segunda-feira, 25 de março de 2013

Bloqueio transformado em obra única


Hugo Viana


Grande temor entre cineastas e escritores, o bloqueio criativo, período em que artistas inventivos parecem incapazes de preencher uma página em branco, imaginar histórias ou compor personagens, já rendeu, para alguns nomes do entretenimento, a percepção valiosa sobre o cotidiano, transformando a estagnação em forma de notar novos e desafiadores caminhos de criação e autoconhecimento. 

Miranda July, 39 anos, cineasta e escritora norte-americana, enfrentou situação parecida. Seu primeiro longa-metragem, "Eu, você e todos nós" (2005), foi premiado no Festival de Sundance e em Cannes - Miranda conseguiu, assim, um reconhecimento valioso no mercado independente. Enquanto escrevia o roteiro de seu segundo filme, "O futuro" (2011), ela sofreu com um bloqueio criativo e de certa forma existencial. 

Nessa época, em 2009, sua vida pessoal se confundia com a de seus personagens no roteiro, Sohpie (interpretada por Miranda) e Jason (Hamish Linklater), um casal perto dos 40 anos que parece apavorado com a crescente falta de liberdade - um filme sobre fé e o pesadelo de falhar. Eles adotam um gato doente e abandonam frustrações: deixam seus empregos medíocres e se desconectam da internet, para assim se concentrar nos seus sonhos. Sophie, uma dançarina, quer coreografar um balé; Jason se oferece como voluntário, vendendo árvores de porta em porta. 

Nesse ponto, Miranda sabia como desenvolver a história de Sophie: cada vez mais fragilizada, ela se entrega ao desespero e tem um caso com um homem conservador de 50 anos. A dúvida era sobre Jason. "Eu não conseguia criar as cenas dele", escreve a autora, na introdução. 

Foi nesse período que Miranda resolveu ligar para as pessoas que colocavam produtos à venda no PennySaver, pequeno jornal de anúncios. Sua ideia era visitar esses desconhecidos e fazer perguntas como "Quais são seus planos para o futuro?", "Como passa o seu tempo?", "Qual a parte mais estranha da sua vida?", buscando não apenas inspiração para terminar o roteiro, mas também respostas para seu processo sentimental (casamento, construir família, o passado, o futuro). 

O livro reúne as conversas de Miranda com estranhos, que vendem jaquetas, girinos de rã-touro e cartões de natal artesanais; ela parece transpor as barreiras que separam o modo como são os outros, conversando sobre medos, angústias e sonhos. A unidade entre os personagens surge aos poucos: a melancólica percepção de que sonhos parecem distante demais. Michael quer dinheiro o suficiente para mudar de sexo, Primilla vende trajes étnicos para ajudar uma aldeia na Índia, Andrew quer fazer engenharia, para trabalhar com aviões e motores, Pam vende álbuns de fotografias de pessoas que ela não conhece porque acredita que elas tiveram vidas interessantes e precisam ser lembrados. 

Embora esses encontros rendam momentos incríveis, entrevistas em que conhecemos histórias autênticas e devastadoras, o que torna livro realmente especial é seu aspecto de biografia; depois de cada encontro, July associa a conversa que teve com suas próprias dúvidas, não apenas criativas mas também existenciais, sugerindo assim uma publicação que ao mesmo tempo é sobre os bastidores de seu filme e uma biografia sobre seu estado de espírito. 

HISTÓRIAS

Raymond
Enquanto conversa com uma senhora que quer vender uma mala por U$ 20, o neto dela aparece, Raymond, solteiro, que tinha acabado de se mudar para lá. Ele tem 39 anos, vende manequins e conheceu celebridades como Elizabeth Hendrickson. No quarto, Miranda encontra um manequim feminino, vestido e maquiado exatamente como a atriz. "Eu me baseei numa foto dela", diz Raymond, que emoldurou uma imagem em que está abraçado com a estrela. 

Domingo 
Irmão de Matilda, que colocou à venda bonecos de Ursinhos Carinhosos por U$ 4 e U$ 2, Domingo, perto de 45 anos, coleciona fotografias catalogadas assim: fotos de cadeias, bebês, carros de polícia, interiores de carros de delegados, belas garotas. "Nunca consegui me tornar delegado. Então construí uma fantasia em que sou juiz. Sempre troco as fotos, quando sinto necessidade de ser alguém diferente", explica Domingo. 

Joe
O único entrevistado que entrou no filme foi Joe, 81 anos, que vendia cartões de natal por U$ 1. Segundo Miranda, Joe é um "anjo obsessivo-compulsivo, trabalhando furiosamente do lado do bem". Ele conheceu sua mulher em 1948. Joe morreu pouco antes do longa ser finalizado e Miranda dedicou o livro para ele e sua mulher. No filme, Joe aconselha Jason. "Você ainda está no meio do começo", diz para o jovem, quando ele comenta que está casado há quatro anos. 


SERVIÇO
"O escolhido foi você"
Companhia das Letras, 224 páginas, R$ 52

terça-feira, 12 de março de 2013

Urgência social como tema de literatura juvenil


Hugo Viana


A realidade é aproveitada em "Trash", livro de Andy Mulligan: é a matéria principal para a construção de uma ficção levemente engajada. A ideia para a história surgiu quando o autor inglês trabalhou como professor voluntário numa comunidade pobre nas Filipinas; Mulligan atuou ainda no Brasil, Índia e Vietnam, e dessas experiências surgiu uma instigante história que envolve causas sociais, crianças abandonadas e suspense policial. 

O livro começa mais ou menos como literatura juvenil: dois amigos de 14 anos, Raphael e Gardo, vivem num lixão em Bahala (local que parece uma mistura de cidades que o autor visitou e ambientes políticos e sociais em crise), passam o dia coletando porcaria para conseguir juntar poucos dólares. Nada de extraordinário acontece nessa rotina horrível, até que em um dia qualquer Raphael encontra uma bolsa de couro com U$ 1.100 em dinheiro, uma chave e um mapa. Instrumentos que sugerem aventura, a procura por um tesouro, um grande mistério que será desvendado - referências a aspectos essenciais de uma narrativa juvenil. 

Os garotos percebem a importância dessa bolsa quando a polícia vai até o lixão procurando com truculência o conteúdo perdido. Desconfiados, Raphael e Gardo se juntam a Rato, garoto que, pelo tempo que está no lixão, parece gradualmente perder a aparência humana, com bracinhos finos e dentes proeminentes, compartilhando um espaço na sujeira com dezenas de roedores. Os três irão descobrir que ganância, política e dinheiro podem distorcer valores essenciais como respeito e dedicação social. 

Cada trecho do livro é narrado por um personagem diferente; não apenas Raphael, Gardo e Rato, mas outros personagens, alguns com pouca participação efetiva na história. Essa opção parece acelerar o ritmo da aventura ao mesmo tempo em que divide o enredo em ações diferentes, sugerindo assim pontos de vista distintos, como um thriller de suspense policial. Num enredo em que a verdade é um conceito frágil e controlado por quem detém o poder, essa perspectiva fragmentada parece intensificar a proposta da narrativa. 

Depois desse começo, o livro se torna gradualmente mais sombrio, com um enredo que tem, relacionando com a história do Brasil, uma incômoda proximidade com a ditadura, a tortura por motivos políticos e certas manobras criminosas para benefício pessoal. Mulligan já foi criticado quando, em 2010, seu livro foi lançado no exterior; alguns críticos observaram que certos trechos eram pesados, não exatamente adequados a jovens, embora o livro seja constituído através da percepção sobre a vida de adolescentes de países pobres com futuro pouco promissor.  

Durante a progressão da história, o livro enfatiza a imagem ao mesmo tempo sensível e política de três crianças numa montanha de lixo, local onde possivelmente irão viver até a velhice, comentário de Mulligan sobre a realidade inevitável de países de terceiro mundo; no entanto, um pouco pelo prazer de sonhar com outras possibilidades e outro tanto por aparentar gostar dos personagens que criou (possivelmente inspirado em crianças que conheceu), Mulligan cria um final que reverte a tensão que acompanhou o livro e sugere bondade para quem merece. 

CINEMA 

Depois de ser traduzido para 25 idiomas, o livro será adaptado para o cinema pelo diretor Stephen Daldry, o mesmo de Billy Elliot (2000) e O Leitor (2008), e as filmagens, que começam neste ano, acontecerão no Brasil. 

quinta-feira, 7 de março de 2013

O fascínio pela cultura árabe


Hugo Viana


A literatura fantástica, gênero normalmente lembrado pelo fator mais evidente, os enredos que tratam de acontecimentos que superam aspectos da realidade, tem como um dos livros mais relevantes "As mil e uma noites", obra construída a partir de contos árabes (entre eles, destaque para, por exemplo, as histórias de Aladim, Ali Babá e Simbad). Recentemente "As mil e uma noites" ganhou tradução Mamede Mustafa Jarouche, uma versão que reúne os textos em quatro volumes (Globo, 1684 páginas, R$ 159,90). A segunda edição do Congresso de Literatura Fantástica de Pernambuco convidou o tradutor para conversar sobre particularidades da tradução deste projeto e sua percepção sobre a literatura fantástica, em debate hoje (7/3), no auditório do CFCH, na UFPE, às 17h30, com mediação de Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de literatura da UFPE. 

Como é seu trabalho de tradução? Que tipo de regras você possui? 
Em tradução, não sou adepto de teorias. Considero-me mais um intuitivo, se é que posso falar assim. Minhas regras são as mais genéricas possíveis: produzir um bom texto em português, ou, para ser mais correto, um texto que, em português, equivalha esteticamente ao original. 

Especificamente sobre "As mil e uma noites": como foi seu processo de tradução? 
Com esse livro, o que me exigiu maior esforço foi a comparação, muita vez concomitante, de mais de uma versão, às vezes três ou quatro, do mesmo texto, o que provoca desgaste e tensão. Não teria sido esse o caso se a tradução fosse de um texto sem tantas variantes. Dicionários devem estar sempre à mão, companheiros inseparáveis de qualquer tradutor. No meu caso, dicionários árabe-árabe, dicionários árabe-língua estrangeira, dicionários língua-estrangeira-português, dicionários de regência verbal e nominal, dicionários analógicos e de sinônimos, dicionários português-português. As dificuldades que encontrei: manuscritos ilegíveis, trechos obscuros devido à existência de palavras, locuções e giros sintáticos não dicionarizados, além do próprio trabalho de comparação entre os manuscritos, que me consumiu as energias e os olhos! 

O tema do evento sugere a importância dessa obra para a literatura. Gostaria que falasse sobre motivos para essa relevância, os fatos tornaram esse livro tão especial e historicamente relevante. 
Talvez seja mais lícito falar na influência do imaginário orientalista do que nas "Mil e Uma Noites", uma vez que foi por meio do filtro orientalista que esse livro invadiu a cultura e o imaginário da Europa Ocidental a partir do início do século XVIII. Talvez muitas das histórias das "Mil e uma Noites", bem como de outras obras da cultura árabe, já fossem conhecidas e circulassem na Europa na Idade Média, mas então a relação era outra, inclusive com o conceito de "fantástico", que, na forma como hoje é pensado, construiu-se na modernidade e deve muito ao racionalismo. Mas existem outros motivos para a relevância das "Mil e Uma Noites". O próprio aspecto da narrativa, com seus encaixes, a narradora feminina dominando o enredo, a diversidade das histórias: todos esses elementos têm também o seu quinhão nessa relevância.  

Como conceitua a literatura fantástica? Como esse gênero se relaciona com a realidade?
Segundo o filósofo Tzvetan Todorov, o conceito de fantástico depende da relação com os conceitos de "real" e "imaginário". Tende-se hoje a pensar em literatura fantástica como aquela cujo enredo se desenvolve em um mundo, por assim dizer, sobrenatural - e isso, evidentemente, graças aos nossos conceitos de "real" e "imaginário". Na literatura moderna, um dos exemplos mais bem acabados é "Cem anos de solidão", de García Marquez, em que a recorrência de elementos fantásticos seria o reflexo mais fiel da absurda realidade sulamericana. Mas não é esse o caso de literaturas antigas - e aqui incluo as "Mil e uma noites", em que o equivalente de fantástico - as palavras árabes 'ajíb e gharíb, entre outras -, partem de outra espécie de relação com aquilo que então poderia ser caracterizado como real e imaginário.

segunda-feira, 4 de março de 2013

O grande livro doente de Roberto Bolaño


Hugo Viana


François Truffaut (1932-1984), que antes de ser cineasta era crítico de cinema, desenvolveu um conceito curioso: o "grande filme doente". Segundo Truffaut, seria uma "obra prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso, um belo roteiro infilmável, um elenco inadequado, uma filmagem envenenada pelo ódio ou ofuscada pelo amor, uma defasagem grande demais entre intenção e execução". Truffaut ainda ressaltou: "Evidentemente, essa noção só pode ser aplicada a excelentes diretores". 

Com a devida adaptação, essa ideia de "obra doente" parece caber em "As agruras do verdadeiro tira", publicação póstuma do excelente escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003). O livro começou a ser escrito no fim dos anos 1980 e, até a morte do autor, não tinha sido concluído - os editores, então, se basearam em anotações encontradas em arquivos no computador de Bolaño e páginas datilografadas. A edição brasileira notifica que alguns capítulos (aproximadamente a metade) foram revisados por Bolaño e possivelmente estão em sua versão final. 

O livro conta a história de Amalfitano, professor de literatura latino-americana que aos 50 anos descobre que é homossexual. A universidade de Barcelona percebe que ele se envolveu com alunos e, para evitar constrangimentos públicos, faz uma proposta de demissão sigilosa. A única universidade que o aceita é em Santa Tereza, violenta cidade no México. Lá, o protagonista é rodeado por lembranças de seu amante - um jovem escritor -, um novo envolvimento romântico (um pintor que falsifica obras clássicas), e uma atmosfera soturna de mistério. 

A certa altura Bolaño cita frases de um livro (entre as várias citações a textos e escritores), um trecho que parece indicar sua proposta literária: "Sua identidade é o mistério / e nesse mistério / se encontra a porta de toda maravilha". Assim como "Estrela distante" e "Monsieur Pain", Bolaño cria enredos em que o mistério e um certo senso de absurdo são ferramentas para maravilhar o leitor, como se o ato criativo fosse completado apenas pela imaginação sem limites e por diversas possibilidades de interpretação de quem lê. 

Neste livro, no entanto, o conceito "obra doente" parece existir; diferente de outras publicações, a união entre mistério, citações literárias e conexões entre pequenos fatos sem ligações aparentes - marcas recorrentes de estilo de Bolaño -, parecem gerar um estado confuso, a fragmentação excessiva, como se os capítulos estivessem fora de sincronia. Talvez por ser uma obra póstuma e que ainda seria editada, a sensação é que os trechos foram forçosamente alinhados, gerando momentos de grande interesse e desenvolvimento psicológico e outros que parecem movidos pela vontade de exercitar o virtuosismo literário. 

Em nota encontrada em seus arquivos, Bolaño explicou que com este livro pretendia delegar ao leitor o papel de "verdadeiro tira", "que deve dar sentido às pistas com que se depara". É uma proposta que, na obra, parece validar o que sugere de negativo e preguiçoso: uma certa tendência ao vazio, a criação de algo exótico e ligeiramente oco, e esperar que a outra parte, o leitor, crie seu próprio sentido, sem  no entanto que o escritor forneça a base necessária. 

SERVIÇO

"As agruras do verdadeiro tira"
Companhia das Letras, 320 páginas, R$ 44,50