segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O cinema segundo Abbas Kiarostami


Os filmes do cineasta iraniano Abbas Kiarostami apresentam características importantes para compreender procedimentos cinematográficos contemporâneos. A partir de obras como "Close-up" (1990), "Dez" (2002) e "Cópia fiel" (2010), Kiarostami investiga vestígios do real na encenação; narra, através da contemplação de uma realidade encenada para a câmera, os modos da vida cotidiana - temas que pautam o cinema independente atual em diferentes regiões.

O livro "Abbas Kiarostami", escrito pelo próprio realizador, com depoimentos do crítico e teórico de cinema iraniano Youssef Ishaghpour, oferece contribuições importantes para compreender a arte de Kiarostami - e, como consequência, concepções sobre o cinema atual. Antes dos textos há uma sequência de 52 imagens - o projeto "As estradas de Kiarostami", feitas pelo próprio cineasta -, que de certa forma antecipa o sentimento de seus filmes; a contemplação, a expansão vagarosa do olhar, a observação sobre eventos da rotina.

Nos anos 1990 o cinema iraniano passou a ser reconhecido; diferentes países perceberam, na cinematografia do país, a urgência de um movimento unificado por valores culturais e propostas estéticas em sintonia com o momento político pós-revolução islâmica, em 1979. "É interessante perceber como, depois das revoluções das décadas de 1960 e 70, os cineastas do Irã elaboraram uma produção consistente, acrescentando ao cinema europeu uma nova fronteira criativa", comenta Ana Farache, jornalista e fotógrafa, doutora em comunicação pela UFPE. "Esses diretores conseguiram desmontar a ideia de que a contemplação como dimensão do olhar não teria mais espaço na nossa cultura, pela quantidade de tentações visuais e velocidade de distribuição", destaca.

No livro, o autor explica sua perspectiva sobre o cinema, revelando, através de seu gosto cinéfilo, sua proposta de estilo. "Não suporto o cinema narrativo. Abandono a sala. Quanto mais se esforça por contar, e quanto mais sucesso tem nisso, maior é minha resistência. A única maneira de prefigurar um cinema novo reside em um maior respeito pelo papel do espectador", destaca o autor. Em seus filmes, a noção de cinema narrativo, em que a história é contada de maneira linear, é abandonada; o que permanece é um exercício consciente de identidade, uma espécie provocação, através de sensações abertas à interpretação.

"O primeiro plano de 'Five', que, como os demais, dura uns dez minutos, reduz-se à imagem de um pedaço de madeira à deriva na arrebentação das ondas do mar. É algo absolutamente insignificante e desprovido de qualquer nuance dramática", diz o cineasta pernambucano Marcelo Pedroso. "Mas a rigorosa insistência em centralizar o plano nessa situação banal, a temporalidade desconcertante que o cineasta consegue articular na ação e a infinitude de sentidos conotados que o simples recorte do quadro (e fora-de-quadro) sugere são capazes de introduzir uma tensão propriamente dramática a uma situação que seria justamente a negação desses mesmos princípios. Mas para senti-la, é preciso se permitir, aderir à frequência do filme", destaca Marcelo.

Pedroso é autor de obras como "A balsa" (2008) e "Pacific" (2009), filmes que desafiam por reformular características tradicionais do cinema narrativo. "Quando exibi 'Balsa' nas escolas, os jovens se amotinavam durante a sessão tentando fugir, o professor tinha que praticamente armar uma barricada na porta. Um dos estudantes, ao final de uma sessão, esperneou: 'Professor, você não disse que a gente iria ver um filme?!' Acho que essa fala resumia a situação: aquilo não era filme, não podia ser filme, não correspondia à ideia que eles tinham de filme", diz Pedroso.

"É preciso desconstruir essa ideia do filme de ação (que não é necessariamente ruim; o ruim é quando este modelo se impõe como único, quando ele se configura como determinante do que é cinema e do que não é). Lembro que [o diretor Emir] Kusturica disse que há dois tipos de cinema: o de Spielberg e o de Kiarostami. Acho que é isso, de forma caricata: o cinema do contra-campo e o cinema do extra-campo. Um não é melhor do que o outro, é preciso compreendê-los e saber desfrutar do que cada um oferece enquanto experiência aos sentidos", destaca o cineasta. 

A contemplação como 
proposta conceitual


   Marcelo Pedroso

O cinema de Kiarostami toca em aspectos essenciais da produção contemporânea; trata-se de um autor que sintetiza questionamentos sobre técnicas e identidades de países periféricos, marcas de estilo de geografias com tradições relativamente recentes de cinema. Uma dessas características é a contemplação; a observação como meio de sensibilizar.

"Acho o termo 'cinema contemplativo' um pouco perigoso", opina Marcelo. "Em geral, tende a afastar pessoas. Contemplativo pode sugerir um certo vazio, uma rarefação de acontecimentos e normalmente o público associa a filmes chatos. O que acontece é, na verdade, um descompasso de regimes sensórios. Nossa relação com a imagem em movimento é moldada pelo que a televisão e o cinema industrial nos convidam a experimentar", sugere o diretor.

A forma como vemos filmes se modificou; a tecnologia, primeiro através do rádio, em seguida da televisão e hoje da internet e meios digitais, interferiu na relação com as imagens. Kiarostami é exemplo de autor que trabalha, através da câmera e da montagem vagarosa de planos, a ideia da sublimação a partir do olhar. "Minha predileção pelo plano-sequência resulta da necessidade de poder acreditar no que se passa à frente da câmera. Não se pode acreditar em certos acontecimentos se não os filmamos em profundidade de campo e em plano-sequência, evitando os cortes de montagem", escreve o cineasta.

"Nossa relação com as imagens se funda a partir dos códigos que esses modelos nos oferecem: narrativas esquematicamente elaboradas, com uma mensagem a passar, um conflito estabelecido, um clímax", diz Marcelo. "O que esses 'filmes contemplativos' propõem é uma ruptura nesse código, um convite a uma atração a partir de outra percepção sensória. O tempo age de outra maneira, ele não condensa os acontecimentos, mas os expande, os conecta a seus aspectos aparentemente irrelevantes, situando os fatos dentro de uma arquitetura que não é exaustivamente elaborada em privilégio da ação. Não são filmes que mimetizam o tempo real, eles se aproximam do cotidiano, de uma certa desdramatização do mundo, mas fazem isso para introduzir curvas de tensão onde elas aparentemente não existiam", sugere o realizador.

A contemplação, nos filmes de Kiarostami, torna-se uma espécie de ação criativa. "Essa atitude segue o fluxo do pensamento de filósofos, como Plotiono, por exemplo, que postulam não haver contradição entre ação e contemplação. Ao observar seus personagens e suas ações, Kiarostami abre espaço para uma narrativa estabelecida no silêncio. Quando contemplamos, o silêncio se apossa de nós. Nossa mente se cala. Nas palavras de Plotino, 'a alma, então, atinge a tranquilidade e nada busca por estar plenificada, e a contemplação, nesse estado, repousa no interior, por confiar possuir'", reflete Ana Farache, cujo doutorado reflete sobre o espaço reservado à contemplação no contemporâneo.

Serviço

"Abbas Kiarostami", de Abbas Kiarostami e Youssef Ishaghpour
Cosac Naify, 328 páginas, R$ 95

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