segunda-feira, 4 de março de 2013

O grande livro doente de Roberto Bolaño


Hugo Viana


François Truffaut (1932-1984), que antes de ser cineasta era crítico de cinema, desenvolveu um conceito curioso: o "grande filme doente". Segundo Truffaut, seria uma "obra prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso, um belo roteiro infilmável, um elenco inadequado, uma filmagem envenenada pelo ódio ou ofuscada pelo amor, uma defasagem grande demais entre intenção e execução". Truffaut ainda ressaltou: "Evidentemente, essa noção só pode ser aplicada a excelentes diretores". 

Com a devida adaptação, essa ideia de "obra doente" parece caber em "As agruras do verdadeiro tira", publicação póstuma do excelente escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003). O livro começou a ser escrito no fim dos anos 1980 e, até a morte do autor, não tinha sido concluído - os editores, então, se basearam em anotações encontradas em arquivos no computador de Bolaño e páginas datilografadas. A edição brasileira notifica que alguns capítulos (aproximadamente a metade) foram revisados por Bolaño e possivelmente estão em sua versão final. 

O livro conta a história de Amalfitano, professor de literatura latino-americana que aos 50 anos descobre que é homossexual. A universidade de Barcelona percebe que ele se envolveu com alunos e, para evitar constrangimentos públicos, faz uma proposta de demissão sigilosa. A única universidade que o aceita é em Santa Tereza, violenta cidade no México. Lá, o protagonista é rodeado por lembranças de seu amante - um jovem escritor -, um novo envolvimento romântico (um pintor que falsifica obras clássicas), e uma atmosfera soturna de mistério. 

A certa altura Bolaño cita frases de um livro (entre as várias citações a textos e escritores), um trecho que parece indicar sua proposta literária: "Sua identidade é o mistério / e nesse mistério / se encontra a porta de toda maravilha". Assim como "Estrela distante" e "Monsieur Pain", Bolaño cria enredos em que o mistério e um certo senso de absurdo são ferramentas para maravilhar o leitor, como se o ato criativo fosse completado apenas pela imaginação sem limites e por diversas possibilidades de interpretação de quem lê. 

Neste livro, no entanto, o conceito "obra doente" parece existir; diferente de outras publicações, a união entre mistério, citações literárias e conexões entre pequenos fatos sem ligações aparentes - marcas recorrentes de estilo de Bolaño -, parecem gerar um estado confuso, a fragmentação excessiva, como se os capítulos estivessem fora de sincronia. Talvez por ser uma obra póstuma e que ainda seria editada, a sensação é que os trechos foram forçosamente alinhados, gerando momentos de grande interesse e desenvolvimento psicológico e outros que parecem movidos pela vontade de exercitar o virtuosismo literário. 

Em nota encontrada em seus arquivos, Bolaño explicou que com este livro pretendia delegar ao leitor o papel de "verdadeiro tira", "que deve dar sentido às pistas com que se depara". É uma proposta que, na obra, parece validar o que sugere de negativo e preguiçoso: uma certa tendência ao vazio, a criação de algo exótico e ligeiramente oco, e esperar que a outra parte, o leitor, crie seu próprio sentido, sem  no entanto que o escritor forneça a base necessária. 

SERVIÇO

"As agruras do verdadeiro tira"
Companhia das Letras, 320 páginas, R$ 44,50

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