quinta-feira, 7 de março de 2013

O fascínio pela cultura árabe


Hugo Viana


A literatura fantástica, gênero normalmente lembrado pelo fator mais evidente, os enredos que tratam de acontecimentos que superam aspectos da realidade, tem como um dos livros mais relevantes "As mil e uma noites", obra construída a partir de contos árabes (entre eles, destaque para, por exemplo, as histórias de Aladim, Ali Babá e Simbad). Recentemente "As mil e uma noites" ganhou tradução Mamede Mustafa Jarouche, uma versão que reúne os textos em quatro volumes (Globo, 1684 páginas, R$ 159,90). A segunda edição do Congresso de Literatura Fantástica de Pernambuco convidou o tradutor para conversar sobre particularidades da tradução deste projeto e sua percepção sobre a literatura fantástica, em debate hoje (7/3), no auditório do CFCH, na UFPE, às 17h30, com mediação de Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de literatura da UFPE. 

Como é seu trabalho de tradução? Que tipo de regras você possui? 
Em tradução, não sou adepto de teorias. Considero-me mais um intuitivo, se é que posso falar assim. Minhas regras são as mais genéricas possíveis: produzir um bom texto em português, ou, para ser mais correto, um texto que, em português, equivalha esteticamente ao original. 

Especificamente sobre "As mil e uma noites": como foi seu processo de tradução? 
Com esse livro, o que me exigiu maior esforço foi a comparação, muita vez concomitante, de mais de uma versão, às vezes três ou quatro, do mesmo texto, o que provoca desgaste e tensão. Não teria sido esse o caso se a tradução fosse de um texto sem tantas variantes. Dicionários devem estar sempre à mão, companheiros inseparáveis de qualquer tradutor. No meu caso, dicionários árabe-árabe, dicionários árabe-língua estrangeira, dicionários língua-estrangeira-português, dicionários de regência verbal e nominal, dicionários analógicos e de sinônimos, dicionários português-português. As dificuldades que encontrei: manuscritos ilegíveis, trechos obscuros devido à existência de palavras, locuções e giros sintáticos não dicionarizados, além do próprio trabalho de comparação entre os manuscritos, que me consumiu as energias e os olhos! 

O tema do evento sugere a importância dessa obra para a literatura. Gostaria que falasse sobre motivos para essa relevância, os fatos tornaram esse livro tão especial e historicamente relevante. 
Talvez seja mais lícito falar na influência do imaginário orientalista do que nas "Mil e Uma Noites", uma vez que foi por meio do filtro orientalista que esse livro invadiu a cultura e o imaginário da Europa Ocidental a partir do início do século XVIII. Talvez muitas das histórias das "Mil e uma Noites", bem como de outras obras da cultura árabe, já fossem conhecidas e circulassem na Europa na Idade Média, mas então a relação era outra, inclusive com o conceito de "fantástico", que, na forma como hoje é pensado, construiu-se na modernidade e deve muito ao racionalismo. Mas existem outros motivos para a relevância das "Mil e Uma Noites". O próprio aspecto da narrativa, com seus encaixes, a narradora feminina dominando o enredo, a diversidade das histórias: todos esses elementos têm também o seu quinhão nessa relevância.  

Como conceitua a literatura fantástica? Como esse gênero se relaciona com a realidade?
Segundo o filósofo Tzvetan Todorov, o conceito de fantástico depende da relação com os conceitos de "real" e "imaginário". Tende-se hoje a pensar em literatura fantástica como aquela cujo enredo se desenvolve em um mundo, por assim dizer, sobrenatural - e isso, evidentemente, graças aos nossos conceitos de "real" e "imaginário". Na literatura moderna, um dos exemplos mais bem acabados é "Cem anos de solidão", de García Marquez, em que a recorrência de elementos fantásticos seria o reflexo mais fiel da absurda realidade sulamericana. Mas não é esse o caso de literaturas antigas - e aqui incluo as "Mil e uma noites", em que o equivalente de fantástico - as palavras árabes 'ajíb e gharíb, entre outras -, partem de outra espécie de relação com aquilo que então poderia ser caracterizado como real e imaginário.

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