domingo, 23 de outubro de 2011

A história da Argentina segundo Ricardo Piglia

Hugo Viana



O texto do escritor argentino Ricardo Piglia, 61 anos, vem muitas vezes acompanhado de uma noção ampla de história, um conhecimento (um tanto irônico) sobre as mudanças políticas e econômicas de seu país. Seu novo livro é "Alvo Noturno" (Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 45), em que esses temas aparecem abertamente.

A história se passa nos anos 1970, época em que a Argentina vivia sob ditadura, e ao invés de observar o centro desse sistema de dominação, em Buenos Aires, a briga urbana muitas vezes sangrenta entre operários e militares, Piglia escreve sobre os pampas argentinos, as regiões do interior. Ele parece falar à distância sobre negociações entre política e capital, e como esses temas que repercutem hoje em dia.

Assim como "Dinheiro Queimado", este é na superfície um livro de gênero, um romance de detetive, descrevendo as circunstâncias de um crime seguido por uma investigação policial. Tem um corpo morto em um quarto de hotel; é Tony Duran, porto-riquenho que veio dos Estados Unidos para apostar alto numa pequena cidade do interior. É um povoado onde vivem pessoas desconfiadas, uma região pouco desenvolvida sob qualquer aspecto, onde os que possuem ideais de contestação ou sabedoria popular são encaminhados para manicômios.

O responsável pela investigação é o comissário Croce, um policial do passado, peça antiga e desvalorizada nos tempos modernos, que resolve crimes com tremenda precisão de raciocínio, sem recorrer a métodos científicos. Ele pensa em frases curtas que surgem meio sem querer durante caminhadas, e elas parecem representar uma espécie cruel de verdade sobre não apenas a investigação, mas a situação social de seu país.

Aos poucos a investigação de Croce sugere que esse assassinato esconde mais do que aparenta, e provavelmente envolve interesses comerciais e políticos, vontades de pessoas com poder. Tony se relacionava com a família Belladona, cujo patriarca era um rico fazendeiro. Seus dois filhos homens se afastaram e tentaram entrar no ramo industrial, negociando com norte-americanos, enquanto suas filhas gêmeas de pernas longas eram objetos de desejo, garotas de espírito sexual livre numa época em que calça jeans era artigo proibido para mulheres.

Esses personagens parecem representar uma tensão crescente da Argentina nos anos 1970, símbolos de uma época fundadora de problemas sociais que persistem. Uma versão em escala reduzida da relação hierárquica entre trabalhadores e donos de terra, o panorama periférico da ditadura e da submissão diante de um poder maior.

Piglia trabalha uma interessante relação entre ficção, história e teoria literária (em especial a partir das mudanças de rumo na narração proposta na parte final), e tudo parece conectado num tipo de tese sobre o estado das coisas no capitalismo contemporâneo, uma arqueologia social misturada à literatura.

No meio do livro, durante um de seus passeios noturnos, Croce, dirigindo um automóvel, quase atropela uma lebre, pequeno animal perdido no meio do mato, assustado pela luz do farol do carro em alta velocidade. Essa imagem parece de algum modo representar o argumento de Piglia, um comentário amargo sobre a história de seu país e pessoas sem defesas contra um mal que vem a 100 km por hora.

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