segunda-feira, 19 de março de 2012

O efeito do tempo nas pessoas e na história

Hugo Viana


Alguns livros parecem astutamente construídos, obras que a cada página revelam algo do enredo e ao mesmo tempo conectam alguma ideia sugerida parágrafos antes. É quase um encanto particular do autor pela técnica, o orgulho por tornar necessários para o desenvolvimento da história artifícios rebuscados de narração. Parece ser o caso de Jennifer Egan em "A Visita Cruel do Tempo" (Intrínseca, 336 páginas, R$ 29,90), vencedor prêmio Pulitzer de ficção em 2011.

A autora norte-americana (que confirmou presença na edição deste ano da Flip) construiu um complexo panorama que descreve 50 anos na vida de um grupo de pessoas de São Francisco e Nova Iorque, dos anos 1970 até 2020. É uma opção cada vez mais comum, não apenas na literatura mas também no cinema, usar textos que abordam um grupo a partir de diferentes pontos de vista e por um largo período de tempo; textos que funcionam com a autonomia de contos ao mesmo tempo em que compõem um autêntico romance.

A própria origem do livro revela essa natureza ambígua, já que alguns capítulos foram inicialmente publicados individualmente como pequenas histórias em revistas como The New Yorker e Harper's Magazine. Egan já comentou em entrevistas que essa estrutura foi especialmente inspirada em duas fontes, o livro "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, e a série de TV "Os Sopranos". A notícia de que a HBO está trabalhando em uma adaptação para a TV de "A Visita Cruel do Tempo" parece coerente.

Cada capítulo trata de um determinado personagem, que depois reaparece em tópicos seguintes como coadjuvante ou figurante de luxo incentivando novos caminhos dramáticos para a história. Uma adolescente se relaciona com um homem mais velho, foge de casa com promessas discretas de aventuras em rumo ao perigo, e então na próxima história conhecemos mais sobre esse mesmo homem, seu passado na década anterior, e embora não exista uma conexão direta entre as duas histórias uma sensação constante de como o tempo atualiza ou aprofunda personalidades parece correr pelo subterrâneo.

Um tema do livro que funciona como ligação entre essas diferentes histórias é a mudança dura na indústria fonográfica, uma certa nostalgia pela maneira analógica como o negócio da música se desenvolveu nos anos 1970 e algum cinismo sobre o contexto atual de pirataria, download e compartilhamento de arquivos digitais. É esse ponto de partida para Egan desenvolver uma narrativa que cresce e passa a falar diretamente sobre a própria passagem do tempo, o efeito de décadas sobre pessoas e ideias, algo que esclarece a influência de Proust.

A escrita de Egan parece se apropriar bem dessa ideia de "livro sobre grupo de pessoas", trabalhando com eficiência não apenas esse panorama geral mas também o efeito do tempo sobre as pequenas situações do cotidiano que logo quando ocorrem passam despercebidas, momentos que não se distinguem de outros e só depois se tornam reconhecíveis na lembrança, pelas cicatrizes que deixam. Num pequeno trecho do livro, em que um problema comum da adolescência é delicadamente confrontado parece expressar a medida exata de como a autora consegue abordar sutilezas do tempo passado.

O livro parece se destacar por esse impressionante repertório de técnicas, o que sugere uma escritora ao mesmo tempo apaixonada por um manual de fórmulas e maneiras de aplicá-las à construção emocional personagens.

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