quinta-feira, 3 de maio de 2012

Biografia e luto

Hugo Viana


Quando um livro é narrado em primeira pessoa surge geralmente uma dúvida sobre o que há de biográfico no enredo, se a publicação foi escrita a partir de um cruzamento entre real e ficção ou talvez como produto da imaginação do autor. O "eu" pode ser opção de estilo, escolha para organizar a história a partir de uma certa prática confessional, mas pode ser também uma maneira de expor através da reflexão biográfica uma parte da história pessoal. É o caso de "Patrimônio" (Companhia das Letras, R$ 34, 192 páginas), de Philip Roth.

O autor norte-americano escreveu sobre seu pai, um livro de memórias que trata dos últimos dias Herman Roth, que em 1986 foi diagnosticado com um tumor cerebral. Roth escreve então para entender as raízes de sua perda, traçando a personalidade de seu pai, relacionando as atitudes de Herman a de outros familiares. Neste caso a literatura não parece ser remédio ou palavra de auto-ajuda, algo para acalmar o espanto diante da finitude, mas um interesse em escrever a biografia familiar como forma de compreender aspectos misteriosos da vida.

O texto de Roth, normalmente virtuoso em sua complexa estrutura narrativa, com frases longas enlaçando pensamentos intrincados, neste livro parece um pouco mais cru, ou talvez direto, como se a proximidade ao tema exigisse uma ética adequada, uma escrita mais ou menos austera em seu mecanismo interno. O autor adota uma expressividade contida, deixando que os sentimentos naturalmente dramáticos acionados pela história sobre uma dura perda familiar seja o aspecto essencial, e não a forma como esse enredo é contado.

Existe uma ordenação nessa literatura sobre o luto, como se Roth procurasse nos detalhes pistas para entender a forma emotiva como seu pai raciocinava ou a maneira enfática como falava. Ele revisa não apenas a trajetória de seus pais, tios e avós, mas também sua própria biografia, se inserindo no livro como um observador próximo. É o tipo de literatura que coloca o escritor como agente da história, alguém que participa de um enredo baseado em grande medida em eventos pessoais.

O livro foi publicado nos Estados Unidos em 1991, cinco anos após a morte do pai do autor. De certa forma esse movimento direcionado à escrita sobre a perda parece antecipar temas importantes na produção atual de Roth, em especial a forma como o escritor relaciona os efeitos do tempo, a memória e a morte a um personagem central (neste caso, ele mesmo) em processo de reestruturação emocional - assuntos presentes em livros recentes como "Fantasma Sai de Cena" (2008), "A Humilhação" (2010) e "Nêmesis" (2011), sugerindo o interessante caso do artista que percebe sua própria vida como assunto para acionar a criação artística.

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