quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Em busca de uma identidade


Hugo Viana


Em seu novo livro, "Barba ensopada de sangue", o escritor paulista Daniel Galera parece amadurecer temas presentes em sua obra pregressa: amores desfeitos, famílias em desacordo, personagens nos limites de uma crise existencial - uma espécie de antologia de um mal estar contemporâneo influenciado pela cultura pop. No enredo, o protagonista procura notícias sobre a misteriosa morte do avô, décadas antes, em Garopaba, ao mesmo tempo em que lida com o suicídio do pai. Aos poucos o livro se transforma numa espécie existencial de romance policial, como se Daniel investigasse as evidências de um crime não pelo interesse por respostas, mas pela necessidade de encontrar ordem ou razão nos fatos. O protagonista, um professor de educação física, tem uma condição neurológica peculiar: não é capaz de lembrar de rostos das pessoas que conhece, não apenas amigos e familiares, mas também ele mesmo (atrás de suas fotos ele anota: "EU"), o que sugere o enredo também como uma simbólica busca por identidade. É um livro que se destaca por elementos tradicionais da literatura: história que envolve o leitor e diálogos que ampliam o panorama emocional dos personagens. Nesta entrevista, o autor explica seu processo de escrita e a notoriedade internacional depois da Granta. 

O primeiro capítulo é uma conversa entre pai e filho, um diálogo forte em que muito é explicado e mais ainda sugerido. Gostaria que falasse sobre esse primeiro trecho e se essa versão (que foi enviada à Granta) sofreu alterações. 
Foi resultado de quase um ano e meio de anotações mentais e rabiscos em caderninhos. O objetivo era desenvolver a figura do pai do protagonista, que sumiria depois na narrativa, e ao mesmo tempo colocar os trilhos para a jornada do personagem, estabelecendo a obsessão com a figura do avô e seu destino obscuro. Escrevi o capítulo em 48h, em Garopaba, algumas semanas antes de ir embora da cidade, e o texto já saiu praticamente na forma final. Eu já tinha quase todo o livro planejado quando escrevi essa abertura. Fiz algumas alterações ao longo da escrita, e uma revisão mais séria antes de enviar à Granta. Quase nada mudou entre a versão que saiu na revista e a que está no romance.

Os diálogos parecem especialmente eloquentes na capacidade de sugerir sentimentos e o perfil dos personagens. Como você trabalha os diálogos?
Minhas diretrizes para escrever diálogos: 1) confiar no meu "ouvido literário" e transcrever fielmente as falas que funcionam na minha imaginação; 2) tentar escrever como as pessoas realmente falam, mas tendo em mente que uma transposição direta da fala coloquial nem sempre soa convincente. Por escrito, é preciso seguir as regras peculiares da leitura; 3) Diálogos ricos precisam alternar entre o explícito e o insinuado, entre o dito e não dito, entre o grosseiro e o elevado, entre o monossílabo seco e o monólogo descontrolado; 4) Nunca usar o diálogo como muleta ou ênfase da narração, e sim como um complemento dinâmico.

O protagonista investiga a misteriosa morte do avô. Nessa busca você parece transformar num tipo criativo de romance policial. Como foi construir novas possibilidades ao gênero? 
De fato, eu pretendia usar elementos e o clima dos romances policiais e de mistério, mas sem me preocupar em seguir rigorosamente as convenções desses gêneros. A investigação policial em si é frouxa e o mistério que está no centro da história não é propriamente resolvido. As versões sobre o assassinato nunca são como peças que se encaixam, elas vão se sobrepondo de forma difusa, se misturando a mitos e superstições. Uma das ideias do livro é que não há versões definitivas para a realidade, para a identidade das pessoas, para o passado. São narrativas sempre em progresso, às quais atribuímos variados graus de crença.

O livro parece especialmente interessante em algo que permanece pouco visto em autores contemporâneos: o prazer por contar histórias, envolver o leitor através do enredo. Seu interesse na literatura está mais ligado a uma noção clássica do que experimental? 
Como leitor, tenho uma certa preferência por uma literatura mais focada no enredo, e como escritor sou praticamente limitado a essa abordagem. Mas também gosto da literatura centrada na exploração da linguagem, do intextexto, da metaficção. No fundo, os bons livros precisam triunfar nas duas medidas, no enredo e na linguagem. Um livro centrado em enredo precisa demonstrar um trabalho cuidadoso na linguagem para ser envolvente, e a literatura experimental precisa de alguma espécie de fio condutor narrativo para não perder o leitor. Existe algo precioso no enredo, algo que não se encontra em meios que predominam agora, como a televisão, os games e as redes sociais. Se a literatura for competir nos termos desses concorrentes, está perdida. 

No enredo, alguns trechos parecem testemunhos de experiências vividas, como se a inspiração surgisse do seu contato com a realidade. Existe alguma separação entre a imaginação e a literatura que vem do real na sua escrita?
O texto ficcional em si não é realidade nem imaginação, é uma invenção alicerçada nessas duas bases. Encaro meu trabalho desse ponto de vista. Não hesito em usar a experiência pessoal ou narrada por terceiros na composição da história, mas faço uso totalmente livre desses elementos e os combino com a fabulação sem me preocupar demais com a distinção dessas esferas. Esse é o ponto de vista do trabalho. De um ponto de vista mais distanciado, é claro que há uma separação entre vida e literatura, entre realidade e imaginação. No fundo tudo são narrativas, mas para fins práticos, a distinção entre vida real e ficção é essencial. Não me confundo com meus personagens e coloco uma separação clara entre a ficção dos meus livros e minha vida particular.

Você faz parte de um grupo de autores jovens que vinham recebendo elogios, e agora, com a Granta, iniciam carreira no exterior. O que diria sobre esse momento da literatura nacional, e que possíveis repercussões prevê com essa circulação internacional?
Viajei um pouco nos últimos meses para divulgar a Granta e o meu novo livro, e fiquei surpreso com a influência da revista no exterior. Nos EUA, Inglaterra e em outros países, o pessoal presta muita atenção. É claro que a seleção da Granta é somente um recorte entre muitos possíveis, mas acredito que a edição vai ser importante para a visibilidade da literatura brasileira no exterior. O momento é muito animador. Com a aproximação da feira de Frankfurt de 2013, que terá o Brasil como país homenageado, as editoras estrangeiras estão procurando saber mais sobre nossa cena contemporânea e tentando transcender os estereótipos ultrapassados que são associados à nossa literatura. 

"Barba ensopada de sangue"
Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 39,50

Top 10 2012

Hugo Viana

Fim do ano chegando e mais uma mania: listas. Hoje escrevo sobre dez livros particularmente bons de 2012, mas é importante ressaltar que estas são opiniões pessoais e abertas para debates sobre livros que eu li, parcela bastante pequena em relação ao grande volume de lançamentos do ano. 

10. Cães heróis

Os livros do mexicano Mario Bellatin envolvem uma estranha mistura entre religião, sexo e fé - espécie de grito a favor dos excluídos. Em "Cães heróis", o autor fala sobre um "homem imóvel" que mora com a mãe e a irmã, que passam horas catalogando sacolas vazias (?). Esse é o mote para uma misteriosa (e fascinante) história de sugestão política e indefinição moral do atual estado da América Latina. 

9. Céu dos suicidas

O livro surgiu depois de um processo de luto de Ricardo Lísias. Um amigo do autor tirou a própria vida, e Ricardo lidou com a morte através da literatura, escrevendo sobre perder alguém querido, o desejo de descanso para aqueles movidos pela ternura mas que encontram tragicamente o fim. O protagonista se chama Ricardo Lísias, escolha que reforça uma jornada biográfica sobre fé, culpa e amor. 

8. Bonsai

História de amor jovem, do tipo garoto conhece garota e se apaixona como nunca antes. Já na primeira página o autor avisa que ela morreu e ele terminou triste e sozinho. O nome "bonsai" parece sugerir a pretensão do chileno Alejandro Zambra: um romance pequeno, idealmente cortado, como se as páginas fossem todas escuras e o trabalho do escritor fosse na verdade apagar em busca de um enredo. 

7. Barba ensopada de sangue

Assim como em livros anteriores, Daniel Galera escreve sobre personagens nos limites da crise, uma espécie de antologia de um mal estar contemporâneo influenciado pela cultura pop. No enredo, o protagonista procura notícias sobre a misteriosa morte do avô, décadas antes, ao mesmo tempo em que lida com o suicídio do pai. Aos poucos o livro se transforma numa espécie existencial de romance policial. 

6. patrimônio

Em novembro Philip Roth anunciou que não irá escrever mais livros. Roth se aposentou depois de mais de 30 romances, mantendo uma unidade de estilo. Nos últimos anos sua literatura parecia procurar flagrar o tempo, entender a memória, as mudanças físicas e emocionais. Um pouco disso tudo está em "Patrimônio", dura história real em que Roth acompanha os últimos dias de seu pai. Difícil ler sem gerar muitas lágrimas. 


5. Antiquários

"Antiquários" é um livro de vampiros que em momento algum traz a palavra "vampiro". O autor argentino Pablo de Santis usa a condição do vampirismo, a necessidade de sangue para manter a consciência, como uma espécie de alegoria para pessoas que se apegam ao tempo, à memória do passado e passam anos juntando peças para formar coleções que apenas ressaltam a ausência de algo essencial. Contagiante exemplar do gênero fantástico. 

4. Crônica de um vendedor de sangue

O chinês Yu Hua escreveu a história da família Xu, alguns altos e em geral muitos baixos, pequenas situações que sugerem a dificuldade de permanecer unido quando as decepções se acumulam. Hua tem bom humor, faz observações singelas sobre o comportamento humano, relata o desastre como um tipo delicado de comédia da vida privada, e ainda revisa aspectos da história de trabalhadores da China, que décadas atrás vendiam sangue para pagar contas. 

3. Nihonjin

Imigrantes japoneses chegam ao Brasil guiados pelo desejo de juntar dinheiro para voltar ao Japão e abrir negócios próprios, mas aqui conseguem apenas o suficiente para sobreviver. O livro transcende questões panfletárias: é um testemunho sensível sobre choque cultural, manter tradições e criar raízes. O livro de Oscar Nakasato ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance cercado por polêmicas, mas é uma das grandes novidades no mercado nacional. 

2. País sem chapéu

Na verdade "País sem chapéu" foi lançado em 2011 e está incluído nesta lista por capricho. Dany Laferrière, 59 anos, é haitiano, mas na década de 1970 foi para o Canadá, fugindo da ditadura de Duvalier. Este livro narra o regresso do autor ao Haiti, 20 anos depois, um incrível relato quase biográfico sobre tradição, herança cultural, retorno, família e política, usando a morte como sintoma ao mesmo tempo fantástico e real de um país em crise. 

1. O filho de mil homens

Valter Hugo Mãe é um escritor humanista; em seus livros existe um tipo sincero de ternura mesmo quando trata de sentimentos sombrios. Nesta obra, o autor narra a história de pessoas que formam laços que embora não sejam oficiais parecem tão sagrados quanto os que ligam uma família tradicional. Ao mesmo tempo em que procuram conforto esses personagens são enxotados a cada página por uma turba que sente raiva por eles exercerem de forma inofensiva exatamente aquilo que os torna humanos. São colocados à margem pelos vizinhos por serem homens maricas ou mulheres enjeitadas, mas convocados por Valter Hugo com um tipo raro de delicadeza. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A necessidade de um posicionamento crítico


Hugo Viana


No meio literário, polêmicas, bobas ou ideologicamente complexas, parecem sugerir a necessidade de refletir sobre os diferentes setores do mercado. A controvérsia mais recente foi a premiação da 54ª edição do Jabuti, em que o Jurado C (o crítico literário Rodrigo Gurgel) deu notas baixas para os principais concorrentes na categoria melhor romance, como Ana Maria Machado (entre 0 e 1,5), e elevadas para o estreante Oscar Nakasato (estratégia possível graças a mudanças nas regras do Jabuti: até o ano passado a nota mínima era 8). A atitude de Rodrigo gerou discussões sobre a crítica literária, a relevância de festivais, a legitimação de prêmios. De 18 de outubro, quando foi revelado o resultado do Jabuti, até 28 de novembro, dia em que foi oficialmente anunciada a identidade do Jurado C (a Folha de S. Paulo antecipou a informação no começo de novembro), Rodrigo não podia se pronunciar, por questões éticas de contrato, sobre os ataques que recebeu; leitores, escritores e editores questionaram seus métodos de análise e sugeriram, com certa desconfiança, que Gurgel quis destacar autores que ele gosta e criticar por rebeldia escritores de prestígio. Nesta entrevista Rodrigo explica sua noção de crítica literária e sua participação no Jabuti. 

Durante parte de outubro e novembro sua participação no Jabuti foi exaustivamente comentada, e você, no entanto, não podia defender suas perspectivas. Gostaria de deixar este espaço livre para você comentar qualquer aspecto que sinta necessidade particular de falar.
Obrigado. As críticas agressivas, sarcásticas ou descabidas que recebi fizeram-me lembrar do grande crítico inglês Samuel Johnson. Ele dizia: “É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter”.  

Como é seu método de análise literária? Você possui regras de conduta como crítico que são testadas ou cada obra sugere uma maneira particular de apreciação?

O romance é, por excelência, o gênero para onde convergem todas as possibilidades da criação literária. Aliás, a literatura é a arte do possível, no sentido de concebível. Tudo o que existe ou pode existir cabe nesse universo. Assim, o crítico deve estar aberto a diferentes leituras. Quando inicio um livro, procuro estar livre de ideias preconcebidas. Quero que a obra fale, dialogue comigo. Mas é preciso que ela seja uma estrutura coerente, com vida própria. É preciso que a obra responda a todas as questões que ela mesma se coloca; e deve fazê-lo com tal perfeição que, quando chegamos à última página, temos certeza de que o autor jamais existiu – e que a obra é uma espécie de geração espontânea.   

De acordo com seus valores de análise, poderia explicar as notas do jabuti, o zero de Ana Maria Machado e o 10 de Nakasato? 
Minhas notas nascem de uma leitura fria e imparcial desses romances. "Infâmia", de Ana Maria Machado, é um romance de propaganda ideológica. A autora tem algumas teses que ela pretende defender, comprovar a qualquer preço. Para fazer isso, torna o enredo esquemático e cria personagens sem dúvidas, que, durante todo o livro, ficam repetindo os mesmos julgamentos políticos e históricos. A narrativa possui um didatismo escancarado - e o discurso indireto livre, recurso fartamente utilizado no romance, não consegue tornar a autora invisível. Além disso, há várias cenas inverossímeis. É um romance proselitista, nada mais. Quanto a "Nihonjin", de Oscar Nakasato, que mereceu nota dez, é uma narrativa que trata da imigração japonesa no Brasil, transformando dramas individuais ou familiares em sínteses dos conflitos humanos. O autor trabalha com diferentes pontos de vista, com quebras de continuidade e distintos eixos de tempo. Nakasato quer apenas contar uma história - e não fazer panfletarismo. As personagens, principalmente as femininas, são construídas de forma admirável. O autor sabe trabalhar os aspectos líricos sem desprezar a dramaticidade. E domina muito bem a linguagem. 

Em seu livro "Muita retórica - Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha)" você promove uma espécie de revisão da história da literatura nacional, dos cânones estabelecidos. Acha que autores do passado são geralmente tratados com excessiva reverência? 
Meu livro é fruto do projeto que desenvolvo, desde 2010, no jornal Rascunho. Um projeto cujo objetivo é reler os principais autores da prosa nacional, começando pelos românticos e chegando aos dias atuais. Nesse primeiro volume, publiquei os ensaios que tratam dos prosadores do século XIX. Respondendo à sua pergunta, sim, há excessiva reverência em relação a certos autores. Aliás, não canso de me surpreender com o fato de algumas avaliações críticas se repetirem ao longo de décadas. É curioso que ninguém diga, por exemplo, o quanto Raul Pompeia pode ser pernóstico ou que Adolfo Caminha escreve realmente muito mal. Tenho a impressão de que parcela da crítica pretendeu criar um cânone brasileiro à força. Foram escolhendo os autores que pareciam menos piores e passaram a enaltecê-los de maneira exagerada, a fim de satisfazer uma necessidade meramente nacionalista. Ao agir dessa forma, referendaram uma literatura na qual, dentre outros defeitos, a eloquência prepondera. E ainda hoje encontramos esse problema: o autor que se enamora do seu próprio discurso e não percebe o abismo que separa a literatura da eloquência.

O que diria sobre o momento atual da crítica literária? Não apenas nos jornais, mas também na internet e na academia. 
A hegemonia do estruturalismo e do desconstrucionismo tem causado grandes dificuldades ao sistema literário nacional. Em primeiro lugar, esses estudiosos usam um jargão acadêmico hermético, incompreensível ao leitor comum. Esqueceram-se de que a crítica literária é, antes de tudo, um instrumento a serviço do homem – ou seja, acham que a crítica tem um fim em si mesma. Tal comportamento afasta os leitores. Em segundo lugar, por valorizarem excessivamente a forma, a linguagem, deixaram de acreditar que a obra literária deve dialogar com o mundo. Para eles, a obra é autossuficiente. Ora, uma literatura que dialoga apenas consigo mesma acaba se transformando num eterno exercício artificial de vanguardismo, nada mais. Esses dois problemas levam a um terceiro: se a obra não deve dialogar com a realidade e se o que realmente importa são os malabarismos linguísticos que o autor inventa, então não há necessidade de julgamento – e a crítica torna-se, assim, apenas um exercício de narcisismo. Dessa forma, chegamos ao quarto e último problema: se não há necessidade de julgamento, vivemos numa espécie de permanente bom-mocismo, de hipocrisia generalizada, em que o crítico se restringe a passar a mão na cabeça dos escritores e tratar todos da mesma forma, inclusive os medíocres. Há críticos, evidentemente, que fogem desse padrão de comportamento, mas formam a minoria. Com relação à segunda parte da sua pergunta, não me estenderei. Digo apenas que um crítico como Álvaro Lins faz muita falta nos dias de hoje.     

Ao dar uma nota zero, num evento importante, a uma autora prestigiada, você motivou revolta de autores, leitores e editores. Acha que o meio literário nacional suporta um posicionamento crítico de ideologia firme?
Minha resposta acima, sobre a crítica atual, explica um pouco as patologias que afligem o nosso sistema literário. Compreendo que um editor defenda seus escritores dos críticos severos. Mais que compreensível, é um belo gesto. Também compreendo os autores que desejam ser sempre bem avaliados, pois faz parte da nossa natureza almejar só elogios. Entretanto, não se pode exigir que os críticos não valorizem os escritores que consideram bons. Ou que não deem zero numa votação em que o zero era uma das notas possíveis. Análises duras, firmes, fazem parte de qualquer sistema literário sadio.

Você já foi jurado no Jabuti em outras ocasiões, além da experiência como crítico. Poderia, através do que você  leu, fazer uma avaliação sobre a literatura contemporânea brasileira? 
Apesar de estarmos impregnados da cultura contemporânea, relativista, materialista, de um niilismo que muitas vezes chega a ser atroz, alguns escritores têm, pelo menos, abandonado o vício de recriar um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido por eles e meia dúzia de amigos. Há ótimos escritores, dispostos a simplesmente contar boas histórias, corajosos a ponto de desobedecer o que ensinam os departamentos de Letras das universidades, abandonar o pedantismo e, por que não?, escrever inclusive com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. Logo, logo eles começarão a perceber que a literatura não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Revisão política e afetiva de Pernambuco


Hugo Viana


José Luiz Passos, 41 anos, nasceu em Catende, morou em Pernambuco e atualmente reside nos Estado Unidos, onde trabalha como professor de literatura na Universidade da Califórnia (UCLA). Essa condição de trânsito, mudanças geográficas (e o consequente amadurecimento emocional) integra seu novo romance, o segundo, "O sonâmbulo amador", que será lançado hoje (com presença do autor), no auditório da Livraria Cultura do Paço Alfândega, em evento às 19h. 

O livro é dividido em quatro partes, segmentos que possuem formas e estilos distintos. O foco da narrativa é o protagonista: Jurandir, pequeno funcionário da indústria têxtil pernambucana. "Ele é um homem que, na iminência de se aposentar, é forçado a prestar mais atenção aos seus sonhos e rever suas amizades", explica José Luiz. "Os cadernos de Jurandir reúnem suas memórias, suas atividades no presente e notas evocando seu passado. A estrutura da história, que se passa no final dos anos 1960, é consequência da situação do protagonista, oscilando entre presente e passado, numa tentativa de ora esconder e ora enfrentar demônios pessoais e lembranças", comenta o autor. 

A história de Jurandir sugere notas sobre a condição social e política de Pernambuco nos anos 1960, perspectivas que alinham o personagem a um momento particular da história do Estado. No enredo, Jurandir parte de uma cidade do agreste pernambucano rumo à Capital para resolver uma questão trabalhista. "O translado do campo à cidade já frequentou muito a literatura brasileira do século XX. No meu caso, tentei dar a Jurandir, pouco a pouco, a descoberta de uma vida mais urbana e uma maior familiaridade com relação a questões políticas que ele próprio se recusava a ver", explica o autor. 

"Mas sua jornada é levada adiante quase que exclusivamente no plano das amizades, em seu sentido doméstico, erótico e coletivo. Jurandir aprende a narrar sua vida interior num contexto em que a intimidade torna-se matéria pública; ou seja, no contexto da análise em grupo e das utopias de salvação espiritual e política", aponta o autor. "A Recife e a Olinda que Jurandir testemunha são ao mesmo tempo, para ele, presentes e passadas; é matéria afetiva e também política", explica. 

Um dos aspectos interessantes do livro é a construção dos personagens; não apenas Jurandir, mas também os coadjuvantes parecem apresentar um notável conjunto de emoções. "A criação dos personagens é, na minha opinião, o aspecto mais sedutor do gênero do romance", diz o autor. "Quando o personagem se desenvolve no contato com outros, temos a progressão do enredo. Procuro desenvolver uma visão clara dos personagens que irão fazer parte dos meus textos. A partir de uma convivência imaginada, começo a compor suas histórias, que resultam na elaboração de uma pequena sociedade. O enredo é a dinâmica de amizade e tensões entre eles. Em seguida, escolho um deles como foco da narrativa e crio uma estrutura, a fim de que um narrador organize os eventos para o leitor", ressalta. 

Embora Pernambuco tenha uma tradição crescente na literatura, o espaço urbano e a geografia do Interior é marca narrativa de poucos autores com alcance nacional. "'O sonâmbulo amador' não está longe dos demais autores que retratam a região", sugere José Luiz. "A literatura feita por pernambucanos ou por autores radicados em Pernambuco é rica e variada. Exemplos de grande originalidade no tratamento da relação entre campo e cidade, entre elite e povo, estão em escritores de diferentes gerações, como Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito, Marcelino Freire e Bernardo Brayner - autores que leio com prazer", diz.

"Gosto de me dedicar a projetos longos"

Como é seu processo de escrita, sua rotina de criação literária?
Gosto de me dedicar a projetos longos. Escrevo cortando muito; tipicamente meus romances e contos saem com a metade do tamanho das suas versões originais. Levei em média cinco anos para escrever cada um dos meus dois romances. Tento escrever sempre que posso, principalmente logo após acordar ou depois do almoço. Minhas histórias começam sempre como notas à mão, em cadernetas: um diálogo, uma cena, um traço para um personagem. Depois, os nomes, um passado e, a partir daí, um drama que se desenvolve entre mais de um deles.

Você já foi selecionado para a Granta (volume 8: trabalho), que neste ano fez a primeira edição em português, com escritores que vinham sendo elogiados e agora entram no mercado estrangeiro. O que diz sobre esse momento particular da história literária nacional?
Acho o momento atual excelente. Finalmente parece haver uma maior atenção à necessidade de se apoiar traduções e divulgar dentro e fora do País a ficção contemporânea. As revistas, os suplementos e os prêmios literários têm um papel importante. As mídias sociais também. Espero que tudo isso permita uma maior profissionalização da atividade do escritor no Brasil. Mas não tenho certeza de que um único número da Granta em inglês, dedicado ao Brasil, vá influenciar a distribuição da nossa literatura lá fora. O que está havendo este ano e, possivelmente, no próximo, com a feira de Frankfurt homenageando o Brasil, é um reflexo no campo das artes da nossa posição de maior visibilidade em pautas globais. Isso não necessariamente se traduz em melhor literatura. Porém, a difusão das obras e dos autores permite, ao menos, que uma pequena parte do que se faz em português circule entre leitores de outras línguas. Vejo essa possibilidade com otimismo, mas sem grandes esperanças de que, a curto prazo, isso vá transformar radicalmente a literatura brasileira.

Você é professor de literatura da Universidade da Califórnia. Que tipo (se é que existe) de influência a carreira acadêmica possui em criação literária?
A carreira acadêmica demanda tempo e paciência; é tempo, portanto, que não pode ser usado para fazer ficção. Por outro lado, passo meus dias lendo, escrevendo, preparando aulas e corrigindo trabalhos sobre textos literários que admiro. Compartilhar essas leituras e discutir o lugar delas em nossas vidas me ajuda a ter maior clareza sobre o que quero fazer como escritor. Então, a carreira dá trabalho, mas, por outro lado, ensinar literatura é um modo de aprender a escolher os exemplos que quero seguir e, também, os que quero evitar quando tento participar naquilo que gostaria que fosse um pouco mais de mim.

SERVIÇO
O sonâmbulo amador
Alfaguara, 248 páginas, R$ 39,90

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Monstros invadem praia de Santos!


Hugo Viana

foto: Josi Vicentin 

Gustavo Duarte, 35 anos, tem um gosto peculiar pelo gênero "filme de monstro", e foi essa preferência por lagartos gigantes destruindo cidades que inspirou o cartunista a criar "Monstros!" (Companhia das Letras, 88 páginas, R$ 34,50), HQ de charme nostálgico, que narra de maneira discreta e um tanto cômica uma história sobre criaturas gigantes que invadem a cidade de Santos, em São Paulo. 

"Gosto muito de histórias de monstros, então queria fazer uma homenagem aos monstros japoneses, gigantes e bizarros, que povoaram minha infância", diz o autor. "Eu assistia a esses seriados, via as séries 'Ultraman', 'Godzlia' e 'Spectreman', além dos clássicos de terror da Universal. São programas que eu cresci gostando e admiro até hoje. Mas talvez a maior influência seja 'Indiana Jones', a sensação de aventura misturada ao horror japonês", comenta Gustavo. 

Esse interesse gerou uma obra curiosa, uma história de pouco mais de 80 páginas que apesar de ter origem na cultura japonesa e norte-americana parece especialmente interessante por introduzir tradições e humor brasileiro ao enredo. Há no trabalho de Gustavo a tentativa de transformar a paisagem normalmente vista nesse tipo épico de história, inserindo características da cultura popular nacional e o "jeitinho" brasileiro. 

"Apesar de ser uma coisa 'japonesa', são histórias que influenciaram várias pessoas e passaram a ser mundiais", diz o autor. "Quando escrevi queria que fosse a mais familiar possível, e para mim 'familiar' é Santos. Se morasse no Recife, talvez ambientasse aí, talvez fizesse com que os monstros fossem para Olinda. Mas tenho ligação afetiva com Santos", explica o cartunista, que tirou fotos da cidade como inspiração. 

A HQ reúne imagens que sugerem uma espécie de arqueologia do gênero "monstros", trabalhando com imagens reconhecíveis de filmes novos ou antigos. "Referências não são voluntárias", diz Gustavo. "Acho excelente 'Cloverfield' (2008), um filme moderno de monstro. Pode ser que algumas cenas do filme tenham servido de inspiração. Tem outras imagens icônicas, como a de um monstro saindo da água. Isso não é intencional. A gente é o que consome", comenta.

Não há diálogos em "Monstros!", a história é narrada apenas através de imagens, dando continuidade ao estilo de Gustavo, que em trabalhos anteriores - "Birds", "Taxi" e "Có" - também não usou palavras. "Quando sentei para criar pensei em como contaria a história, se teria um narrador ou diálogos. Resolvi desenhar sem nada, sem nenhum texto, como os cartuns que mais tinha gostado de fazer. Quando conversei com meu editor ele me perguntou se eu conseguiria. Você acaba ficando preocupado em segurar o leitor numa narrativa sem texto. Mas estou achando minha linguagem, meu caminho, e aprendendo com isso", diz.

O trabalho com histórias em quadrinhos ainda é visto com algum preconceito, como se fosse um meio de expressão menor no meio artístico. Ao mesmo tempo, dentro dos gêneros, Gustavo trabalha no terreno de "histórias de monstros", forma narrativa vista como prazer gorduroso e pouco reflexivo. "Preconceito na minha vida nunca funcionou direito", diz o autor. "Eu acho que o quadrinho bem feito é equivalente a um ótimo livro bem feito. Sou cartunista há 15 anos, ilustrei textos de pessoas que acho que escrevem mal ao mesmo tempo em que trabalhei com desenhistas que considero geniais. Não é questão de que um seja melhor do que o outro, tem coisas boas e ruins de cada lado. Fazer bem feito é difícil, qualquer que seja o gênero", opina o autor. 

SERVIÇO
"Monstros!", de Gustavo Duarte
Quadrinhos na Cia
Preço médio: R$ 34,50

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O macanudismo de Ricardo Liniers


Hugo Viana


Foto: Allan Torres / Folha de Pernambuco

O desenhista argentino Ricardo Liniers, 39 anos, é um pouco como seus personagens, criações que misturam lirismo humorado com uma certa consciência melancólica da existência. Liniers ganhou uma exposição na Caixa Cultural, "Macanudismo", uma interessante antologia de sua obra, que encerrou domingo, e na sexta-feira veio ao Recife lançar o livro "Macanudo #5", que reúne tirinhas que foram publicadas originalmente em jornais argentinos. 

"Meu interesse por desenho começou quando garoto", lembra Liniers. "Eu gostava de Mafalda, e depois sempre encontrei histórias em quadrinhos de acordo com a minha idade. Na infância eu lia Asterix, na adolescência gostava de Robert Crumb, quando adulto passei a conhecer Art Spiegelman", detalha o autor, listando uma espécie de genealogia de sua influência artística - todos esses autores são, em diferentes níveis, presenças fundamentais em sua obra. 

A transição entre esse primeiro momento de leitor aprendiz para o grupo de criadores aconteceu quando Liniers superou expectativas familiares, mudou o rumo da carreira profissional e entrou no jornalismo como ilustrador. "Consegui ser desenhista mesmo com o código genético de advogado", explica Liniers. "Meu pai era advogado e eu cheguei a estudar direito. Mas quando eu tinha 20 e poucos anos conheci outros com a mesma 'doença' que eu, desenhistas, e eles me ajudaram", comenta. 

"Quem me deu confiança nessa época foi Maitena [Burundarena, desenhista do jornal Página 12]. Ela me convidou para trabalhar no 'Página 12', dizendo: 'Você é um gênio', mas eu sequer sabia se conseguiria fazer uma tirinha diária", revela. "Quando comecei no Página 12 eu criei a tira Bon Jour, em que desenhava as ideias mais bizarras e freaks para chamar a atenção", lembra o autor, comentando sua primeira série de envolvente humor nonsense. 

Liniers parece ter entrado no mercado num tempo particularmente especial da cultura pop, um momento fértil em que o compartilhamento de dados suprime facilmente largas distâncias geográficas e políticas. "Tive muita sorte em aparecer justo agora", diz Liniers. "Um editor uma vez me disse que para um desenhista ser publicado deve passar primeiro pelo jornal. Mas com a internet isso mudou, a internet cruza fronteiras. Muita gente usa meus desenhos, em redes sociais e páginas pessoais. Sou a favor do compartilhamento gratuito", ressalta. 

Os quadrinhos de Liniers representam uma espécie triste de alegria, comentários universais sobre os modos da vida contemporânea e a existência um tanto acelerada da sociedade. "Meus desenhos são muito pessoais. Quando comecei não achava que as pessoas teriam paciência para ler. Mas os livros foram sendo publicados em outros países, na Itália, no Brasil, na República Tcheca. Não esperava ter tantos leitores. Eu me belisco todos os dias. Acho que tem gente estranha em todos os lugares", brinca. 

Liniers também revela um prazer especial por autores brasileiros, ilustradores de traço pessoal e reconhecível. "Fábio Zimbres, um desenhista de Porto Alegre, é o autor mais livre que conheço", opina. "Gosto muito do trabalho de Angeli e Laerte. Me dá raiva não existir livros deles na Argentina. Nós temos mais visibilidade na Europa que nos países vizinhos. Ao mesmo tempo, há como um movimento de comics na América Latina que os europeus ainda não conhecem. Eu gostaria de editar esses trabalhos em países latino-americanos", ressalta. 

Hoje em dia Liniers experimenta um projeto mais ousado: se juntou ao escritor mexicano Mario Bellatin para uma proposta em que imagens e palavras se juntam de maneira única. "Ele está adaptando os textos dele aos desenhos, e eu também estou me adaptando ao estilo dele. Acho que há 30 anos isso não seria publicável", comenta. 

INFÂNCIA

"Quando eu vi Guerra nas Estrelas pela primeira vez eu pensei: eu tenho que ter isso em casa. A maneira que encontrei foi fazendo desenhos do filme, versões muito estranhas que criava com meus amigos", comenta o desenhista, que lista, entre outros filmes importantes, "Rocky" e "Tubarão", "porque tinham sangue" 

JORNAL

"Quando comecei as tirinhas 'Macanudo' a Argentina passava por um momento intenso de crise, todas as páginas do jornal eram pessimistas, tivemos cinco presidentes em uma semana. Na última página tinha 'Macanudo'. No Brasil significa algo como 'supimpa', e em Pernambuco acho que significa 'arretado'. É uma palavra meio fora de moda e também irônica, pelo momento particular da Argentina"

ESTILO

"Gosto de um tipo de humor de contracorrente, que tenha tristeza, que fique entre rir e chorar ao mesmo tempo. Um pouco como Charles Chaplin" 

TRADUÇÃO

"Em Praga a personagem Henriqueta se chama Indrishka. Eu perguntei a tradutora se era esse o correspondente, e ela me disse que não, que deu esse nome porque era o de alguém da família dela. Os tchecos são gente muito interessante"

MERCADO

"As HQs estão num momento incrível. Nos anos 1960 e 70 você só podia fazer humor e aventuras de super heróis. Depois começou um processo de liberação. No começo era tudo muito adolescente, depois os autores começaram a amadurecer alguns gêneros, até que hoje finalmente os desenhistas podem fazer o que querem. A HQ se aproximou da literatura. Ninguém diria a Virginia Wolf sobre o que ela devia escrever. Hoje acontece isso com desenhistas"

SERVIÇO

"Macanudo #5" (Zarabatana Books, 96 páginas, R$ 39)