quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O soldado do jornalismo literário

Hugo Viana



Em setembro de 1998 Fernando Morais ouviu no rádio do carro que agentes da inteligência cubana infiltrados em organizações norte-americanas de extrema direita haviam sido presos pelo FBI. "Fui seduzido pela oportunidade de contar uma boa história", diz o autor, em entrevista por e-mail. Morais percebeu nessa ocorrência a possibilidade de escrever um livro, mas foi apenas em fevereiro de 2005 que ele teve acesso a documentos do governo detalhando a trajetória dos agentes e os planos de investigação. O resultado é "Os Últimos Soldados da Guerra Fria" (Companhia das Letras, 408 páginas, R$ 42). Na publicação, ele exercita 50 anos de experiência jornalística, herança presente tanto na apuração minuciosa quanto na busca por um tipo de objetividade ao narrar uma história real. O livro acaba sendo também, talvez um tanto indiretamente, uma espécie de panorama sobre mudanças sociais e políticas em Miami, na Flórida, ressaltando como a Revolução Cubana e Fidel Castro interferiram nos EUA.

O livro tem uma narrativa de fluência fácil, baseada em grande parte na descrição e na apuração de fatos pouco conhecidos ou nunca divulgados. Até que ponto esse "faro jornalístico" guiou a escrita? O senhor se interessa pela fronteira entre jornalismo e literatura?
É verdade, há muito da minha herança jornalística, sobretudo dos dez anos que passei no Jornal da Tarde, não só neste livro, mas eu diria que em todos os que escrevi. Tanto no que você chama de "faro jornalístico" quanto na tentativa de seduzir o leitor a cada parágrafo. Infelizmente, porém, e salvo as exceções de praxe, não é isso que se vê no jornalismo de hoje. A fronteira entre o jornalismo e a literatura - atenção! é literatura, não é ficção - reside no tempo e no espaço físico infinitamente maiores de que o autor dispõe ao optar por escrever um livro e não uma reportagem.

O senhor acha que o livro pertence ao "jornalismo literário"? O que acha desse gênero, que mesmo depois de tantos anos parece ainda se reportar à origem, aos cânones, como John Hersey ou Lillian Ross? Acredita em alguma possibilidade de renovação?
Eu tenho muito cuidado com essa história de "jornalismo literário". A confusão entre "literário" e "ficcional" é muito frequente. Mas é, sim, na água dos gringos que eu e muitos dos autores de livros jornalísticos bebemos. John Hersey, Lillian Ross, Truman Capote, Norman Mailer, Tad Szulc, Gay Talese... Outro dia eu reli, depois de muitos anos, "Honra teu pai", de Talese. Embora já soubesse o fim, eu não consegui largar o livro. Lia no café da manhã, no almoço, no jantar, na cama. É uma aula de bom jornalismo. E é literatura, pura, purinha da silva.

O livro tem um claro interesse em debater política e história. Qual a importância da literatura em discutir atualmente esses temas?
Confesso que me interessei menos pelo debate político e histórico e mais pela estonteante aventura que tinha nas mãos. De novo, a metade repórter da minha alma falou mais alto que a metade ativista político. Mas concordo com você em que, ao revelar bastidores inéditos até então - como a troca secreta de correspondência entre Fidel Castro e Bill Clinton - o livro acaba contribuindo para o debate político sobre o bloqueio econômico contra Cuba e a intolerância da comunidade cubana da Flórida contra tudo o que cheire a Revolução Cubana.

Num tema naturalmente polêmico, o senhor acredita na escrita isenta ou prefere deixar claro seu posicionamento político?
Não há nada mais subjetivo do que a objetividade. Ao escolher um personagem ou um episódio, o autor já está, de alguma maneira, revelando intenção. Mas ainda assim eu me esforço para que minhas convicções não interfiram nos meus livros. Escrevi "Chatô", a biografia de um dos ícones do conservadorismo, e não o crucifiquei. Escrevi "Olga", sobre uma militante comunista, e não a canonizei. Vou escrever a biografia de Antonio Carlos Magalhães com a mesma honestidade.

Há passagens que relatam dores íntimas dos personagens, sofrimentos que se tornam agora públicos com o livro. O senhor sentiu algum tipo de dilema ético durante escrita?
Escrever sobre dramas humanos é sempre doloroso, mas felizmente não vivi conflitos éticos. Acho que para isso contribuiu o fato de que joguei limpo com todo mundo. Todos meus amigos cubanos, de todos os escalões, sabiam que eu ia escrever uma reportagem. No dia em que fui entrevistar o mercenário que estava condenado à morte, a primeira coisa que perguntei era se ele aceitara falar comigo espontaneamente ou se fora obrigado pela direção da prisão. E esclareci que se ele não quisesse falar eu iria embora sem problemas. Ele respondeu: "Pode ligar o gravador. Estou aqui porque quero e acho que estou precisando desabafar". Foi assim com todo mundo, da extrema-direita aos oficiais de inteligência de Cuba. Ser honesto costuma dar resultado.

O livro é extremamente detalhado na reconstituição de momentos importantes. Há algo de ficção em sua escrita? Talvez não no sentido de "criar", mas ao menos na ideia de modelar a realidade num texto que seja, além meramente descritivo, também uma construção literária.
Não, a ficção nos meus livros é zero. Invejo os ficcionistas e mais ainda aqueles que, como Ken Follet, criam em cima de fatos reais. O livro "O buraco da agulha", escrito por ele e ambientado na Segunda Guerra Mundial, deixa o leitor com água na boca. Mas não sei fazer isso. Com relação à reconstituição detalhada de cenas ou personagens, isso se deve ao verdadeiro interrogatório a que submeto os personagens. Pergunto sobre detalhes que muitas vezes nem usarei no livro, mas isso dá ao autor uma segurança maior na hora de escrever. Quando o autor se sente senhor da história, conduz como quiser.

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