabalha com livros, mas numa posição diferente: como editor, tentando lançar novos nomes e escritores consagrados no mercado. "Sempre dei muito valor à cultura local. Sempre procurei estimular e descobrir novos autores. O ápice da minha luta em divulgar a cultura nordestina foi a participação, em 1991, da Feira de Frankfurt. A comissão organizadora queria levar autores do Sul e Sudeste, então fiz uma proposta para levar também autores do Nordeste. Mandei um projeto, eles apoiaram, o governo alemão bancou a passagem e a hospedagem. Levei 150 livros, vendi o copyrights de alguns, deixei nas universidades, no Centro de Literatura Luso Brasileira. Plantei sementes da nossa literatura na Alemanha", destaca o livreiro. 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Gilvan, o mestre da imaginação

Hugo Viana


Gilvan Lemos nunca visitou Olinda. Aos 85 anos, o escritor pernambucano, que nasceu em São Bento do Una, vai à cidade pela primeira vez para receber homenagem da 9ª edição da Bienal, que começou na última sexta-feira e segue até o próximo domingo. "Achei que ninguém sabia que eu existia. Fiquei famoso", brinca o autor, que além da distinção terá dois livros relançados, pela editora Cepe, na Bienal: "O anjo do quarto dia" e "Emissários do Diabo" (na próxima sexta-feira (11), com presença do autor). 

A trajetória de Gilvan apresenta indícios de paixão e força de vontade - o interesse por narrar histórias e a necessidade de vencer obstáculos. "Me tornei escritor de teimoso", diz Gilvan. "Em São Bento não tinha nada, colégio, livraria, biblioteca. Não tinha ninguém para ensinar. Estudei até onde pude sem sair de lá. Meus pais não tinham dinheiro para me mandar estudar fora. Então fiquei em casa sem fazer nada. Até que comecei a ler gibi. E depois comecei eu mesmo a fazer histórias", explica o autor. 

Nesse ambiente em que a produção cultural e o pensamento libertador pareciam recursos dos obstinados, a resistência essencial dos insistentes, Gilvan encontrou amparo na família. "Minha irmã me ajudava nos quadrinhos. Quando eu desenhava lá em casa ficava assim de menino pra ver. Ainda guardo esses gibis. Minha mãe era semi-analfabeta. Se você pegasse uma carta que ela tinha escrito encontraria muitos erros. Mas ela lia Machado de Assis, Dostoievski, adorava Érico Veríssimo", detalha. 

Dessa juventude em que os interesses permaneciam além do horizonte, a vontade de criar era o único avanço possível - a agitação crescente de uma mente imaginativa. "Quando eu tinha 15 anos li 'Conde de Monte Cristo'. Era um livro muito grosso e de letra miúda. Eu adorei. Depois pensei que eu mesmo poderia escrever. Publiquei meu primeiro conto na Revista Alterosa [em março de 1948]. Fiquei conhecido como gênio em São Bento", lembra o escritor. 

O primeiro romance de Gilvan a conquistar espaço no mercado editorial foi "Emissários do Diabo". "A primeira edição foi publicada por empréstimo", diz. "Naquela época, no Recife, existiam três suplementos literários. Mandei para todos, mas não teve nenhuma repercussão. Eu sendo um matutão do Interior ninguém deu bola. Um dos jornalistas me disse depois: 'Livro daqui eu nem abro'. Osman Lins, meu amigo, comentou: 'Não perca tempo, Recife é um cemitério'. Mandei o livro para a Editora Civilização e foi publicado no mesmo mês. Só comecei a ser notado aqui quando fui publicado no Rio de Janeiro", destaca. 

Depois da publicação de "Emissários do Diabo", Gilvan passou a ser reconhecido como autor relevante, um escritor que a partir da realidade, dados do cotidiano, criou histórias que se destacam pela capacidade de revelar aspectos da sociedade, a política psicológica de personagens em crise. Temas presentes também em "O anjo do quarto dia", narrativa que questiona heranças sociais do Interior, o poder de famílias ricas e a sujeira política de corruptos. "Escrevi o livro muito ligeiro. Ouvi uma história de família e achei extraordinária. As pessoas liam e pensavam: 'Esse Gilvan é um mentiroso arretado'", comenta. 

Ao longo de sua trajetória, Gilvan conquistou reconhecimento ao ser publicado por editoras e vencer disputas literárias - negociou contrato com a editora Civilização e ganhou prêmios. "Meu editor na Civilização nunca recusou um livro meu. Até ele morrer e eu ficar na mão", recorda o autor. "O primeiro prêmio literário que ganhei foi 30 mil cruzeiros. Na época papai falou: 'Nunca ganhei tanto dinheiro na minha vida'", diz. 

Atualmente Gilvan ressalta que lê apenas jornal - escrever parece fora de cogitação. "Hoje pego um romance e não lembro se li. Vejo um livro meu e penso, 'Meu Deus, eu escrevi isso'. Não escrevo mais nada. Quando tentava, ficava procurando a palavra que queria usar e não lembrava. O pior castigo de Deus para o homem é a velhice."

Livros

"Emissários do Diabo"

O centro da história é sobre conflitos pela posse de terras. Camilo cultiva pequena propriedade perto da fazendo do tio, o major Germano, que tenta roubar a terra do sobrinho. A partir de um drama social com base realista, motivado por ambição e justiça, Gilvan desenvolve o drama interior de homens duros. 

"O anjo do quarto dia"

Concebido a partir de uma história que o autor ouviu, o livro narra a história de habitantes de uma cidade chamada Logrador, onde vivem à mercê de uma família, os Rezendes. A obra traça paralelos entre personagens e figuras bíblicas, analisando criticamente a religião, a hipocrisia social e a política.