sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Todos os dias de uma tragédia romântica

Hugo Viana



Um aspecto muitas vezes decisivo para o sucesso de comédia ou drama romântico é o par central, a interpretação do casal protagonista, os personagens cujo envolvimento emocional iremos acompanhar durante a sessão, e não parece ser exagero notar que se esses atores não alcançarem êxito máximo tudo em volta está em estado de alerta com risco de não dar certo.

"Um Dia" (EUA, 2011), dirigido pela dinamarquesa Lone Scherfig, baseado no best seller escrito por David Nicholls, um desses livros que apostam numa atmosfera popular de amor doce amargo, tem como protagonistas Anne Hathaway e Jim Sturgess, dois jovens atores que já desempenharam esse mesmo tipo de papel, mas neste filme parecem um tanto esmaecidos, sem o apelo decisivo que estrelas devem naturalmente possuir.

O filme narra 20 anos na vida de Emma (Hathaway) e Dexter (Sturgess), de 1988 até 2008, sempre no mesmo dia, 15 de julho. Eles começam a conversar na noite de formatura do colégio, e numa aventura fria, sem muita desenvoltura ou triunfo, eles tentam dormir juntos. Enquanto Emma está nervosamente decidida a despertar um inédito ímpeto sexual, tendo secretamente sempre desejado Dexter, ele meio que quer ir embora, não inteiramente decidido a transar com ela, embora ficar com mulheres durante apenas uma única noite seja uma de suas especialidades como jovem rico e bonito.

Anne e Dexter seguem amigos e se lembram com carinho dessa noite não exatamente bem sucedida, mantendo o dia 15 de julho como um reduto exclusivo deles, conversando por telefone, carta, ao vivo ou apenas lembrando a existência mútua. Tudo segue uma rotina normal de comédia romântica até que numa noite, sozinhos numa piscina, preparação absoluta para uma grande declaração de amor, Dexter, num acesso inesperado de honestidade, revela sua paixão irrestrita por todas as mulheres do mundo ("Todo dia é como se eu tivesse saído da prisão"), e então o filme emenda uma longa jornada dramática, descrevendo o sofrimento dos dois por não ficarem juntos.

Essa história tem então alguns altos e muitos baixos, uma sequência eterna de erros emocionais, em geral da autoria de Dexter, que vai gradualmente se tornando um tipo escroque de vilão, escolhendo sempre as piores opções disponíveis, uma programada autodestruição destinada ao aprendizado. Algo que parece intensificado pela estrutura narrativa do filme, a ligação linear entre anos diferentes, as emoções fortes dos equívocos constantes, tudo rigidamente endereçado à lição final, talvez exemplo de roteiro preso ao livro original.

O final revela um interesse pesado de buscar emoção evidente, convencer que este é um melodrama de grandes proporções, levando os personagens ao inferno das lembranças, em especial através da sugestiva imagem de uma colina, com personagens deitados sobre a grama, enquanto imagens de amores desfeitos voltam para gerar lágrimas, escolhas nunca realmente satisfatórias.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A terrível semelhança entre ficção e realidade

Hugo Viana



O escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977) criou um desses personagens que parece uns tantos anos à frente da moral de seu tempo, superou qualquer expectativa cética e se tornou um verbete fixo no dicionário de palavras sensuais; "Lolita", a imagem de uma não tão doce inocência sexual, é o nome do livro mais conhecido de Nabokov, escrito em 1955 e adaptado para cinema de alto ou baixo nível figurativo, TV, literatura, teatro.

Antes desse livro, um documento sobre a obsessão de um homem adulto, um professor de literatura e seu desejo sexual por uma menina de 12 anos, Nabokov já tinha escrito alguns bons textos, obras sem o mesmo alcance definitivo de "Lolita", mas ainda assim, quando observadas hoje, com o devido distanciamento, parecem revelar um tipo discreto de grandeza, talvez sem a ambição de permanência na história, mas sem dúvida publicações que asseguram um lugar de importância para o autor.

Um bom exemplo é "O Olho" (112 páginas, R$ 24,90), escrito em 1930, lançado pela Alfaguara. O livro narra a história insólita de Smurov, um homem não versado nas artes masculinas, um tipo discreto de perdedor constante. Ele é seduzido por Matilda, mulher casada, e quando finalmente penetra em ambientes moralmente condenáveis, o marido dela, um homem educado, de bengala, que tinha como costume, antes de falar, limpar a garganta com um rápido pigarro, num acesso de raiva o humilha violentamente.

Incapaz tolerar a vergonha, Smurov decide, ainda no começo, tirar sua própria vida, atirar em si mesmo como forma de punição. A partir daí o livro muda de rumo, se transforma num interessante exercício narrativo, seguindo a suspeita instável da dúvida: estaria Smurov de fato morto, descrevendo fatos criados por sua mente numa pós-existência ironicamente parecida com a vida terrena, uma réplica de uma sociedade turbulenta, ou seria ele o protagonista de uma rede de espionagem secreta, um russo fugindo de sua nação em guerra?

O livro tem uma conexão com o momento em que foi escrito, o fim dos anos 1920, contexto no qual a Rússia passava por duras mudanças em seu projeto político, do czarismo a uma tentativa de ditadura do proletariado. A família de Nabokov fugiu para a Alemanha, em 1919, durante a Revolução Russa, algo que está de certa forma presente neste livro, a crise gerada pela ausência e o humor devastador da fuga.

Esse humor vem com mais astúcia na construção sólida de seus personagens, a capacidade de relatar cinicamente o cotidiano de pessoas a partir de pequenos detalhes. As pessoas que estão próximas ao protagonista são comicamente descritas com raiva insuspeita; Matilda é uma "dama roliça, desinibida, de olhos bovinos", Evgenia é uma "moça com um belo rosto quadrado que fazia pensar em um afável e bem-apessoado buldogue", Tio Pasha é um "alegre cadáver de terno azul, com caspa nos ombros, barba feita, sobrancelhas fartas e prodigiosos tufos de pelos nas narinas", humor que de alguma forma torna explícito uma amarga tensão social, um olhar frio para a burguesia.

Na primeira página o autor escreve algo que parece revelar bastante de seu estado durante a escrita, falando sobre Smurov, um imigrante russo em Berlim que trabalha como tutor para uma família russa "que ainda não tivera tempo de empobrecer e subsistia na fantasmagoria de seus antigos hábitos de São Petersburgo", exemplo de ironia confessional bem direcionada. Há um desgosto bem humorado no livro, várias passagens em que uma mão pesada claramente trata com humor negro personagens que evitam confrontar o fantasma da história, os medos gerados pela mudança.

sábado, 24 de dezembro de 2011

4. As companhias de Joca Terron

Hugo Viana



Alguns autores escrevem sobre a própria literatura, publicações que remetem à história das palavras e também, como consequência natural, em grande escala, à formação pessoal enquanto leitor. É o caso de Joca Reiners Terron em "Não Há Nada Lá" (Companhia das Letras, 160 páginas, R$ 24), livro lançado originalmente em 2000, mas publicado novamente neste ano pelo selo Má Companhia. Terron escreve uma espécie de quebra-cabeças literário, montando um panorama sem regras em que grandes artistas ou personalidades excêntricas como William Burroughs, Jimi Hendrix e Aleister Crowley habitam tempos diferentes. Essas referências sem ligação aparente são definidas pelo critério exclusivo de Terron, que parece escrever sobre heróis e vilões de sua formação, as vidas imaginárias de pessoas que influenciaram sua prosa. É um pequeno livro ambicioso que transgride sem qualquer exagero certas convenções da literatura, invertendo a ordem narrativa ou tornando as palavras turvas, impossíveis de ler, um tipo severo de intervenção no texto. Sobre o livro, o escritor Enrique Vila-Matas comentou: "Este livro pertence à mais exigente das minhas bibliotecas e é adequado para se viajar às províncias nas quais se admite o passaporte shandy. Nesses lugares, chegar com 'Não Há Nada Lá' só traz vantagens, permite bons alojamentos e as melhores companhias sempre que saibamos a contrassenha: 'O importante não é saber, e sim ter o telefone daquele que sabe'".

domingo, 18 de dezembro de 2011

O humor crítico de Thomas Bernhard

Hugo Viana



Algo mais ou menos recorrente, embora quase nunca inteiramente divulgado, é o ocasional desacordo, ou mesmo as brigas enfurecidas, que acontecem entre os agentes do meio literário, as pessoas que movimentam o mercado, escritores, editores, jornalistas, críticos.

São pessoas que nos bastidores entram em choque efetivo por formas diferentes de entender a literatura, uma divergência que mesmo sem rastro de manifestação pública interfere diretamente em aspectos políticos da cultura, como os autores eleitos em premiações e os livros que serão escolhidos para publicação.

Esse assunto é o tema de "Meus Prêmios" (Companhia das Letras, 104 páginas, R$ 33), de Thomas Bernhard (1931-1989). O livro, escrito no início dos anos 1980 e publicado apenas em 2009, é composto por nove textos, cada um descrevendo situações imprevisíveis que aconteceram na época em que Thomas foi premiado.

Há também a reprodução de três discursos de agradecimento dessas conquistas, as circunstâncias um tanto tensas em que foram escritos, as críticas ao governo em geral enfáticas que Bernhard ressaltava quando subia ao púlpito, e ainda um último ensaio detalhando o desligamento do escritor da Academia de Língua e Literatura.

Bernhard nasceu na Holanda, mas muito cedo se mudou para a Áustria, nação que de certa forma se tornou assunto opressor de seus textos, sendo um exemplo perfeito do artista amplamente criticado na região em que morou (em especial por nomear abertamente pessoas com poder não inteiramente honestas ou deficiências do país), mas bastante respeitado (e premiado) em outros lugares

Bernhard inicia cada comentário relatando aspectos de sua vida pessoal, pequenas tragédias pessoais ou satisfações de boas vitórias, um pouco como contos autobiográficos, e então encaminha comicamente o texto apontando incoerências da política cultural austríaca, absurdos analisados pelo autor com o distanciamento do humor.

Bernhard fala sobre premiações, indústria, jornalismo, política, a versão definitivamente irônica da história literária da Áustria, e então ele parece marcar sua posição de mercado como um tipo de escritor proscrito, alguém que critica abertamente e com severidade insuspeita de autor machucado as condições políticas pouco favoráveis de seu país.

Não há nada burocrático nos ensaios de Bernhard; cada texto possui 10 ou 15 páginas, comentários escritos no ritmo do texto de ficção, num único e enorme parágrafo, o que sugere uma certa urgência para finalmente falar sobre certos fantasmas do passado (a maioria dos textos descreve casos que ocorreram durante os anos 1960). Bernhard escreve em primeira pessoa, um "eu" que parece atestar uma grande proximidade não inteiramente livre dos assuntos descritos.

Visto como um conjunto único de relatos o livro parece destacar através do humor o que há de picareta não apenas no meio literário austríaco, mas também nos mecanismos da política cultural do país, redes de relações que possuem implicações não inteiramente compreendidas. O mérito de Bernhard parece ser justamente a capacidade de reforçar que há algo errado no setor em que trabalha usando como arma de ataque as palavras, pelas quais acabou premiado.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

3. Cinema adaptado para a literatura

Hugo Viana



Existe no Rio Grande do Sul, talvez com um pouco mais de presença editorial e força conjunta de mercado do que em outros estados, um grupo de jovens escritores que vem publicando livros com certa frequência - em geral, projetos autorais ou obras coletivas com temas criativos, fora da rota tradicional do meio literário. Um desses grupos se reúne na Não Editora, espaço dedicado a lançar obras alternativas desses "jovens escritores", etiqueta gerada pelo setor editorial que garante uma certa distinção ao autor e à obra. O lançamento mais recente deles é "24 Letras por Segundo" (192 páginas, R$ 32), organizado por Rodrigo Rosp. O livro tem o curioso interesse de levar às páginas 17 contos baseados no estilo de diretores de cinema contemporâneos que os fascinam. Temos releituras pessoais de escritores como Bernardo Moraes (que escreve baseado em Quentin Tarantino), Reinaldo Pujol Filho (irmãos Coen) e Antônio Xerxenesky (Hal Hartley), entre outros, e cada um defende, num parágrafo, o motivo de escolha de determinado diretor, uma pequena carta confissão de um fascínio cinéfilo. Como é comum numa coletânea tão diversa quanto esta, há ótimos contos e outros nem tanto. O que realmente vale parece ser uma experiência diferente de literatura, um exercício apaixonado que tenta unir as imagens do cinema ao texto escrito. Não apenas os contos, mas o próprio livro simula um VHS velho, apresentando informações como se a obra fosse um filme.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Crônica de um amor em fuga

Hugo Viana



A Companhia das Letras tem uma coleção chamada "Amores Expressos", em que a editora banca a viagem de um escritor para alguma cidade do mundo, e a experiência é depois publicada na forma de história de amor. O sexto livro lançado é "Nunca Vai Embora", de Chico Mattoso (R$ 34), autor enviado para Cuba. "Passei um mês em Havana, enchi um caderno de anotações, registros objetivos do que estava vivendo", diz Chico. O livro é um pouco como uma crônica de amor jovem, sobre a geração que está perto dos 30 e anda um tanto perdida. O protagonista é Renato, dentista que larga o pai dominador e as ambições frustradas em São Paulo para viajar com a namorada, Camila, para Cuba, onde ela pretende fazer um documentário sobre a impossibilidade de registrar a realidade, uma representação um tanto irônica sobre as obsessões do documentário contemporâneo. No meio do livro temos a sensação de que tudo é revirado pelo gênero policial, e a autoestima frágil do protagonista passa a vagar por ruas apertadas, bares vagabundos, quartos mofados e encontrar personagens ambíguos, obcecados por investigações. Nesta entrevista por e-mail, Chico fala sobre sua relação com a ficção, detetives e lembranças pessoais.

Você tinha ideia de como seria o livro antes da viagem? A experiência em Cuba modificou seus conceitos iniciais?
Eu tinha uma ideia básica antes de sair do Brasil, mas sabia que pouca coisa se manteria. A experiência de estar imerso naquele ambiente, de vivê-lo com algum grau de proximidade, transforma sua noção sobre as coisas. Não mudam necessariamente as ideias, mas mudam as impressões.

O livro é narrado em primeira pessoa, e certas passagens parecem talvez autobiográficas, ou ao menos levemente inspiradas em lembranças pessoais. É possível medir isso durante o processo de escrita ou é algo que vem naturalmente?
É difícil fazer essa separação. Objetivamente o livro não tem quase nada de autobiográfico. O narrador é muito diferente de mim, e as coisas que ele vive não se parecem em nada com o que eu já vivi. Mas é claro que isso vem sempre vazado de dados, objetivos ou não, da experiência do autor. Toda ficção se alimenta de uma mistura gosmenta de memória, invenção e intuição.

O narrador é um tanto careta, observa a "classe artística" com alto grau de cinismo. Tive a impressão que ele poderia ser o namorado de Vicky, no filme de Woody Allen, "Vicky Cristina Barcelona". Quando fala com Camila e os amigos dela, parece que ele conversa com uma fauna curiosa de pessoas, que se comunicam através de frases de efeito. Como foi construir essa relação?
É interessante essa comparação. O narrador, de fato, observa Camila e seus colegas à distância, num tom generalizante e cínico. Conheço muita gente do meio cinematográfico, e a maioria não se parece com os personagens do livro - nem minha visão sobre eles. Mas há aqueles mais deslumbrados, que elaboram para si uma espécie de máscara arrogante e superficial. Todas as áreas artísticas têm esse tipo de figura, e sempre tive a sensação de que essas pessoas poderiam render bons personagens. Gosto da mistura de ingenuidade, prepotência e paixão que eles têm, acho que tem algo de muito humano nisso.

O livro parece ter duas narrativas bem divididas. Na primeira é como se estivéssemos numa viagem sem rumo pela autoestima frágil do protagonista, e você estabelece isso através do pai dominador, das ambições frustradas, da relação ambígua com Camila, de fascínio e raiva. Depois entra um tom de gênero, de narrativa policial, de busca, pistas e investigação. Queria saber como você pensou essa divisão.
O livro tem esses momentos bem marcados, é verdade. A divisão nasceu naturalmente, me pareceu a coisa certa a fazer enquanto escrevia. Quando Camila desaparece, Renato é largado no mundo, tem que lidar diretamente com as próprias obsessões. Mas ele não sabe se relacionar com isso sozinho. Precisa de alguém que o guie. A narrativa que se segue tem uma aparência detetivesca, mas só na superfície, já que não é a busca que está em jogo, e sim os motivos que levam o protagonista a embarcar nela.

Ultimamente venho pensando que a estrutura do "detetive" pode ser muito útil como metáfora para obsessão, para traumas não resolvidos. Você usou códigos do gênero para levar adiante a subjetividade do personagem, estabelecida na primeira parte?
Não tinha pensado nisso, mas faz sentido. A parte "de gênero" do livro é detetivesca só na aparência. No desenvolvimento da história vai ficando claro que o tal do 'whodunnit' ["quem é o culpado"] é secundário, que toda aquela busca funciona para desmascarar os processos mentais do protagonista. Sei que corri um risco, que alguns podem achar a mudança um pouco brusca ou gratuita, mas tive segurança de que era o caminho certo.

Por ser ambientado em Cuba, você sentiu necessidade de falar sobre questões políticas? Penso que a trama de detetive seja talvez produto de um interesse seu em comentar, um pouco que fosse, política.
Eu sabia desde o princípio que o livro não trataria diretamente de política, mas ao longo do processo fui percebendo que esse tema fazia parte da história. As obsessões política e amorosa têm muitos pontos de contato. Ambas nascem da frustração, de sujeitos cansados de lutar contra uma realidade que não oferece as respostas que desejam. É comum que, como resultado, inventem uma realidade paralela para si.

Seu livro me pareceu uma crônica de amor jovem, sobre pessoas que não sabem bem como se comunicar (a primeira parte quase não tem diálogos, são apenas pensamentos de Renato). Queria saber se você acha que seu estilo de fato se conecta com essa ideia de relato sobre uma geração. Ou se não, que estilo seria?
Em nenhum momento pensei nisso. A história foi pensada em termos muito individuais. Seria mortal para o livro escrevê-lo pensando em fazer um retrato tão abrangente. Teria dificuldade em fazer uma análise do meu estilo, não tenho distância para isso. Apenas tento ser honesto comigo mesmo, com o jeito que eu vejo as coisas, com o tipo de literatura que me atrai e desafia, sem falsear minha voz ou mascará-la com truques.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

2. Saramago reavaliado



Hugo Viana

Depois de tantos livros e histórias interessantes sobre sua carreira, muitas delas narradas em biografias e documentários, o escritor português José Saramago (1922-2010) tem mais uma obra publicada no Brasil: "Claraboia" (Companhia das Letras, 384 páginas, R$ 46). O livro foi escrito originalmente no início dos anos 1950, mas na época não foi publicado por nenhuma editora, o que gerou uma mágoa no autor, que neste período já tinha escrito "Terra do pecado" (1947) - Saramago chegou a comentar certa vez que não desejaria ver este segundo livro editado em vida. Não é incomum encontrar trabalhos publicados pela primeira vez após a morte do autor (muitas vezes no formato de romance incompleto), mas esta parece uma situação talvez ainda mais sensível: um livro que foi terminado em vida, mas, na época, foi avaliado inadequadamente, ou talvez sem a devida importância, e então o fator tempo e a própria trajetória do escritor acabaram fornecendo novas ferramentas para compreensão. No caso deste novo título, é uma interessante oportunidade de reconhecer a personalidade de Saramago num livro escrito nos primeiros anos de sua carreira, a arqueologia de um estilo ainda não inteiramente definido. A história fala sobre um prédio de seis apartamentos, numa rua modesta de Lisboa, local onde ocorrem histórias simultâneas: os dramas cotidianos dos moradores - donas de casa, funcionários remediados, trabalhadores manuais.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

1. Diário de um escritor bêbado



Hugo Viana

Hunter S. Thompson (1937-2005) é responsável por um tipo escrachado de jornalismo, trabalhando bastante longe dos limites tradicionais da notícia. Lembrado como criador do gênero "jornalismo gonzo", em que o jornalista deve necessariamente abandonar qualquer medida de objetividade e se misturar inteiramente ao assunto abordado, Thompson escreveu, ainda no começo da carreira, nos anos 1960, a ficção "Rum: Diário de um Jornalista Bêbado" (relançado agora em versão pocket, pela L&PM, 256 páginas, R$ 19). O livro foi publicado apenas em 1998, quando Thompson já era um profissional estabelecido. No enredo, um jovem repórter troca a agitada redação de um jornal em Nova Iorque para trabalhar no Daily News, em Porto Rico (o autor de fato morou em San Juan, aos 22 anos). Lá, ele passa as noites em bares, as manhãs de ressaca, e o resto do tempo divido entre brigar com estranhos e procurar mulheres bonitas. É possível perceber a sensação de rum nas palavras de Thompson, um tipo inebriado de legado raivoso para um jornalismo estilizado. No final de outubro estreou nos Estados Unidos um filme baseado no livro de Thompson, dirigido por Bruce Robinson e protagonizado por Johnny Depp. Ainda não há previsão de lançamento do filme no Brasil.

sábado, 26 de novembro de 2011

Revisão amarga dos EUA nos anos 1950

Hugo Viana



Depois de mais de 30 livros, Philip Roth está cada vez mais confortável em adaptar tensões pessoais em textos de ficção. Em suas obras mais recentes, Roth, 78 anos, parece morbidamente dedicado a problemas do corpo, expondo fragilidades físicas e emocionais através de histórias intensamente melancólicas sobre velhos e jovens. Seu livro mais recente é "Nêmesis" (Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 36), e mais uma vez se passa em Newark, nos Estados Unidos (onde o autor nasceu), num bairro judeu, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944.

A história é contada a partir de um narrador que não é claramente identificado, e embora a revelação de seu nome e ocupação não seja exatamente um choque, fica claro um engenhoso sistema de narração desenvolvido por Roth neste livro.

O narrador descreve a história do personagem principal, Bucky, 23 anos, homem que mede pouco menos de um metro e sessenta e cinco, e embora tivesse grande habilidade física e força muscular era muito míope, usava óculos de lentes grossas, o que o impediu de ir à guerra. Bucky viu seus dois melhores amigos embarcarem para o conflito, corações ardendo por um sentimento indefinido de defesa pela pátria, e a impossibilidade de praticar esse mesmo tipo de respeito foi uma derrota sentimental nunca inteiramente superada.

Era motivo de vergonha para Bucky andar pela cidade vestindo roupas civis, constrangimento improvável para homens que se acreditam capazes de enfrentar qualquer coisa. Ele então permaneceu no verão de 35ºC na sombra de Newark, ocupando o cargo de administrador de um pátio de recreações, encontrando gratificação ao ensinar a jovens algum tipo de esporte. Bucky é o all american boy, homem bom e simples, de cabelo curto e camisa ensacada, adequadamente comportado em qualquer situação social, com planos para se casar com a primeira namorada virgem e cuidar da avó fisicamente debilitada.

Mas para Roth a vida parece ter um jeito cruel de mudar planos, e então durante o verão de 1944 começa a surgir uma epidemia de poliomielite em Newark. Boa parte das crianças que frequentavam o pátio precisam agora enfrentar um futuro terrível: perder o movimento dos membros ou, em situações mais dolorosas, a morte. Não há sensação de conforto nesse acontecimento impiedoso, mas tudo parece ampliado na percepção de Bucky, derrotado mesmo numa tarefa caseira menor e longe da guerra (cuidar de crianças). Nesse momento o livro se aproxima do gênero epidemia que deflagra tumulto e medo geral.

Há um epílogo devastador que encaminha Bucky como um homem honestamente sobrecarregado por uma bondade severa, portador involuntário de um elevado senso de responsabilidade. Ele enfrenta uma crise religiosa e uma culpa que possivelmente não lhe cabe, arrasado pela dúvida se ele seria o disseminador do estado de crise entre aqueles que ele não apenas ama, mas jurou defender. Um pesar silencioso que ao longo de décadas evolui para sofrimento do homem comum que menos merecia ser vítima de qualquer mal. "A vida é assim mesmo", diz um dos personagens, numa conversa aparentemente banal, "tem sempre alguma coisa esquisita acontecendo".

Roth parece então remeter à imagem desfeita do sonho americano. A perturbadora sensação de que a suposta felicidade construída depois da guerra, com o estabelecimento social da união familiar em torno de um ideal de vida pacífico, não é uma verdade compartilhada - uma revisão definitivamente amarga da mitologia norte-americana dos anos 1950.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A biografia de um enigma

Hugo Viana



Glauber Rocha permanece como um dos enigmas da história do cinema nacional, bastante celebrado e não inteiramente compreendido. Um cineasta que infelizmente é mais reconhecido por um aforismo perfeito para um determinado contexto (a frase “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, durante os anos 1960) do que por seu legado cultural. Nelson Motta, que conheceu Glauber, entrevistou amigos e familiares do cineasta baiano. O resultado da pesquisa é a publicação “A Primavera do Dragão” (Objetiva, 368 páginas, R$ 56,90). No livro, Glauber é biografado com uma objetividade sem qualquer pretensão de análise crítica, um texto que começa no encontro dos pais de Glauber num pequeno baile nos anos 1940, na Bahia, até o momento em que o Festival de Cannes reconhece o cineasta como uma força intelectual (através do prêmio de melhor diretor, com o filme “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, em 1968), que a partir do cinema é capaz de provocar tumultos. Nesta entrevista, Motta explica como voltou a escrever o livro depois de uma pausa de 20 anos e se defende das críticas recebidas sobre nomes trocados e trechos que supostamente não aconteceram de verdade.

Na introdução você comenta sobre a trajetória da escrita, o início em 1989 e a retomada, nos anos 2000. Essa pausa modificou suas ideias sobre o que deveria ser o livro?
Desde o início a idéia era ser só sobre a juventude. Mas os 20 anos me deram melhor perspectiva para escrever o livro. Também escrevi sete livros nesse intervalo, biografia, romance, memórias, contos, além de centenas de crônicas e artigos para jornais e revistas. Então, mesmo se eu fosse uma besta, estaria escrevendo melhor. Foi uma sorte esse intervalo.

Embora Glauber Rocha seja um dos cineastas brasileiros mais lembrados da história do cinema nacional, ele não parece tão conhecido fora do circuito cinéfilo/acadêmico, talvez por não estar na pauta da televisão. O que você acha desse tratamento dado não apenas a Glauber, mas também a outros importantes cineastas brasileiros dos anos 1960 ou 70?
Acho péssimo. Há um grande desprezo pela memória no Brasil. Por outro lado, sem o Estado e sem a academia, a internet está fazendo este papel restaurador, poupando tempo e dinheiro a estudantes e pesquisadores, e dando acesso a todos sobre a memória nacional.

E qual a importância de debater hoje em dia a vida e a obra de Glauber?

Não sei. Escrevi a história de um amigo querido, um personagem extraordinário, um grande artista, um símbolo de sua geração, e acho que sua leitura vai divertir, emocionar e informar sobre Glauber e seu tempo, suas ideias, seus amores e suas conquistas. "Terra em Transe" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" são dois clássicos indiscutíveis do cinema mundial, só por isso já valeria a pena saber mais sobre quem os fez.

A narrativa do livro segue uma linha temporal bem definida, a trajetória de Glauber da infância até adquirir respeito internacional. O texto possui uma abordagem objetiva, procurando detalhar fatos biográficos da vida de Glauber. Por que esse recorte, essa forma linear de narrar, e esse interesse pela objetividade?
Porque queria contar uma boa história, como um filme, com um protagonista apaixonante e um excelente roteiro original. A história de um garoto precoce que amava cinema e se torna um dos maiores diretores do mundo com 24 anos no Festival de Cannes de 1964, onde, como num clichê de cinema, o discípulo (Glauber) confronta seu mestre (Nelson Pereira dos Santos) no final, um com "Deus e o Diabo" e outro com "Vidas Secas", dois clássicos. Eu não queria fazer análises, especulações, teses, nada dessas chatices que estão na maioria das biografias acadêmicas, só queria contar uma grande história, que tem muito drama, comédia e romance.

O livro recebeu muitas críticas das pessoas que viveram o mesmo período que Glauber na Bahia. Embora algumas não interfiram para a compreensão de Glauber (como nomes trocados), outras parecem um pouco mais graves, por insinuar que algumas das histórias descritas no livro nunca aconteceram. Gostaria de saber o que você comenta sobre essas críticas, e se tem planos para, na próxima edição, mudar algo no livro.
Nenhum dos pequenos reparos feitos por um amigo baiano de Glauber, personagem secundário de um trecho da narrativa, interfere nas 360 paginas do livro, são apelidos trocados, sobrenome errado de uma atriz, um quadro que não era tela mas mural e outras besteiras, que foram corrigidas em dez minutos para que a próxima edição saia sem erros. Agora, as hilariantes histórias de conspirações de araque, que me foram contadas por gente responsável como João Ubaldo Ribeiro, Orlando Senna e o falecido artista plástico Calazans Neto, em entrevistas gravadas, às gargalhadas, é claro que vou manter, só tirei os nomes dos que disseram que não estavam presentes. Servem muito bem para mostrar o estilo, a personalidade e o humor do jovem Glauber. Já me desculpei com os que troquei os nomes ou apelidos, já fiz as correções, agradeço as informações, desprezo as ofensas e encerrei este assunto com um texto público.

O soldado do jornalismo literário

Hugo Viana



Em setembro de 1998 Fernando Morais ouviu no rádio do carro que agentes da inteligência cubana infiltrados em organizações norte-americanas de extrema direita haviam sido presos pelo FBI. "Fui seduzido pela oportunidade de contar uma boa história", diz o autor, em entrevista por e-mail. Morais percebeu nessa ocorrência a possibilidade de escrever um livro, mas foi apenas em fevereiro de 2005 que ele teve acesso a documentos do governo detalhando a trajetória dos agentes e os planos de investigação. O resultado é "Os Últimos Soldados da Guerra Fria" (Companhia das Letras, 408 páginas, R$ 42). Na publicação, ele exercita 50 anos de experiência jornalística, herança presente tanto na apuração minuciosa quanto na busca por um tipo de objetividade ao narrar uma história real. O livro acaba sendo também, talvez um tanto indiretamente, uma espécie de panorama sobre mudanças sociais e políticas em Miami, na Flórida, ressaltando como a Revolução Cubana e Fidel Castro interferiram nos EUA.

O livro tem uma narrativa de fluência fácil, baseada em grande parte na descrição e na apuração de fatos pouco conhecidos ou nunca divulgados. Até que ponto esse "faro jornalístico" guiou a escrita? O senhor se interessa pela fronteira entre jornalismo e literatura?
É verdade, há muito da minha herança jornalística, sobretudo dos dez anos que passei no Jornal da Tarde, não só neste livro, mas eu diria que em todos os que escrevi. Tanto no que você chama de "faro jornalístico" quanto na tentativa de seduzir o leitor a cada parágrafo. Infelizmente, porém, e salvo as exceções de praxe, não é isso que se vê no jornalismo de hoje. A fronteira entre o jornalismo e a literatura - atenção! é literatura, não é ficção - reside no tempo e no espaço físico infinitamente maiores de que o autor dispõe ao optar por escrever um livro e não uma reportagem.

O senhor acha que o livro pertence ao "jornalismo literário"? O que acha desse gênero, que mesmo depois de tantos anos parece ainda se reportar à origem, aos cânones, como John Hersey ou Lillian Ross? Acredita em alguma possibilidade de renovação?
Eu tenho muito cuidado com essa história de "jornalismo literário". A confusão entre "literário" e "ficcional" é muito frequente. Mas é, sim, na água dos gringos que eu e muitos dos autores de livros jornalísticos bebemos. John Hersey, Lillian Ross, Truman Capote, Norman Mailer, Tad Szulc, Gay Talese... Outro dia eu reli, depois de muitos anos, "Honra teu pai", de Talese. Embora já soubesse o fim, eu não consegui largar o livro. Lia no café da manhã, no almoço, no jantar, na cama. É uma aula de bom jornalismo. E é literatura, pura, purinha da silva.

O livro tem um claro interesse em debater política e história. Qual a importância da literatura em discutir atualmente esses temas?
Confesso que me interessei menos pelo debate político e histórico e mais pela estonteante aventura que tinha nas mãos. De novo, a metade repórter da minha alma falou mais alto que a metade ativista político. Mas concordo com você em que, ao revelar bastidores inéditos até então - como a troca secreta de correspondência entre Fidel Castro e Bill Clinton - o livro acaba contribuindo para o debate político sobre o bloqueio econômico contra Cuba e a intolerância da comunidade cubana da Flórida contra tudo o que cheire a Revolução Cubana.

Num tema naturalmente polêmico, o senhor acredita na escrita isenta ou prefere deixar claro seu posicionamento político?
Não há nada mais subjetivo do que a objetividade. Ao escolher um personagem ou um episódio, o autor já está, de alguma maneira, revelando intenção. Mas ainda assim eu me esforço para que minhas convicções não interfiram nos meus livros. Escrevi "Chatô", a biografia de um dos ícones do conservadorismo, e não o crucifiquei. Escrevi "Olga", sobre uma militante comunista, e não a canonizei. Vou escrever a biografia de Antonio Carlos Magalhães com a mesma honestidade.

Há passagens que relatam dores íntimas dos personagens, sofrimentos que se tornam agora públicos com o livro. O senhor sentiu algum tipo de dilema ético durante escrita?
Escrever sobre dramas humanos é sempre doloroso, mas felizmente não vivi conflitos éticos. Acho que para isso contribuiu o fato de que joguei limpo com todo mundo. Todos meus amigos cubanos, de todos os escalões, sabiam que eu ia escrever uma reportagem. No dia em que fui entrevistar o mercenário que estava condenado à morte, a primeira coisa que perguntei era se ele aceitara falar comigo espontaneamente ou se fora obrigado pela direção da prisão. E esclareci que se ele não quisesse falar eu iria embora sem problemas. Ele respondeu: "Pode ligar o gravador. Estou aqui porque quero e acho que estou precisando desabafar". Foi assim com todo mundo, da extrema-direita aos oficiais de inteligência de Cuba. Ser honesto costuma dar resultado.

O livro é extremamente detalhado na reconstituição de momentos importantes. Há algo de ficção em sua escrita? Talvez não no sentido de "criar", mas ao menos na ideia de modelar a realidade num texto que seja, além meramente descritivo, também uma construção literária.
Não, a ficção nos meus livros é zero. Invejo os ficcionistas e mais ainda aqueles que, como Ken Follet, criam em cima de fatos reais. O livro "O buraco da agulha", escrito por ele e ambientado na Segunda Guerra Mundial, deixa o leitor com água na boca. Mas não sei fazer isso. Com relação à reconstituição detalhada de cenas ou personagens, isso se deve ao verdadeiro interrogatório a que submeto os personagens. Pergunto sobre detalhes que muitas vezes nem usarei no livro, mas isso dá ao autor uma segurança maior na hora de escrever. Quando o autor se sente senhor da história, conduz como quiser.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

As propostas urbanas de Calvino

Hugo Viana



Alguns livros permanecem nas estantes e na história da literatura pela força do hábito, por uma repetição coletiva - e muitas vezes justa - que são obras "clássicas", e por isso merecem continuar ciclos de leitura em novas gerações. Não é bem o caso de "A Especulação Imobiliária" (Companhia das Letras, 120 páginas, R$ 32), escrito por Italo Calvino (1923-1985), lançado originalmente em 1957.

O livro é geralmente tratado como uma obra pequena da fase inicial de Calvino, um período marcado por sensações urbanas, neorrealista talvez, dentro de uma bibliografia com muitos "clássicos" pertencentes ao gênero fábula. Talvez por isso "A Especulação Imobiliária" seja avaliado apressadamente como uma leitura menos necessária entre tantas de Calvino, quando realmente não é o caso.

Talvez percebendo essa recepção, é o próprio Calvino que ressalta, na orelha do livro, num trecho retirado de uma entrevista: "De todas as histórias que escrevi, sinto que 'A Especulação Imobiliária' é aquela em que consegui dizer mais coisas; é também a que mais se aproxima de um romance, ainda que breve".

O livro parece em plena conexão com o tempo em que foi escrito, uma ligação profunda com o período que veio depois da Segunda Guerra, nos anos 1950. Especialmente por capturar uma certa tensão da época na Itália, com o ressurgimento econômico do país através do capital estrangeiro, e as mudanças que isso causou na sociedade.

O personagem principal é Quinto, um intelectual de dignidade distraída, nada interessado na abstração do pensamento, voltado em grande parte para afazeres de menor importância. Ele mora no norte, onde há maior conforto financeiro, e raramente visita sua mãe, no sul, numa pequena cidade chamada por Calvino apenas como ***, na Riviera italiana. Quinto tem um irmão, Ampelio, professor de química, e esses três parecem a caricatura rápida e bem humorada de uma família tipicamente italiana de reações muitas vezes exageradas.

Numa dessas idas à cidade natal, Quinto percebe que as regiões verdes aos poucos estão desaparecendo; a bela paisagem natural que Quinto a cada viagem enxergava pela janela do trem passa por transformações feitas pelo homem. Isso ocorre por causa da febre do cimento, o crescimento urbano, o aumento do turismo, a construção cada vez mais frequente de prédios de seis ou oito andares. Descobre também que a mãe está sendo pressionada para vender parte de seu terreno para poder pagar os novos impostos regulamentados após a guerra.

O livro é uma curiosa sátira sobre costumes adquiridos em novos tempos, as formas matreiras de reagir às transformações, a distribuição geográfica da renda, a mudança entre uma burguesia conservadora e um tanto mesquinha para um novo modelo de empresário, representado em Caisotti, homem que não tem cabelo ou escrúpulos. "A triste invasão do cimento tinha a cara achatada e informe do novo homem Caisotti", escreve Calvino.

O material bruto do livro trata de assuntos que em geral deixam pessoas carecas antes do tempo, notas promissórias, burocracia bancária, cláusulas miúdas de contratos, réplicas perfeitas de coisas que asseguram angústias para gente comum. Os personagens são engenheiros, tabeliães, advogados, pessoas de boa educação e ética questionável que direcionam o país para um novo caminho, e Calvino parece comentar através da comédia que esta nova sociedade tem algo de pesadelo.

domingo, 23 de outubro de 2011

A história da Argentina segundo Ricardo Piglia

Hugo Viana



O texto do escritor argentino Ricardo Piglia, 61 anos, vem muitas vezes acompanhado de uma noção ampla de história, um conhecimento (um tanto irônico) sobre as mudanças políticas e econômicas de seu país. Seu novo livro é "Alvo Noturno" (Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 45), em que esses temas aparecem abertamente.

A história se passa nos anos 1970, época em que a Argentina vivia sob ditadura, e ao invés de observar o centro desse sistema de dominação, em Buenos Aires, a briga urbana muitas vezes sangrenta entre operários e militares, Piglia escreve sobre os pampas argentinos, as regiões do interior. Ele parece falar à distância sobre negociações entre política e capital, e como esses temas que repercutem hoje em dia.

Assim como "Dinheiro Queimado", este é na superfície um livro de gênero, um romance de detetive, descrevendo as circunstâncias de um crime seguido por uma investigação policial. Tem um corpo morto em um quarto de hotel; é Tony Duran, porto-riquenho que veio dos Estados Unidos para apostar alto numa pequena cidade do interior. É um povoado onde vivem pessoas desconfiadas, uma região pouco desenvolvida sob qualquer aspecto, onde os que possuem ideais de contestação ou sabedoria popular são encaminhados para manicômios.

O responsável pela investigação é o comissário Croce, um policial do passado, peça antiga e desvalorizada nos tempos modernos, que resolve crimes com tremenda precisão de raciocínio, sem recorrer a métodos científicos. Ele pensa em frases curtas que surgem meio sem querer durante caminhadas, e elas parecem representar uma espécie cruel de verdade sobre não apenas a investigação, mas a situação social de seu país.

Aos poucos a investigação de Croce sugere que esse assassinato esconde mais do que aparenta, e provavelmente envolve interesses comerciais e políticos, vontades de pessoas com poder. Tony se relacionava com a família Belladona, cujo patriarca era um rico fazendeiro. Seus dois filhos homens se afastaram e tentaram entrar no ramo industrial, negociando com norte-americanos, enquanto suas filhas gêmeas de pernas longas eram objetos de desejo, garotas de espírito sexual livre numa época em que calça jeans era artigo proibido para mulheres.

Esses personagens parecem representar uma tensão crescente da Argentina nos anos 1970, símbolos de uma época fundadora de problemas sociais que persistem. Uma versão em escala reduzida da relação hierárquica entre trabalhadores e donos de terra, o panorama periférico da ditadura e da submissão diante de um poder maior.

Piglia trabalha uma interessante relação entre ficção, história e teoria literária (em especial a partir das mudanças de rumo na narração proposta na parte final), e tudo parece conectado num tipo de tese sobre o estado das coisas no capitalismo contemporâneo, uma arqueologia social misturada à literatura.

No meio do livro, durante um de seus passeios noturnos, Croce, dirigindo um automóvel, quase atropela uma lebre, pequeno animal perdido no meio do mato, assustado pela luz do farol do carro em alta velocidade. Essa imagem parece de algum modo representar o argumento de Piglia, um comentário amargo sobre a história de seu país e pessoas sem defesas contra um mal que vem a 100 km por hora.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A música como retrato social da América do Sul

Hugo Viana*



BELO HORIZONTE (MG) - A mostra internacional do Cine BH vem exibindo desde o primeiro dia uma interessante seleção de longas-metragens da América do Sul, filmes que infelizmente com raras exceções circulam apenas em festivais ou mostras especiais, dificilmente chegando a entrar em cartaz no circuito comercial. Na segunda-feira foram projetados “A Viagem do Vento” (Colômbia, 2009), de Ciro Garcia, e “Hiroshima - Um Musical Silencioso” (Uruguai, 2009), de Pablo Stoll.

Os filmes foram programados no mesmo cinema, o Cine Santa Tereza, em sequência, e isso parece sugerir conexões, tornar evidentes reincidências, em especial algumas notas sobre a importância da música e da sonoridade das palavras.

Ciro criou uma história profundamente inspirada na cultura popular colombiana, sendo a jornada do protagonista, o músico Ignacio (Marciano Martínez), uma peregrinação um tanto simbólica e mística por povoados em busca do mestre que o ensinou a tocar acordeão. Lembra um pouco o que os irmãos Coen fizeram com a história de Ulisses em “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”, dessa vez mexendo com mitos de uma cultura periférica.

Em cada cidade Ignacio enfrenta algum tipo de desafio, um pouco como um filme de faroeste, mas em vez de armas há apenas o uso da música feita ao vivo e muitas vezes no improviso. Sérgio Leone parece inspiração distante, em especial numa excelente cena de duelo com facões com trilha ao vivo de Ignacio, uma marcha lúgubre.

A música parece comentar algo maior, uma espécie de respeito pela tradição, pelos antepassados, por um tempo destinado à extinção pela força maior das regiões urbanas. Todos os rostos filmados em close ou em imagens coletivas parecem pontos de exclamação nessa ideia de um tempo passado, um belo e silencioso comentário sobre heranças e tradições.

É também silencioso o filme de Pablo Stoll, mas a ausência de palavras em “Hiroshima” segue outra rota, um caminho para o humor involuntário de uma geração sem rumo. Pablo, reconhecido por seus dois longas anteriores, “25 Watts” (2001) e “Whisky” (2004), volta a falar, assim como em seu primeiro projeto, da juventude, da rotina nem sempre excitante dos jovens adultos de Montevidéu.

O protagonista é um cantor que já na primeira cena pede silêncio para seu amigo, e então o filme o respeita e segue até a última imagem como uma obra sem falas, apenas sons de ambientes, usando a cada diálogo as cartelas do cinema mudo. Vem daí algumas boas piadas, com essas cartelas ganhando autonomia e sendo motivo para humor.

Um perigo real para um filme que pretende relacionar o vazio de uma geração é ser, também, essencialmente vazio, algo sugerido na primeira cena, em que acompanhamos passo a passo o protagonista caminhando pelas ruas ouvindo disc-man (isso mesmo). Mas depois o filme cresce, recorre ao estilo raro de encenação de Jacques Tati, um bom humor silencioso baseado em cenas banais da rotina.

É um tipo de filme que aparenta não ter pretensões, sendo formado basicamente por uma junção aleatória de pequenas cenas sem grande envolvimento dramático. O protagonista vai até o mercado, compra e vende qualquer coisa, e volta para casa; sai mais tarde, encontra a namorada, e depois um amigo. O que eleva o filme é um ótimo senso de humor urbano, ressaltado por técnicas criativas de narração.

*Viajou a convite do festival

As diferentes imagens do cinema

Hugo Viana*



BELO HORIZONTE (MG) - Algo interessante que acontece em festivais de cinema é a oportunidade de ver em sequência filmes de naturezas distintas, e nesse encontro perceber uma estranha relação entre eles, ligações complementares ou opostas que surgem apenas no contexto do festival. No terceiro dia do Cine BH foram exibidos os longas internacionais “Post Mortem” (Chile, 2010), de Pablo Larraín, e “Caminho para o Nada” (EUA, 2010), de Monte Hellman.

Larraín é um realizador jovem, 35 anos, e agora em seu terceiro longa-metragem parece interessado em fantasmas do passado, aspectos talvez de sua formação no Chile. O filme é sobre um homem comum cujo trabalho é anotar descrições médicas durante autópsias. A história se passa em 1973, pouco antes do golpe militar que derrubou Allende e iniciou a ditadura de Pinochet.

Não é um filme diretamente político, a narrativa é guiada por sensações do protagonista, homem frio e de poucas palavras que não tem preocupações relacionadas com o bem coletivo das pessoas. Ele apenas observa apaixonado a vizinha, uma dançarina de bares noturnos, enquanto o tema “opressão” surge naturalmente de acordo com acontecimentos históricos, sendo uma das cenas mais fortes a descrição detalhada da morte de Allende.

As imagens possuem uma interessante textura anos 1970, e isso parece ser a maior força do filme, a capacidade de simular uma época não apenas pelas roupas, carros e penteados, mas através da imagem em 35mm. É uma elaborada concepção visual que em alguns momentos sugere que o filme foi feito nos anos 1970 e encontrado por acaso em 2010.

Hellman, ao contrário, é um diretor experiente, 79 anos. Ele teve participação ativa no momento histórico “Nova Hollywood”, nos anos 1970, fazendo filmes brutos e inteligentes sobre carros em alta velocidade e violência moral. Um dos mais conhecidos é “Corrida Sem Fim” (1971).

Neste novo longa-metragem, Hellman filma com câmera digital, uma revisão moderna do passado do cinema. Já na primeira cena vemos um dvd com um nome escrito com caneta, “Road to Nowhere” (título original do filme), e temos aí a familiaridade de um filme pequeno, quase amador, no sentido da ausência de um tratamento rigoroso da imagem, caso do filme de Larraín.

Enquanto “Post Mortem” se esforça meticulosamente em recriar sensações do passado, temos aqui o caso de um veterano se adequando a ferramentas de última geração, e a sensação visual é a de filmes ruins para a TV, com aquele tipo peculiar de iluminação sem nuances e atuações precárias, aspectos que em alguma medida reforçam o tema central do filme.

A história é sobre o próprio cinema, um filme dentro do filme, em que um diretor fictício serve como fantoche para Hellman falar sobre a indústria e o ato de criar histórias ficcionais a partir do mundo real. Há uma complicada trama sobre assassinato, corrupção e clima policial, mas nada disso realmente importa, o interesse parece ser como o cinema se apropria desses casos reais e cria algo totalmente diferente.

Parece um filme instigante do ponto de vista de um autor explorando novos caminhos, embora o uso de técnicas que podemos chamar de “amadoras”, tanto na forma de atuar quanto na produção de imagens digitais, pareça fechar o filme num tipo difícil de fruição.

*Viagem a convite do festival


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Teses sobre maldade e prostituição

Hugo Viana*



BELO HORIZONTE (MG) - A Mostra Cine BH chega neste ano à quinta edição e fortalece um interessante perfil, apresentando-se como um festival que debate o mercado do cinema, em especial assuntos que poucas vezes chegam ao grande público: produção, difusão e detalhes de políticas de incentivo ao cinema.

Há também curtas e longas-metragens, e embora o Cine BH pareça prejudicado por sua colocação no calendário, sendo um dos últimos festivais do ano, trazendo por isso filmes que já foram exibidos em outros eventos, há um importante direcionamento, ressaltando filmes nacionais de realizadores jovens e longas internacionais que passaram por festivais como Cannes ou Veneza.

Dois filmes internacionais foram exibidos no segundo dia do festival, no sábado à noite, no Cine Santa Tereza. “As Más Intenções” (Peru, 2011), primeiro longa-metragem de Rosario Garcia-Montero, e “L'Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância” (França, 2011), de Bertrand Bonello, que concorreu à Palma de Ouro de Cannes deste ano.

O trabalho de Rosário trata de histórias mínimas dentro de um contexto político que nunca é detalhado no filme: os anos 1980 no Peru, período de baixa econômica e atos descritos como “terroristas”. Há um cuidado em deixar a política fora do quadro, evidente apenas como uma permanência opressora que move os personagens.

Dentro desse panorama social está o olhar infantil de Cayetana, menina jovem e bastante mimada que, quando a mãe regressa de viagem depois de alguns anos, mostra sinais claros e quase sempre cruéis de maldade. É um retrato que parece sugerir a semente do mal na juventude de famílias ricas cercadas por trabalhadores pobres de pele escura.

São algumas boas ideias que não alcançam algo maior por certas deficiências técnicas e, mais para o fim, de roteiro. Há um bom tratamento rústico da idéia de “cartão postal de terceiro mundo”, que em seguida desaparece para dar espaço para a imaginação de Cayetana, embora o filme pareça não ter orçamento para isso, um pouco como uma versão com menos dinheiro de “Labirinto do Fauno”.

O filme de Bertrand, que tem estreia nacional marcada para o dia 21 deste mês, ao contrário, mostra logo nas primeiras imagens um forte poder de fascínio. Há uma incrível organização visual, um pouco como pinturas de época, do fim do século 19, narrando a história de um grupo de prostitutas francesas. Bertrand parece ter uma curiosidade voyeur sobre o cotidiano delas, criando uma narrativa dividida entre técnicas de limpeza e de paciência para aguentar perversões sexuais e pequenos momentos da rotina.

Uma delas é desfigurada por um homem durante algo que parece um pesadelo sexual. Ela fica com cicatrizes no rosto, simulando um sorriso constante, e o filme nos mostra como aconteceu, com algum prazer. A plateia vira o rosto, indício discreto de cinema de horror. Outras cenas têm também carga pesada desse submundo do sexo, uma violência que não é apenas física, sendo talvez por isso uma degradação ainda mais difícil de acompanhar sem reagir.

Não há qualquer aprofundamento nesses personagens masculinos, um pouco como sombras que surgem e vão embora apenas para satisfazer desejos sexuais. A permanência é a das prostitutas, tratadas entre si talvez como modo de sobrevivência com delicadeza sem exageros, e essas parecem as melhores cenas do filme.

Mais para o fim entra um desagradável discurso moral que parece apontar uma tese sobre o estado das coisas na França contemporânea, fechando o filme dentro de uma única forma de compreensão.

*Viagem a convite do festival

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Madrinhas à beira de um ataque de nervos

Hugo Viana



Um comentário comum no meio audiovisual é que a produção norte-americana feita para a TV vem sendo nos últimos dois ou três anos mais interessante do que os grandes filmes de estúdio. Um dos responsáveis por esse novo respeito adquirido pelas séries feitas para a televisão é Paul Feig, nome envolvido na direção de programas como "The Office", "Mad Men" e "30 Rock". No cinema Feig não possui a mesma reputação, com poucos filmes desconhecidos no circuito nacional. Seu trabalho mais recente é "Missão Madrinha de Casamento" (Bridesmaids, 2011).

A história é sobre Annie (Kristen Wiig, ótima), mulher solteira perto dos 40 que é escolhida por sua melhor amiga para ser sua madrinha de casamento. Annie não tem qualquer jeito para os negócios e sua pequena loja de bolos acaba falindo. No amor Annie também não é exatamente bem sucedida, o máximo que ela conseguiu em sua vida afetiva foi ser a opção número três do disque sexo de um canalha rico. Tudo fica ainda muito pior quando a noiva a apresenta Helen (Rose Byrne), casada, rica e bonita, que a aterroriza psicologicamente até roubar a posição de melhor amiga da noiva.

O filme é uma agradável surpresa em termos de enredo, uma história sobre personagens femininas na fase adulta, transformando momentos de crise em situações comicamente desastradas. É uma curiosa mistura entre o humor escatológico típico de comédias masculinas como "Se Beber Não Case" e um romance delicado sobre pessoas com pouca aptidão para encontrar alguém especial, sendo a ocasional falta de equilíbrio de ritmo entre essas partes talvez o maior problema do filme. Às vezes esse humor entra com modos brutos numa cena qualquer, surpresa que nem sempre parece bem-vinda

O filme passa a impressão de durar duas ou três temporadas, uma longa jornada que alterna diferentes níveis de interesse, sensação que parece agravada por personagens que somem e reaparecem muito tempo depois, longas pausas dramáticas nos núcleos narrativos, aspectos negativos que normalmente associamos à produção para a TV, que possuem larga duração.

Há também um elenco grande e texto enxuto e bem humorado, outros aspectos que reforçam essa aproximação entre TV e cinema, um caminho que embora seja menos experimental em termos linguagem, é uma opção que pode ao menos trazer elementos um pouco distintos para o antigo gênero comédia romântica.

A nova aventura de Taylor Lautner

Hugo Viana



Atores que chegam à posição de estrelas do cinema comercial possuem certas vantagens no mercado, eles conseguem fazer com que os filmes se encaixem em seus atributos mais populares, e não o contrário. Parece ser o caso de "Sem Saída" (Abduction, 2011), filme aparentemente feito para brilhar o vigor físico de Taylor Lautner, da série "Crepúsculo", e nada mais, sendo dirigido timidamente por John Singleton (ainda lembrado por sua estreia, "Os Donos da Rua", de 1991).

Nathan (Taylor) sente por intuição que não se encaixa em sua família, até que, por acaso, durante uma pesquisa para um trabalho de colégio, ele encontra um site de crianças desaparecidas, com imagens de como elas possivelmente estariam hoje em dia e, para sua imensa surpresa, um desses garotos se parece muito com ele. A partir daí o filme muda o ritmo e entra no gênero thriller de espionagem, claramente influenciado por filmes de Hitchcock, sobre pessoas inocentes sendo perseguidas em busca de fatos pouco importantes, seguindo uma lei informal de ação, um cenário diferente a cada cena.

O filme parece existir apenas em função de Taylor, interpretando um protagonista em boa parte baseado no seu personagem de "Crepúsculo". Nathan é um bem sucedido jovem lutador, temido no colégio pela força e por um temperamento quente, e que costuma vestir apenas jaqueta preta e óculos escuro, andando de moto ou no capô de carros para impressionar meninas do colégio. Algumas cenas são meio que sem explicação filmadas com Taylor sem camisa, caso evidente de filme de ator, modalidade um tanto oca de cinema.

"Sem Saída" possui um enredo que podemos chamar adequado, mediano em qualquer aspecto, um filme sem grandes ambições além de impulsionar a carreira do seu protagonista. Sua existência parece ser uma estratégia para não apenas manter a popularidade de Taylor, jovem ator fraco, mas também antecipar a primeira parte do último filme de "Crepúsculo", que estreia em novembro.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Os fantasmas de Antônio Xerxenesky

Hugo Viana



Antônio Xerxenesky pertence a um grupo bastante variado de escritores, pessoas abaixo de 30 anos, com estilos diferentes, conectados apenas por uma mesma etiqueta gerada pelo mercado editorial, "novos autores". Seu segundo livro se chama "A Página Assombrada por Fantasmas" (Rocco, 128 páginas, R$ 23,50), obra que reúne nove contos, todos baseados em obsessões acionadas pela relação com a literatura. Nessas histórias, pessoas comuns são acossadas por fantasmas literários, perseguições não convencionais e muitas vezes devastadoras que sugerem a literatura como um tipo concreto de predador. Os personagens são escritores, leitores, críticos, estudantes e gente anônima que a cada página passam a desconfiar da palavra. Cada história expõe a permanência assombrada de autores do passado, contos que se pensados como um conjunto único acumulado passam a sensação de um panorama de nostalgia e desilusão, a revisão do passado e a sugestão do futuro literário incerto. Nesta entrevista por e-mail Xerxenesky falou sobre ser um "jovem escritor" e sua relação com a literatura.

Você é um escritor que pertence a uma "nova geração". Achei que seu livro passa a ideia de autor jovem interessado em homenagear cânones: a história da literatura como motivação para a escrita. Gostaria de saber sobre seu interesse em escrever livros sobre literatura, e se Vila-Matas ou Bolaño são de alguma forma referências.
Vila-Matas e Bolaño foram referências inescapáveis na escrita do meu livro. Trabalho com os dois autores no mestrado e isso acabou vazando para a prosa. Assim como eles, também pratiquei uma escrita parasitária, que se alimenta de outros textos e referências. No entanto, sinto que esgotei o que tinha para dizer nesta linha "metaliterária" com "A Página Assombrada por Fantasmas" e não pretendo seguir este caminho no futuro.

O próprio nome do livro comenta diretamente essa proposta de contos que se reportam à literatura: os fantasmas (literários) que assombram suas páginas. Como você explica essa ideia de "assombro"?
Os fantasmas representam uma ambiguidade essencial: eles estão presentes e ausentes ao mesmo tempo. Representam autores que, mesmo que não estejam presentes nas páginas, alteraram e moldaram a visão de mundo dos personagens. Cada conto tem um fantasma específico: Walser, Borges, Bolaño, Marías, K. Dick. Mesmo que esses autores não sejam citados no conto, estão lá, assombrando o universo dos personagens.

Em alguns contos, assim como num texto recente seu ("O Escritor com Adjetivos"), há uma ironia intensa e nem sempre amigável sobre o mercado literário (especialmente o de Porto Alegre). É algo que você intensifica como recurso retórico (ou talvez posicionamento de mercado) ou há um desgosto autêntico nessa relação?
Como você bem apontou, há uma ironia, e a ironia sinaliza um discurso duplo, às vezes ambíguo. Satirizo muitas coisas da cena literária, mas, ao mesmo tempo, faço parte dela. Brinco com a questão da vaidade dos escritores, e, no entanto, como quase todos os escritores, tenho vaidade e ego. Há repulsa, claro, mas esta repulsa também está dirigida a minha pessoa e minhas atitudes.

Gostaria que você falasse um pouco sobre suas impressões do mercado editorial a partir desse rótulo "jovem escritor". O cotidiano de quem vive a partir da escrita.
Em primeiro lugar, é possível viver de literatura, ao contrário do que muitos pregam. Claro, o jovem escritor não se sustentará apenas com direitos autorais, mas pode trabalhar com tudo que existe ao redor: traduções, críticas, orelhas, palestras, oficinas. Envolve muito incômodo? Sim. Mas é possível. E o mercado editorial, acredite ou não, adora um jovem escritor. São eles que movimentam a mídia e as redes sociais. Apesar de todas as reclamações, é fácil bancar o papel do jovem escritor. Difícil deve ser habitar o rótulo de "velho escritor".

Há uma certa desilusão na sua representação de literatura? Tive essa sensação quando pensei sobre os contos como um conjunto único, o futuro proposto em "Sequestrando Cervantes", as escolhas de Charles Mankuviac, a neurose fornecida pela literatura em "A Morta Viva", a sensação de mudanças e passagem do tempo em "No Segundo Andar"...
Sim, sem dúvida. Um descontentamento com as limitações da literatura, a separação entre literatura e vida... Neste livro, a desilusão surge em várias formas. Além de todos esses que você mencionou, o tema está presente em "Amanhã, Quando Acordar". A desilusão aparece quase como uma espécie de réplica àqueles que defendem que "todos deveriam ler", que "ler nos torna mais humanos". A leitura pode ser muito destrutiva, pode nos isolar do mundo.

Alguns dos contos são escritos em primeira pessoa, recurso que quase sempre faz o leitor pensar na pergunta: é biográfico? Embora isso seja claramente impossível em alguns (como um que a primeira pessoa é uma mulher de 40 anos), em outros, como "Algum Lugar do Tempo", há forte sensação de lembranças pessoais misturadas à ficção. Essa é uma fronteira que lhe interessa?
Sinto um estranho prazer em enganar o leitor. Gosto de dar a impressão de que o que está sendo narrado é sobre a minha vida ou reflete minhas opiniões, mas isso quase nunca acontece. A única exceção está justamente em "Algum Lugar no Tempo", um conto completamente autobiográfico. Por isso o conto está no centro do livro: é um pequeno castelinho de sinceridade no meio de um deserto de ironia. Mas não importa se é fato ou ficção. O importante é ser um bom conto, atingir o leitor, comunicar algo.

Em seu livro também há algumas amarguras destinadas à crítica literária, ironias sobre certas recorrências negativas na escrita analítica. Como é sua relação com a crítica?
Apesar de todas as minhas chicotadas no livro, adoro crítica literária. Inclusive, acho que tenho mais futuro como crítico do que como escritor. Acho que a crítica literária, inclusive a praticada no jornal, deveria ser mais interpretativa. Focar mais em oferecer leituras possíveis das obras avaliadas, não só atuar como um guia de compras. Não vejo muito sentido, também, em escrever críticas detonando obras. Os livros ruins merecem o silêncio, não a atenção. O espaço da crítica nos suplementos culturais já é exíguo, então vale muito mais a pena chamar a atenção para o que o crítico considera valioso.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Histórias de política e detetives

Hugo Viana



Os primeiros livros de escritores que se tornam grandes durante a progressão da história da literatura em geral ganham a importância de objetos de estudo, fontes de pesquisa, textos que quando acessados anos depois revelam uma espécie de arqueologia pessoal da evolução da escrita.

Os indícios iniciais do futuro estilo que tornaria o chileno Roberto Bolaño reconhecido está disponível no livro "Monsieur Pain" (Companhia das Letras, 144 páginas, R$ 34), "escrito em 1981 ou 1982" (imprecisão do próprio Bolaño, na introdução do livro), lançado apenas agora no Brasil.

Bolaño é normalmente associado a um estado de suspense, um clima turvo de investigação política que permanece sem respostas. Em seus livros mais conhecidos no Brasil, "Estrela Distante" e "2666", o autor recorre na superfície ao gênero policial, a narrativas de investigação criminal como forma de se aproximar de seus temas pessoais, o interesse pelo estudo de ditaduras na América Latina, os sistemas de dominação, a desilusão com a esquerda e a falência dos homens de pensamentos liberais, além da própria literatura, o papel da criação artística durante a tensão social.

A história de "Monsieur Pain" se passa em 1938, na França, e fala sobre Pierre Pain, praticante da medicina alternativa, convocado apressadamente para solucionar uma insistente crise de soluço que atacou o poeta peruano Vallejo. Depois de conversar com a mulher da vítima dessa praga inesperada e em geral não levada muito a sério, Pain passa a ser seguido silenciosamente por dois homens sinistros, usando sobretudos escuros e chapéus de aba larga, talvez a imagem síntese do gênero policial.

A certa altura eles o abordam e lhe oferecem suborno, dinheiro destinado a convencer Pain a não cuidar da saúde de Vallejo. Pain aceita e depois seus dias se dividem entre a vertigem de encontrar soluções para algo que aparentemente não possui mistérios de nenhuma natureza e a culpa que o assombra por um passado obscuro nunca inteiramente revelado.

A escrita de Bolaño remete de alguma forma a uma noite brumosa, a um homem encostado numa parede, outro escondido em fumaças de cigarro, sendo observado, movimentos que são simples e adquirem sinuosidade inesperada pela descrição irônica. Durante sua crise moral, Pain passa a vagar geralmente bêbado por ruas apertadas, bares vagabundos, quartos mofados, encontrando personagens ambíguos, que em silêncio quase sempre sugerem a possível ilusão de raiva ou angústia.

Essa história que muitas vezes se confunde com um pesadelo ou uma descida informal ao inferno da solidão parece naturalmente narrada no tom policial, no ritmo da investigação de um crime que nunca sabemos a real natureza. A descrição de um fato normal como alguém descendo as escadas ou entrando num táxi é modulada para o gênero suspense de detetive, como se um segredo terrível estivesse à espreita e pudesse atacar. A escrita de Bolaño é então a de um predador, carregada de um certo lirismo pertencente ao estado de mistério e confusão emocional, e embora em alguns momentos pareça irregular ou longa demais para um fato qualquer, acessos loucos de estilo, sugere uma personalidade forte de escritor virtuoso.

Bolaño conseguiu em alguns livros ser especialmente hábil na capacidade de sugerir inquietações políticas em tramas vestidas de literatura de gênero policial, e em "Mounsieur Pain" essa ideia parece especialmente ativa.

O crescimento desmedido do fascismo, a força devastadora do nazismo, o resultado desolador da Guerra Civil da Espanha (1936-1939) e o domínio do regime franquista sequente, eis os temas que surgem sem qualquer aviso ou exaltação, apenas no subterrâneo da história, com personagens que possuem um direcionamento politicamente conservador ou abertamente adeptos de ditaduras, sugerindo um estado permanente de mal-estar. O livro termina sem nenhuma resposta ou interesse em revelar seu real valor, e isso parece a conclusão ideal para um escritor que sempre preza pelo horror da dúvida.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A revolta dos macacos

Hugo Viana



Não é incomum a indústria do cinema norte-americano remexer o passado de sua história em busca de inspiração para novos projetos, procurando alguma fórmula que deu certo anos antes, dessa vez com o interesse de adaptar a estrutura para os tempos modernos. É o caso de filmes recentes que ressuscitam franquias do passado colocando no cartaz indicativos como "descubra como tudo começou" ou "agora em 3D", ou talvez as duas coisas.

Entra em cartaz mais um desses projetos, "Planeta dos Macacos: A Origem", série de filmes que começou muito bem em 1968, em que astronautas durante uma viagem espacial caíam em planeta hostil, povoado por macacos inteligentes, que viviam como humanos em tempos antigos. Aquele ambiente rude era na verdade a Terra no futuro, e o grande comentário crítico proposto era que nossa pouca inteligência para viver harmoniosamente em comunidade gerou guerras que mudaram o curso natural da evolução.

Esta nova etapa da franquia mostra então o marco zero dessa mudança, o ano 1 do calendário da rebelião dos macacos. A trama envolve uma pesquisa científica de Will (James Franco) sobre uma suposta droga que não apenas poderia curar doenças ou lesões no cérebro, mas também melhorar capacidades cognitivas, em termos gerais tornando as cobaias super inteligentes. O teste com os macacos dá certo, mas as relações que surgem entre humanos e primatas geram conflitos.

O filme, terceiro dirigido por Rupert Wyatt, ilustre diretor de filmes pouco conhecidos, parece exemplar comum de cinema com obrigações comerciais, com histórias paralelas um tanto deslocadas do tema central, que se referem a um tipo de evidência emocional em geral presente em filmes de alto orçamento. Até que então surge uma sequência de força incrível, que resgata uma tradição de cinema de insurreição política e insatisfação social, cena que lembra o abate dos operários morrendo como gado em matadouros pela vontade de quem paga salários, em "A Greve", de Sergei Einsenstein.

O filme mostra diferentes tipos de animais irracionais, e nem todos são macacos. Há exemplares magníficos de patetas humanos, pessoas que se imaginam como figuras de poder por causa de músculos ou dinheiro, e o filme os pune com certo grau de prazer, arrancando dedos ou eletrocutando idiotas.

É um filme que assim como "Star Trek", de J.J. Abrams, lançado em 2009, revisa de maneira gigante uma franquia que influenciou outros tempos, atualizando através da tecnologia histórias que prezavam pelo entretenimento, mas com qualidade técnica rudimentar. A tecnologia nesta nova edição parece essencial, criando digitalmente macacos que, especialmente através dos olhos, revelam algo como uma humanidade honesta, a sensação forte de que o conflito é entre iguais, mas hierarquicamente divididos por motivos de outra natureza.

Esse parece ser o grande tema do projeto "Planeta dos Macacos", desde sua concepção inicial, o comentário político sobre as pessoas à margem, a sugestão da revolta armada como resposta inevitável ao desconforto imposto àqueles enquadrados como diferentes do padrão, pertencentes a outras raças ou etnias, consideradas como "inferior" por aqueles na parte de cima da escala social. Parece ainda mais irônico se tratar de macacos, a origem do homem contemporâneo.

A música e as mulheres de Gainsbourg

Hugo Viana



O cinema tem uma tradição mais ou menos rentável de filmar biografias, contar trajetórias de ícones históricos, pessoas que em algum momento mobilizaram público amplo. São filmes em geral comportados, feitos a partir de um molde recorrente narração e envolvimento dramático, seguindo certas regras seguras. É mais ou menos esse o caso de "Gainsbourg: O Homem que Amava as Mulheres", biografia do músico francês Serge Gainsbourg, artista popular entre os anos 1960 e 80, em cartaz no Cinema da Fundação.

Gainsbourg pode ser rudemente descrito como homem comum de estatura média, orelhas de abano e nariz no formato adunco, talvez do tipo feio, mas com um talento inesgotável para a criatividade musical e inventividade artística. Numa certa manhã qualquer de sua vida em Paris, ele tomou café, comeu croisant, em seu apartamento, olhando para Brigitte Bardot, que acordava dengosa com pouca roupa em sua cama. Imagem exibida pelo filme com imensa noção de bom humor e poder sugestivo.

Antes desse dia, nos anos 1950, Gainsbourg era apenas um pianista noturno de bares esfumaçados, trabalhador algo anônimo tocando tediosamente grandes músicas que serviam para embalar refeições de clientes pouco interessados. Esses momentos do filme são envolventes, Gainsbourg possuia um tipo de humildade que contrasta com a ordem rockstar, e o filme acompanha essa sensação abaixo do radar do glamour, numa narrativa simples de etiqueta social tipicamente francesa. Algumas boas piadas inesperadas.

Na primeira metade do filme o que importa parece ser criar uma perspectiva diferente, ou ao menos pouco convencional, para o gênero biografia. Não é a história de grandes instantes que definem uma personalidade e "mostram o que realmente aconteceu", mas pequenas cenas banais, um tanto transformadas por uma noção de fantasia, controlada pelo gênio instável de Gainsbourg. O filme é o primeiro dirigido por Joann Sfar, artista que veio do trabalho com histórias em quadrinho, e talvez isso explique um tique em representar de formas gráficas os pensamentos de Gainsbourg, que também desenhava.

Depois o filme parece banalizar sua proposta e se torna uma biografia tradicional, representando instantes da vida pessoal de Gainsbourg que poderiam ser encontrados em manchetes de revista de fofoca de época. São cenas que sugerem um certo excesso emocional de fã exaltado, como a imagem de um Gainsbourg de óculos escuros, tropeçando bêbado e caindo sob efeito de drogas, berrando qualquer coisa negativa contra gente amiga. É um tipo de final que não é exatamente surpresa, mas que parecia que seria criativamente transgredido durante o filme.

O amor na vida adulta

Hugo Viana



A comédia romântica parece ser o gênero mais popular do cinema norte-americano, são filmes parecidos uns com os outros e em geral com nada mais em cartaz no cinema. Então surge algo que tenta brincar um pouco com esses postulados fixos, buscando soluções pouco convencionais para os problemas do amor. Parece ser o caso desse filme agradavelmente mediano, "Amor a Toda Prova", obra basicamente de atores, com Steve Carell e Julianne Moore interpretando o par romântico.

As primeiras imagens do filme mostram pés de casais embaixo da mesa de um restaurante: os homens de sapatos sociais, as mulheres de salto alto, todos elegantemente juntos. Em seguida vemos um casal peculiar, ela se chama Emily (Julianne Moore), também de salto, ele é Cal (Steve Carell), de tênis surrado, pernas afastadas, a câmera sobe, e vemos claramente que se trata de um homem pouco afeito aos benefícios da elegância. Nenhum deles sabe o que quer: ele tem dúvida sobre a sobremesa que vai pedir, ela não sabe se quer continuar casada, e depois de 20 anos termina tudo abruptamente.

O filme é sobre o ressurgimento do amor, quando casais cansados da intimidade cotidiana buscam o sentimento inicial que formou tudo. O filme segue como uma história de amor romântico, e o que diferencia ao menos um pouco este exemplar de outros da comédia romântica parece ser a sugestão que nem tudo pode dar certo, uma variável que representa coisas imprevisíveis.

Depois desse rompimento surpreendente, Cal inicia um processo comicamente desastrado de luto, comentando bêbado com estranhos seus sofrimentos íntimos. Sua rotina muda quando conhece Jacob (Ryan Gosling), predador eficiente de mulheres bonitas, uma delas levemente bêbada o descreve fisicamente como "feito pelo Photoshop". Jacob, homem misterioso de muitas técnicas de conquista, ensina Cal como ficar com qualquer mulher, explicação que rende talvez as melhores piadas do filme.

A história acompanha vários personagens, todos enfrentando problemas de coração apaixonado. Temos não apenas o casal central, mas também seu filho de 13 anos, apaixonado por uma babá de 17, que ama secretamente Cal, amigo de Jacob, que conhece e se apaixona para sua própria surpresa por uma mulher que se revela fundamental na vida de Cal. Tudo revelado numa cena orquestrada para a confusão, para o exagero de reações comicamente raivosas.

É um filme de situações adultas, tratando desilusões com bom humor. A melhor cena do filme parece ser um mix desses temas, em que nada dá certo e noites bêbadas têm consequências claras. Tudo termina no que é habitual a comédias românticas, com a sensação amarga que poderia ser diferente.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A volta do (mesmo) "Rei Leão"

Hugo Viana



Talvez tão interessante quanto descobrir filmes inéditos no cinema seja a oportunidade de ver novamente obras do passado, revisar sensações e lembranças que certos trabalhos causaram anos atrás. "Rei Leão" (The Lion King), lançado originalmente há 17 anos, em 1994, volta amanhã aos cinemas do Recife, motivado aparentemente apenas pelo avanço tecnológico do sistema de projeção, sendo exibido exatamente o mesmo filme, mas agora em 3D.

A animação narra a história de um jovem leão, Simba, filho do rei, Mufasa, e seu amadurecimento até chegar ao trono durante a vida adulta. Scar, irmão do rei, leão capeta e fisicamente débil, levemente entediado com a rotina de um reinado pacífico que não o inclui como membro decisivo, não compartilha a bondade nem tampouco a exuberância física de Mufasa, e então planeja roubar o lugar majestoso do irmão, algo de tragédia shakespeariana nesta família rixosa.

A história se desenvolve como uma jornada de Simba para assumir sua identidade real, aceitar seu papel de herói em tempos de guerra e liderar seu povo de volta à paz. No meio do caminho tudo fica um pouco mais difícil, e Simba precisa de ajuda, socorro que vem de onde menos se espera, algo que reforça a importância dos amigos nem sempre perfeitos, mensagem que de alguma forma repercute os anos 1990 e as novas gerações de adolescentes.

Depois de tantos anos o debate em torno de "Rei Leão" parece ser sobre sua permanência, essa capacidade incrível de continuar ativo na memória. Algo que pode ser verificado não apenas pela trilha sonora, adaptada para outros filmes e programas de TV ("Hakuna Matata"), e pelos personagens coadjuvantes, especialmente Timão e Pumba, agradavelmente divertidos, mas essencialmente pela marcação cultural de uma época, se mantendo como um filme que relaciona problemas humanos numa história algo tradicional de aventura.

O filme repassa mensagens sobre a transição entre infância e vida adulta, usando a trajetória de Simba como comentário geral sobre pessoas, e com isso despertando um interesse talvez universal de comunhão de valores.

Dois momentos parecem resumir bem esse espírito. No começo do filme, Simba enfrenta três hienas, e ele tenta afirmar sua majestade a partir do rugido, mas o pequeno miado que ele é capaz de fazer na infância ainda não assusta ninguém. Depois dessa pequena humilhação, cuja proporção parece naturalmente aumentada pela ingenuidade infantil, ele é salvo por seu pai, leão virtuoso e apto a resolver problemas agressivamente. Simba acompanha os passos do pai, vendo as marcas da pata dele no chão, e em seguida compara essas pegadas com sua própria pata, bastante menor, percebendo mais claramente sua pequenez.

O filme sobrevive desses pequenos instantes de elevada taxa emocional, momentos que retratam as desilusões daqueles que são jovens demais para assumir seus sonhos enormes, algo que se torna concreto com o decorrer do filme.

"Rei Leão" sugere ainda uma certa maneira turista de representar a África, de qualquer forma catálogo de imagens que pertence a outra identidade cultural, pouco filmada ou vista no cinema comercial. Curiosamente "Rei Leão" volta a entrar no circuito num período em que as animações passam aos poucos a explorar novas geografias e personagens de outras etnias, como uma princesa negra (em "A Princesa e o Sapo") e um garoto asiático como personagem central na trama (em "Up"), o que torna interessante descobrir sua recepção para outra geração de crianças.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

As lembranças de Joca Reiners Terron

Hugo Viana



O Festival Recifense de Literatura: A Letra e a Voz, que nesta nona edição tem como tema a memória, programou um debate sobre o assunto "Amnésia e Construção da Identidade", com o escritor Joca Reiners Terron. Em alguns livros de Terron o tema "memória" surge como um tipo de refúgio emocional, uma permanência defendida pela imaginação. A obra que fala mais abertamente sobre as reminiscências do passado, autobiográficas ou ficcionais, é "Curva de Rio Sujo" (Planeta, 2003), livro composto inteiramente por lembranças, pequenos textos que reproduzem sensações da infância, juventude e vida adulta. Sua publicação mais recente é "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" (Companhia das Letras, 2010), em que memória também está presente, na forma de acontecimentos que moldam a identidade de cada personagem. Nesta entrevista por e-mail, Terron falou sobre o encontro entre literatura e memória.

O tema do festival é literatura e memória. Gostaria que você comentasse a importância da memória em seu processo de escrita, se é algo que você preza como tema.
Thomas Hobbes afirmava que a memória e a imaginação são a mesma coisa, e têm nomes distintos apenas circunstancialmente. Imagine uma reunião de amigos de infância que tenham vivido um mesmo episódio: cada um terá uma lembrança diferente, "editando" aquilo que mais lhe chamou atenção. Onde a memória não alcança mais se inicia a ficção, e meu trabalho não prescinde disso.

Já que o tema é memória, gostaria que você falasse sobre suas lembranças literárias, em diferentes fases da vida: primeiros livros, o momento em que você percebeu que a literatura é um pouco mais ampla do que apenas entretenimento.
Creio que foi ao ler "Histórias Extraordinárias", de Edgar Allan Poe, aos dez anos, e também "A Ilha do Tesouro", de Stevenson, e "As Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain. Ou então o ciclo todo de "O Tempo e o Vento", de Erico Verissimo. Desde minhas primeiras leituras eu conseguia abstrair e visualizar os cenários das histórias ou então me refletir nos personagens de que mais gostava, então acho que isso me indicava que a leitura não era somente distração, e sim uma espécie de alimento mágico para a imaginação.

Sobre "Curva de Rio Sujo": é um livro autobiográfico? São memórias misturadas à ficção? É uma fronteira que lhe interessa?
É um falso livro autobiográfico. São recordações inventadas de um certo clima de um lugar que só existe na lembrança. Qualquer fronteira me interessa.

Em "Do Fundo do Poço se Vê a Lua", a memória também aparece, mas com um sentido mais narrativo, talvez menos experimental: conhecemos aos poucos os personagens, o passado deles e os fatos que os tornaram como são. Essa diferença no uso da "memória" é algo que lhe interessa?
Desde o texto de abertura de "Curva de Rio Sujo" se delineia uma preocupação com a amnésia, a imaginação e a lembrança. "Eu escrevo para esquecer", começa assim. Em "Do Fundo do Poço" se estabelece uma linha mais clara sobre como só é possível a uma pessoa se reinventar a partir do esquecimento. Qualquer procedimento criativo me interessa, mas confesso não refletir muito sobre eles. A reflexão excessiva sobre o ato criativo enquanto se cria pode matar o processo.

Ainda sobre memória, mas de outra natureza. Num post do seu blog no site da Companhia das Letras, na época do lançamento do selo Má Companhia, você fez um "amaldicionário" da literatura brasileira, comentando autores, gêneros e temas que, por motivos variados e nem sempre justos, foram catalogados como "malditos". Gostaria que você falasse sobre esse aspecto da memória: o resgate de assuntos ou autores importantes na história da literatura nacional.
Nós temos um sentido de pouca importância de nós mesmos que beira o melancólico. Existem criadores literários geniais que são esquecidos ainda em vida, e isso é muito comum de acontecer. A série à qual você se refere é apenas uma contribuição para que alguns autores fundamentais sejam lembrados. Eu gostaria muito de estendê-la e publicá-la em livro.

Lendo seus livros depois de saber seu apreço por autores "malditos", comecei a pensar nas influências no seu estilo de escrita. Gostaria que você comentasse suas memórias literárias, autores que surgem enquanto você escreve.
Não surgem. Quer dizer, surgem de um modo mais óbvio que isso aí que você propõe. Quando estou escrevendo qualquer coisa eu sempre uso a leitura de outros autores como um gatilho ou pavio para a escrita. Não se trata de influência ou cópia, mas de ler algo que te inspire a pensar.