terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Alegorias lúdicas sobre sentimentos universais

As grandes narrativas infantis consideradas clássicas, os textos que parecem crescer com o tempo e se tornam referências para diferentes gerações, apresentam não apenas um enredo favorável para o amadurecimento emocional de crianças; destacam-se, também, pela criação de vínculos afetivos com leitores adultos. É geralmente através de alegorias, histórias que podem ser interpretadas de maneiras diferentes de acordo com a idade e bagagem cultural do leitor, que clássicos se tornam memoráveis. 

A Cosac Naify lança neste mês três narrativas cuja possibilidade de compreensão é vasta. "A parte que falta encontra o Grande O", de Shel Silverstein (1930-1999) - sequência de "A parte que falta" -, lançado originalmente em 1981, parece especial pela maneira como sugere emoções reconhecíveis. O primeiro livro, publicado ano passado pela editora, é um relato sobre um ser redondo, como um Pac Man, em busca de algo que complete sua existência. Neste, a "parte que falta" do primeiro livro é a protagonista - um triângulo que procura se encaixar em algum círculo e, assim, tornar-se completa. 

Uma leitura possível é a partir das dificuldades nos relacionamentos, a busca eterna por um parceiro(a) que nunca parece corresponder a expectativas, gerando, assim, aprendizado. Silverstein cria, com sensibilidade, situações em que podemos reconhecer o processo gradual de aceitar o outro e, finalmente, amadurecer. A metáfora afetiva - e, em alguns momentos, sexual - é delicada, encarada com humor adulto. Esse parece o grande mérito do autor norte-americano: a maneira como cria situações que podem ser interpretadas de formas diferentes. 

Outros lançamentos da Cosac Naify indicam esse mesmo tipo de sensibilidade editorial. Em "O carrinho da Madame Miséria", da francesa Lise Mélinand, vemos desenhos que parecem representações impressionistas da relação de uma senhora moradora de rua com a cidade. Dependendo da intensidade da emoção, a autora transforma a realidade, coloca a Madame Miséria como uma gigante enfurecida ou uma mulher afetuosa. É uma narrativa que parece educar o olhar para perceber as gradações de cinza da região urbana, observar pessoas geralmente ignoradas pela lei. 

Já "Pelo nariz", terceira parceria entre Arthur Nestrovski, que escreveu o texto, e Marcelo Cipis, responsável pelas ilustrações (os outros livros foram "Barulho, barulhinho, barulhão" e "Cores das cores"), apresenta uma história guiada pelo olfato. Ao apresentar imagens que os leitores lembram o cheiro, como grama molhada, pão de queijo ou livro impresso, e outras que habitam apenas a imaginação e um sentido de aventura, como o odor do Abominável Homem das Neves, o autor parece fazer uma espécie de inventário da infância, catalogando as fragrâncias no instante em que são reconhecidas pela primeira vez. Trata-se de uma representação visual do processo de descoberta associado à consciência infanto-juvenil. 

Livros 
"A a Parte que Falta encontra o Grande O" (112 páginas, R$ 45), de Shel Silverstein 
"O carrinho da Madame Miséria" (32 páginas, R$ 35), de Lise Mélinand
"Pelo nariz" (48 páginas, R$ 39,90), de Arthur Nestrovski e Marcelo Cipis

domingo, 19 de janeiro de 2014

A literatura pernambucana que resiste fora do eixo

Hugo Viana

    Bruno Liberal

A atual produção literária de Pernambuco vem recebendo elogios, crescendo com o esforço de escritores que desenvolvem projetos pessoais; ao mesmo tempo, autores que moram no Interior do Estado, mesmo apresentando vigor criativo, não recebem reconhecimento equivalente. Essa situação parece sugerir a existência de fronteiras que dificultam o acesso a autores que gradualmente constroem uma trajetória relevante. 

Uma das revelações recentes é Bruno Liberal, de Petrolina, que venceu, ano passado, a primeira edição do Prêmio Pernambuco de Literatura (a segunda edição está com inscrições abertas), com o livro de contos “Olho morto amarelo”. A conquista rendeu ao escritor a certeza da publicação, pela editora Cepe, marcada para março. A vitória acabou chamando a atenção para um escritor de talento que, de outra forma, passaria despercebido. 

“O prêmio foi o mecanismo que me jogou na cena pernambucana de literatura”, comenta Bruno. “Antes disso eu era um cara com um sonho e uns textos na gaveta. Apenas. Não há dúvidas que esse tipo de premiação é muito importante para descobrir autores e também reafirmar a qualidade de escritores já consagrados. Mas o prêmio é uma visão fotográfica da realidade do concurso. O que vai fazer do livro uma obra de arte ou não são os leitores”, destaca. 

A surpresa com a revelação de um texto maduro, vindo de um município sem tradição na história literária pernambucana, parece indicar certo desconhecimento da produção contemporânea feita fora do circuito central. Políticas culturais, como o próprio Prêmio Pernambuco, ou ainda festivais e concursos, parecem assumir a importância de mapear esses autores, investigar nomes interessantes e divulgar obras com potencial. 

“A produção literária no Estado nunca se resumiu ao Recife”, destaca Wellington de Melo, escritor e coordenador de literatura da Secretaria de Cultura de Pernambuco. “O que acontece é que o olhar da mídia e de setores da academia não chega a essa produção. Parece que para serem vistos esses escritores precisam desenvolver sua carreira no Recife ou fora. Mas a literatura segue se desenvolvendo no Interior a despeito do nosso desconhecimento”, ressalta. 

O recente movimento de descoberta desses novos autores surge, em grande parte, através de projetos dedicados a examinar renovações na literatura, apresentando, em festivais, a obra de escritores que iniciam percursos autorais. “Temos polos com tradição literária, como Caruaru e Sertânia, e novos como o grupo u-Carbureto, em Garanhuns ou Silêncio Interrompido, em Goiana, os dois com proposta independente de editoração. Há também uma produção forte nas cidades irmãs Petrolina e Juazeiro. O Araripe tem uma jornada literária que ajuda a revelar nomes. Ou seja, há muito por descobrir”, diz o coordenador.


    Wellington de Melo

Autores buscam meios 
para entrar no mercado


 foto: Amanda Pietra (Nivaldo Tenório)

Eventos literários continuam sendo formas efetivas de divulgação para autores fora do Recife. “Embora alguns vejam com maus olhos, acredito que eles se tornaram imprescindíveis”, opina Mário Rodrigues, autor de Garanhuns que, ao lado dos escritores Helder Herik e Nivaldo Tenório, criou o projeto u-Carbureto. “Eventos movimentam economicamente a cadeia do livro, fornecem subsídios financeiros para o autor, além do contato com possíveis leitores”, lista Mário. 

Mesmo lançando livros desafiadores, como o recente “A invenção dos avós”, de Helder (pela u-Carbureto), que mistura formatos, usando contos, poesia e prosa na construção de um sentimento pessoal, e aparecendo em uma quantidade maior de eventos, como os projetos de literatura do Sesc, que levam debates para fora do Recife, escritores do Interior continuam enfrentando dificuldades antigas: a publicação e a distribuição. 

“Como a distribuição da Cepe é restrita, não dá para pensar em uma grande movimentação de marketing”, comenta Bruno. “Estamos desenvolvendo um site de divulgação e um booktrailer. As ações serão focadas na internet. Para alcançar mais leitores é preciso aparecer: palestras, universidades, festas literárias. Para quem não faz parte do círculo de autores que viajam o Brasil a convite de organizadores de eventos, o que resta é fazer barulho na internet”, diz. 

A distância em relação ao Recife parece sugerir que a fronteira - não apenas geográfica, mas também política e econômica -, interfere nos procedimentos do mercado editorial. “O Recife é central, pelo menos em relação a Garanhuns ou Petrolina, mas não é o centro“, avalia Nivaldo Tenório, que lançou, em 2012, “Dias de febre na cabeça”. “Escritores como Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito sabem disso e se hoje são reconhecidos é porque são bons”, diz.

O projeto que burlou a geografia 

 foto: Amanda Pietra (Helder Herik)

Projetos editoriais independentes geralmente surgem como uma espécie de resistência às regras impostas pelo mercado. A proposta u-Carbureto, de Garanhuns, tem essa essência; nasceu, inicialmente, em 2005, como um jornal de faculdade, editado por Helder Herik e Mário Rodrigues, na época estudantes, e Nivaldo Tenório. “O propósito era divulgar nossos primeiros textos e, com isso, amadurecer”, ressalta Helder. 

Aos poucos o projeto cresceu; além de apresentar textos dos três autores, surgiram contribuições que aumentaram o alcance do projeto, como dos escritores José Castello, Cristóvão Tezza, Sidney Rocha, Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito. “O jornal nos possibilitou trapacear a geografia. Como não era possível habitar o centro, trouxemos o centro até nós. Estabelecemos um diálogo e de algum modo subvertemos nossa condição de gauche”, destaca Nivaldo. 

Em2009, o u-Carbureto deixou de ser apenas um suplemento literário e se tornou um selo editorial, com a publicação de “As plantas crescem latindo”, primeiro livro de Helder. Até agora foram lançados nove obras, entre romances, contos e poesia. “Juntamos um capital inicial e começamos a publicar”, lembra Mário. “Os processos editoriais - a escrita, a preparação, a revisão ortográfica, a diagramação, o projeto gráfico, as fotos, as ilustrações -, ou dominávamos ou tínhamos conhecidos que faziam o serviço como freelancer”, detalha. 

Além de tomar conta dos meios de produção, como geralmente ocorre em editoras independentes, os integrantes da u-Carbureto enfrentam problemas antigos, a distribuição e a divulgação. “É difícil entrar nas grandes livrarias; mesmo que isso aconteça, a exposição seria rápida e irrisória. Contratar um distribuidor é inviável em virtude das baixas tiragens (em média são mil exemplares) e do preço. De modo que a distribuição fica restrita à nossa região e através de sites pessoais e/ou páginas no Facebook”, explica Mário. 

Uma característica importante do mercado em espaços com tradição literária recente é a necessidade de amadurecimento tanto do escritor quanto do leitor. “Aquela ideia ‘romântica’ de jogar tudo no papel, imprimir de qualquer jeito e ser reconhecido como gênio não passa mais pela cabeça de ninguém. Sabe-se da necessidade de leitura; sabe-se da necessidade de acompanhar o que acontece na literatura; sabe-se que a publicação não faz um escritor, mas sim o valor artístico intrínseco à obra. Portanto, o estofo intelectual, digamos assim, não é uma carência. O que falta, numa escala maior, são leitores críticos”, destaca Mário.


 foto: Amanda Pietra (Mário Rodrigues)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Em busca das mitologias da vida


O escritor carioca Alberto Mussa parece motivado pela história do Brasil, pela natureza de mitos da cultura árabe, africana e indígena, incorporando a atmosfera alegórica dessas narrativas em seu processo de escrita. A editora Record começa a relançar os livros de Mussa, com novo projeto gráfico e textos críticos. Os primeiros são "O enigma de Qaf" (2004) e "O senhor do lado esquerdo" (2011). 

A escolha desses livros para iniciar a reedição não parece aleatória; são obras que apresentam o método de escrita do autor, materializam sua proposta conceitual, reforçam a existência de um projeto literário baseado na documentação de mitos, transformando aspectos da cultura popular em criação literária, em enredos de ficção sobre a identidade de cidades, pessoas. 

"O senhor do lado esquerdo" usa estratégias do gênero policial para contar a história do assassinato do secretário da presidência da República em um prostíbulo de luxo no Rio de Janeiro, em 1913. A partir deste crime, o autor apresenta eventos excêntricos da história carioca, relatos sobre feiticeiros, índios, tesouros escondidos, criando, aos poucos, uma antologia de acontecimentos exóticos. 

Mussa escreve no limite sinuoso entre ensaio e ficção, pesquisa histórica e arranjo literário, sugerindo a dúvida sobre a natureza do enredo. A ambiguidade cresce gradualmente, provocando certa confusão sobre a origem das narrativas contadas - informações históricas ou simulações autorais? Talvez seja essa região imprecisa que torna o livro especial: o momento em que fatos se tornam lendas, quando rumores se transformam em fabulações que se misturam à própria história de uma cidade. 

"O enigma de Qaf" é um tipo de romance de aventura, a saga de um poeta-herói em busca de um poema. A obra é composta por três narrativas. Há a história do protagonista, dividida em 28 capítulos, que correspondem às letras do alfabeto árabe; entre esses segmentos, Mussa escreve trechos chamados "Parâmetros", lendas de heróis árabes, e "Excursos", textos relacionados ao enredo principal. Essa espécie de rigor estrutural não diminui o impacto da escrita e a perícia da construção progressiva de uma espécie de mistério. 

"Literatura representa 
a busca pela alteridade"

Para estes relançamentos, você releu os livros? Tem o hábito de voltar a seus textos (e modificá-los)?
Fiz uma revisão, e as modificações foram mínimas, apenas corrigi defeitos. Não tenho o hábito de reler meus textos, nem rescrevê-los. Mas quando se trata de reeditá-los, é sempre importante rever, sempre é possível melhorar, sempre tem um erro, ou uma frase que poderia ser mais clara, mais elegante.

Você escreve, na introdução de "O senhor do lado esquerdo", que "a literatura, para ser minimamente interessante, tem que ser diferente da vida". Pode desenvolver essa ideia?
Só a experiência literária, a experiência da leitura, permite que um indivíduo viva vidas que não poderia, fisicamente, viver. Literatura, para mim, representa essa busca pela alteridade. Quanto mais radicalmente buscada, melhor. Por isso, tenho pendor por narrativas históricas e fantásticas. A literatura pode ser uma máquina do tempo. A literatura pode fundar universos. Acho certa perda de tempo ler um livro e encontrar histórias já vividas por mim ou por pessoas que eu conheço.

Neste livro, além do enredo principal, há pequenas narrativas que criam uma atmosfera fantástica em torno da história do Rio de Janeiro. Qual seu interesse ao reunir esses casos? 
O objetivo de todas as histórias paralelas é exatamente esse: o de criar um clima meio fantástico, meio lendário, porque a matéria-prima da minha ficção é a mitologia. Todos os meus livros têm um fundamento mítico. É através dessa perspectiva que eu vejo a história, as cidades, as pessoas, a vida em geral. Existe um outro motivo para as histórias paralelas: na verdade, faz parte do meu próprio processo de criação, gosto de eleger um tema, um princípio ou um problema e explorar variações. Um leitor atento percebe que o fundo comum das histórias de crime neste livro é o mesmo.

O texto mistura realidade e ficção, ensaio histórico e narrativa policial. Que tipo de sensação buscava provocar ao propor essa união? 
Tenho muito interesse, sempre tive, na narrativa policial. Porque permite uma abordagem plenamente intelectual, mais ensaística e menos psicológica. E minha literatura foge intencionalmente do psicologismo, que domina a ficção ocidental desde pelo menos o século 19, e desde sempre o romance brasileiro. Também não acredito que a literatura "de gênero" (policial, histórico, aventura, ficção científica) seja necessariamente subliterária, como costuma ser encarada. 'Os irmãos Karamazov', por exemplo, é tecnicamente um romance policial; e não deixa de ser uma obra-prima. 'Moby Dick' é um clássico do romance de aventura e está no mesmo patamar. 

Livros que unem História e técnicas literárias parecem provocar uma tensão: a dúvida sobre a natureza do conteúdo. É uma sensação que te atrai?
Meus livros podem dar falsa impressão de que derivam de pesquisa. As únicas preocupações que me levam a consultar livros são relativas a verossimilhanças históricas. Por exemplo, se eu for narrar uma cena acontecida no tempo de dom João não posso introduzir um lampião a gás, que só veio depois. Não posso falar na floresta da Tijuca nos meados do século 19, quando ainda não tinha sido replantada. Para isso, disponho de volumes específicos, dicionários de ruas, compêndios de história que me resolvem em 15 minutos o problema. Praticamente todos os episódios que parecem reais, nos meus livros, são ficção, ainda que baseados em outro fato real similar. É a forma de narrar que faz cria essa aparência. Um truque literário, apenas. 

Como percebe a influência de outras culturas, especialmente a africana, a árabe e a indígena, em seus livros? Diria que é uma forma de investigar narrativas de diferentes regiões do mundo?
Embora as três estejam presentes na minha obra, minha relação com cada uma é muito diferente. Apesar de descender de libaneses por parte de pai, nunca falei árabe em casa, fui aprender de maneira autodidata, quando meu pai e meus avós tinham morrido. Minha relação com a cultura árabe, assim, é apenas intelectual. Sobre as culturas indígenas, minha relação é mais antiga, da época em que ingressei no doutorado para estudar as línguas tupis. Conheci a obra do antropólogo Lévi-Strauss, especialmente a série 'Mitológicas', que exerceu em mim uma influência enorme. Muita gente aponta que sou influenciado por Borges. Não nego; mas Lévi-Strauss é seguramente maior e mais importante. Sobre as culturas africanas, não seria justo dizer que têm influência na minha literatura, porque se trata da minha própria cultura. Minha formação estética e religiosa; minha sensibilidade, afetividade; minha perspectiva intelectual, a maneira de me relacionar com o mundo, é toda africana. Os mitos africanos, ou mais exatamente os mitos nagôs ou iorubás, são os meus mitos. São os mitos que aprendi nos terreiros que frequento desde criança. Está na minha essência. É mais correto dizer que a literatura ocidental me influenciou, porque me expresso na tradição desse cânone; não o contrário. Meus livros têm um projeto muito consciente de oferecer uma alternativa cosmogônica não-ocidental. Se o romance precisa agora reformar os conteúdos, nada melhor do que buscar estímulo em formas de ver o mundo diferentes da sociedade dominante.

Saiba mais

TRADUÇÃO - "O enigma de qaf" foi traduzido para o árabe e publicado no Egito. A negociação começou a partir do interesse do ensaísta de literatura do país árabe Wail Hassan, que indicou o livro para o Centro Nacional de Tradução do Egito. 

OBRAS - Além desses dois lançamentos, Mussa é autor dos livros: "Elegbara" (1997); "O trono da rainha Jinga" (1999); "O movimento pendular" (2006); e "Meu destino é ser onça" (2009).

Serviço

"O senhor do lado esquerdo"
Record, 304 páginas, R$ 35

"O enigma de qaf"
Record, 272 páginas, R$ 35



sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

#9 Secret life of Walter Mitty (2013)


A vida secreta de Walter Mitty ocorre durante lapsos, instantes em que o personagem de Ben Stiller, também diretor, foge da realidade e se imagina uma espécie de grande homem - herói, valente, eloquente. São momentos em que o filme se transforma em curta-metragem de gênero, sequências de um ou dois minutos que passam a sensação de comédia, aventura, ação; percursos excêntricos que revelam as necessidades emocionais do personagem. A vida real de Walter Mitty é reclusa, trabalha no setor de revelação de negativos da revista Life, passa o dia em um espaço escuro tratando imagens cheias de energia e vida. A estrutura do filme, baseada em opostos evidentes, não parece uma falsa profundidade dramática; apresentando a vida do protagonista através de dois extremos há uma espécie de afirmação realista sobre o vazio que preenche a região intermediária, cuja natureza é gradualmente sugerida em cenas familiares. A Life está prestes a migrar do impresso para o digital, cortes brutos serão feitos na equipe. Walter não parece ter muito a oferecer, a não ser a imagem "número 25" de um rolo enviado pelo principal colaborador da Life como sugestão para a capa da última publicação. Segundo o fotógrafo, essa imagem é a "quintessência" da vida (ou da Life revista, jogo de palavra). Naturalmente a imagem 25 não está entre as recebidas pelo departamento de Mitty, sugerindo que a vida é a busca, o percurso. Ele decide, então, procurar o fotógrafo, na Groelândia. É nesse instante em que o filme, a própria realidade de Walter, se transforma nos delírios iniciais; enfrenta um tubarão, se joga de um helicóptero para um barco, foge de um vulcão em erupção. Essas cenas são como uma realidade afetiva, o que parece tornar o filme, mesmo com alguns excessos dramáticos, um exemplo interessante de trajetória de um personagem em busca de controle de sua própria existência.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

#8 Terminator 2: judgment day (1991)


O segundo filme da franquia segue a mesma estrutura narrativa do primeiro, apresentando dois visitantes do futuro que voltam no tempo para mudar o rumo da guerra iminente. A diferença está no personagem de Schwarzenegger; reprogramado pela resistência, deixa de ser robô vilão e se transforma em máquina cujo propósito é defender John Connor, que no futuro será ameaça para os computadores. Há cenas constrangedoras em que Schwarzenegger aprende sobre emoções humanas, a natureza sentimental do choro, argumento que parece adicionar uma carga ingênua à trama, pouco coerente com a atmosfera sinistra do filme. Parece uma tentativa de desenvolver personagens que executa ideias banais mirando uma certa "profundidade psicológica", um choque incômodo entre ambiência e execução. A tecnologia está mais avançada, as cenas do futuro distópico deixam de parecer maquetes de papelão, ganham densidade e atmosfera tétrica. Na primeira metade da versão estendida (2h30), há pelo menos duas cenas de ação que parecem resumir de maneira intensa o gênero ação segundo James Cameron; poucas palavras, uso dramático do close e do plano geral, sequências que parecem evoluir de forma criativa e violenta. O final da versão estendida é uma das grandes bobagens filmadas por Cameron, que parece ter um orgulho estranho da pieguice. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Mergulho profundo em lembranças


Tema comum na literatura contemporânea, sendo manipulado por diferentes autores com resultados imprevisíveis, a memória é a matéria de trabalho do escritor argentino Fabián Casas, 48 anos, no livro "Os lemmings e outros". A partir de lembranças da adolescência, autênticas ou transformadas por mecanismos da ficção, Fabián compõe contos em que imagens da juventude, nos anos 1970 e 80, parecem carregadas de lirismo e humor. O livro integra o projeto Otra Língua, da editora Rocco, no qual o escritor Joca Reiners Terron promove uma revisão de autores da América Latina relevantes mas pouco conhecidos no Brasil. 

A memória como argumento de pesquisa, como motivação para a criação literária, é uma etapa essencial no processo de escrita de Fabián, que desenvolve enredos baseados em reminiscências de sua juventude em Boedo, bairro de Buenos Aires, sede do Club Atlético San Lorenzo. "Não tenho imaginação, então a memória ocupa um lugar importante na construção dos meus relatos", destaca Casas. "Mas não tenho uma memória de aço, e com o tempo comecei a perdê-la. Com isso minhas narrações começaram a enfraquecer, até ser uma pequena gota de água", sugere.    

Fabián se destacou, no fim dos anos 1980 e começo da década de 1990, com um projeto poético de vigor; sua produção o colocou, poucos anos depois, como um dos integrantes da "geração dos anos 1990", movimento literário argentino que refletia sobre o contexto político do período através de versos e alegorias. Os poemas de Fabián parecem equilibrar o pensamento estético e a convulsão política. "Era a época do neoliberalismo selvagem", lembra Casas. "Tratávamos de escrever em meio a isso. Agora o liberalismo se escondeu com a roupagem do progressismo. É a mesma luta", destaca. 

A experiência com poesias, a aptidão para o manejo de narrativas curtas em que as frases conseguem reunir, em poucas palavras, sentimentos complexos e metáforas sociais, parece fornecer à prosa de Fabián diferentes camadas de entendimento. Ao mesmo tempo em que apresenta, com objetividade, memórias pessoais e a intimidade de sua família, o autor sugere um ambiente lírico; a marca pessoal parece surgir em trechos que projetam o efeito do tempo e da memória através de uma sensibilidade aguçada. "Eu começo a escrever porque sinto uma musiquinha no meu ouvido", diz Fabián, "e dependendo da extensão da respiração dessa música, o texto se converte em verso ou prosa", ressalta. 

Embora as histórias tenham endereço fixo em Boedo, enredos sobre o cotidiano num pequeno bairro, os acontecimentos parecem, em alguma medida, representar emoções universais; ao observar de perto a construção de uma coletividade, é possível perceber conexões com o mundo externo. "Acho que falar sobre si mesmo é uma maneira de dar conta de uma experiência universal", sugere Fabián. "Sei que os leitores brasileiros sentem isso, porque me escrevem dizendo que passaram por essas mesmas coisas", revela. 

O escritor explica que trabalha, agora, em um livro que parece apontar uma mudança de estilo - ou talvez adaptações de suas marcas reconhecíveis para outras possibilidades narrativas. "A novela que estou escrevendo agora acontece em um território desértico, num futuro ou passado recôndito. Não há mais Boedo: creio que um escritor tem que trabalhar sempre contra sua habilidade", adianta. 

"Os lemmings e outros", de Fabián Casas
Rocco, 160 páginas, R$ 29,50 

#7 Westworld (1973)


Em seus momentos discretos de comédia, pequenos comentários de humor social bem colocados no meio de uma ficção científica, o filme de Michael Crichton revela o protótipo do jeca contemporâneo; a pessoa rica que, precisando fugir da realidade burocrática, paga muito dinheiro para experimentar caprichos de algum período histórico reconhecível pelo que há de mais evidente (Roma, Europa Medieval, Velho Oeste), vivendo o aspecto pitoresco de um passado vagamente familiar. Gastam uma fortuna para se parecer com nativos, usando roupas de guerreiros, caubóis ou princesas, sem se interessar necessariamente pela cultura daquele período, apenas por uma ideia exótica de fantasia étnica - "ser" um xerife, um cavaleiro, para preencher a volúpia do desejo. A história é sobre um parque de diversões povoado por robôs que agradam hóspedes, máquinas submissas controladas para suportar desejos reprimidos (assassinato, sexo). Crichton trata seus personagens como idiotas, uma curiosa ausência de protagonista bravo. Há cenas que sugerem a iminência de um mal estar; algo acaba dando bastante errado, os cientistas não conseguem mais controlar as máquinas, que se rebelam de forma bruta contra os hóspedes. A violência é filmada em câmera lenta, ressaltando a impressão de espetáculo terrível, deixando um gosto amargo de vazio. 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

#6 The terminator (1984)


James Cameron é um dos cineastas que defende a tecnologia como alternativa para intensificar as possibilidades do cinema, criando histórias que se complementam com incentivo da cenografia, projeção ou interferência digital na imagem. Seu primeiro sucesso, em 1984, sugere a ambição por tecnologia como um fator essencial para a concepção do filme, apresentando decisões estéticas que parecem ousadas para o alcance técnico do período. Arnold Schwarzenegger é um monte de músculos e ferro, um robô assassino do futuro, uma máquina que tem apenas uma missão, matar Sarah Connor e quem estiver no caminho. É mais ou menos como os vilões de John Carpenter, um grande mal que segue apenas em frente e não responde à razão. Tem poucas falas e todas parecem gradualmente mais interessantes por causa do sotaque e da maneira absolutamente amadora da pronúncia e do gestual, dados que contribuem para a formação de um agradável ambiente de filme B. É o tipo de personagem que se repete em outros filmes brutos dos anos 1980, como Rambo ou Predador, um assassino cuja atuação extrema ignora a existência da lei. Indícios do gênero horror e atmosfera de ficção científica fazem deste filme um exemplo da habilidade de contador de histórias de Cameron, um projeto que os anos parecem agir à favor da criação de fãs que parecem interferir no tamanho e alcance desse arrasa quarteirão.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Sopros de mistérios da existência


O autor catalão Enrique Vila-Matas costuma escrever histórias que compartilham uma unidade reconhecível. São enredos diferentes, protagonizados por personagens distintos, mas que investigam a mesma sensação, a ideia de que a literatura se estende de maneira difusa e afeta a realidade; a página como rastro de um movimento que segue de forma contínua. Seus principais livros apresentam alegorias que buscam no aspecto negativo (falha, morte, desaparecimento) um jeito irônico de superar traumas e compreender o ato de criação, o instante decisivo da produção literária. 

Sua obra mais recente a entrar no mercado editorial brasileiro é "Exploradores do abismo" (o lançamento original, na Espanha, foi 2007). É um livro em que Vila-Matas apresenta 19 narrativas curtas baseadas essencialmente em temas presentes em textos anteriores: o vazio, o anonimato, o desaparecimento, o erro, as trocas necessárias entre vida e literatura. Os personagens, alguns deles escritores, reais ou inventados, não fogem do escuro que os cerca, do abismo existencial, ao contrário: se jogam em busca de algum tipo de experiência ou conhecimento redentor. 

A definição "livro de contos" parece não sugerir todas as leituras possíveis; Vila-Matas apresenta fragmentos creditados a outros autores, escreve como um narrador no processo de criação, analisa escritores e livros específicos, insinuando um tipo de crítica literária através da ficção. Os livros do catalão possuem esse aspecto de que a literatura é como uma memória contínua, que permanece viva em novos autores, desenvolvendo enredos de ficção através do passado literário (foram personagens em romances anteriores do autor, entre outros, Robert Walser, Franz Kafka e Fernando Pessoa). 

O personagem-narrador que surge em alguns contos é um produto de ficção, mas seus comentários parecem oferecer alguma perspectiva sobre a obra e os bastidores do trabalho de Vila-Matas. Ele escreve, por exemplo, no conto "Das tripas coração": "Há um ano voltei a escrever contos, mas sem perceber que na verdade continuava com os hábitos de romancista. Continuava utilizando um tempo moroso, nem um pouco adequado para a narrativa breve". É uma frase que motiva certa ambiguidade em relação ao que é ferramenta de ficção ou revelação do ofício. 

Nos momentos do texto em que o termo "ficção" parece se adequar, fica evidente a fluência do texto de Vila-Matas, a maneira como o autor cria enredos, situações dramáticas e personagens complexos. Essa sensação parece forte, por exemplo, no conto "Menino", em que um pai explica a relação difícil com seu filho, detalhando ressentimentos que duram 60 anos, revelando que ele é "um falso explorador do enigma do mundo, o ser mais superficial da terra"; descrição perfeita para os personagens de Vila-Matas - falhos, em busca do entendimento de mistérios percorrendo caminhos menos óbvios. 

Serviço

"Exploradores do abismo", de Enrique Vila-Matas
Editora: Cosac Naify, 320 páginas, R$ 45

#5 Point blank (1967)


Não apenas o estilo de um diretor interfere na evolução de um gênero, mas também a própria construção cultural de uma época, as perspectivas sociais, políticas e econômicas de um determinado período. A estética policial, que nos anos 1940 esteve atrelada a detetives que ignoravam limites éticos para derrotar chefes do crime, a mulheres cínicas claramente mais espertas do que os homens, passou por modificações que parecem revelar informações de cada período. Em 1967 John Boorman filmou um thriller policial que hoje parece sugerir, tanto na forma quanto no conteúdo, pensamentos da década. O novo vilão não é um homem que domou bandidos à força e espalhou medo nas ruas, mas a "corporação", a "organização", uma instituição sem nome que parece dominar economicamente a sociedade, um organismo vivo cujo topo pode ser modificado, mas a essência permanece entranhada numa noção implacável de poder. Lee Marvin é traído por seu parceiro de crime, sua mulher o abandona pelo canalha, ele é deixado à beira da morte; um homem destruído emocionalmente. Sua motivação é recuperar a quantia exata que foi roubada, U$ 93 mil, matando criminosos no processo. O filme tem a identidade dos anos 1960 em sua construção técnica, sendo fortemente influenciado pelas renovações estilísticas promovidas por diretores da Nouvelle Vague. A montagem se torna acelerada de acordo com o ritmo do enredo, tempos diferentes se misturam, fatos essenciais são sugeridos através da sucessão de imagens rápidas e posicionamento de câmera que foge ao rigor tradicional da gênese do noir, nos anos 1940 - sintomas que colocam o filme como exemplar de sua época ao mesmo tempo em que identifica sua relevância para a história do cinema.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

#4 Only god forgives (2013)


O material de publicidade (trailer, cartaz) parece sugerir que Ryan Gosling é o protagonista, mas o roteiro se esforça em sabotar a presença do ator em cena, criando exatamente 17 falas para seu personagem em 1h30 de filme, e uma única variação de expressão em seu rosto, a ausência de sentimento, a cara de paisagem. Nicolas Winding Refn parece mais interessado em sua pesquisa de estilo, na confirmação histriônica de uma suposta autoria visual, trabalhando os movimentos de câmera, a luz e o departamento de arte ao ponto em que não há naturalidade, apenas planejamento. É a partir da técnica que o diretor tenta desenvolver os personagens. Há um policial que parece ser o real foco de interesse, Chang, homem pequeno que corta braços num tipo de julgamento olho-por-olho, além de talento promissor no karaokê. A possibilidade de filme sensorial, ou de filme de atmosfera, que abdica a narrativa clássica para exercer uma encenação a partir de certo lirismo, parece uma necessidade progressivamente opressora e incômoda. É difícil imaginar uma resposta emocional se o filme não parece interessado em oferecer envolvimento dramático. O protagonista silencioso de "Drive", um herói cujo sentimento estava evidente em suas ações, torna-se uma espécie frágil de homem sem rumo, guiado por uma noção estranha de dever familiar. Sua mãe adorável, Kristin Scott Thomas, chama a namorada do filho de "depósito de porra" num jantar, vilã cujo exagero parece dar fôlego ao enredo. No geral a impressão é que as emoções são fabricadas pela técnica, parecem se esconder em um passado profundo não concretizado na imagem. É preciso paciência e boa vontade, talvez em excesso, para procurar o que torna essa história especial.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

#3 Drive (2011)


Ryan Gosling interpreta o herói de ação clássico, fala menos do que o necessário, age com brutalidade e eficácia, salva inocentes de perigo eminente; parece guiado por um sentido de honra que não é explicado pelo filme. É capaz de violência excessiva, atrocidades filmadas com dedicação e certo prazer por Nicolas Winding Refn. O passado desse protagonista sem nome - opção que parece ressaltar uma herança do faroeste de Clint Eastwood, seus personagens brutos não identificados, trocando apenas o cigarro do canto da boca por um palito -, é projetado apenas na cabeça do espectador, admirável perspectiva de construção de personagem. Características do filme policial são reviradas, expectativas do gênero são gradualmente reformuladas. No centro parece estar certa admiração pelo cinema americano dos anos 1970, carros poderosos, máquinas cuja velocidade é em alguma medida alegoria para o personagem, homem de ação em fuga. Os momentos de choque, os instantes em que o filme ameaça transcender limites, arriscar o salto de fé para algo estranho e pessoal, ocorrem quando Refn experimenta um tipo de assinatura de estilo através do som, das atuações e da câmera lenta - especialmente na representação da morte como evento espetacular e possivelmente fotogênico. São ideias que modificam cenas essenciais, transformando certas sequências decisivas em movimentos inesperados de cinema.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

#2 Take shelter (2011)



O fim do mundo aparece nos sonhos de um homem comum, que reage em defesa de sua mulher e filha. O filme de gênero, neste caso a destruição da humanidade, surge em cenas curtas guiadas por um senso gradual de horror, segmentos que modificam a percepção inicial sobre a aparência de realismo em uma pequena comunidade conservadora dos Estados Unidos e insinuam a possibilidade de um mal estar iminente. São sequências que sugerem desamparo através do som e de um certo rigor formal, sentimento que incentiva o protagonista a agir de forma gradualmente obsessiva e perigosa. O pesadelo de um futuro sombrio está fora da realidade aparente; motiva a ação sem confirmar sua real natureza. Apesar de aliviar um conteúdo provocador, podando certas consequências extremas, violentas ou abusivas, deixando seu filme no tom moderado, Jeff Nichols parece ter prazer na construção de uma atmosfera reconhecível do gênero fim do mundo, usando as ferramentas conhecidas dessa estética para alterar a perspectiva sobre um pequeno drama familiar, insinuando análises sociais no contexto de um possível apocalipse.