segunda-feira, 26 de março de 2012

Guia para a desconstrução de um autor

Hugo Viana


A certa altura do novo livro de Joca Reiners Terron, "Guia de ruas sem saída" (Edith, 258 páginas, R$ 35), vemos imagens de um personagem em processo de desconstrução; ele tira o olho, puxa o braço e em seguida desmonta completamente em pedaços. Na página seguinte esse homem barbudo e careca está inteiro de novo, em frente ao espelho, aparentemente nada admirado com o pequeno lapso fantástico. O que Joca procura neste novo e estranho romance composto por texto e imagens (feitas por André Ducci) parece não estar na materialidade das coisas e sim nas pulsões indefinidas e nem sempre admiráveis do corpo. A história trata de dois homens em estado de suspensão; um é desenhista, criou o interessante super-herói Homem-Escada e está gradualmente perdendo contato com a realidade, enquanto o outro viaja para muito longe com a esposa em busca de cura para uma doença possivelmente terminal. Textos e imagens parecem diagnosticar um certo desgosto sobre os modos da vida contemporânea, o mundo digital e o humanismo decadente das grandes cidades, e descrever mais é sugerir encaminhamentos para uma narrativa necessariamente aberta a interpretações, que ruma meio sem querer para um pequeno e incompreendido espaço na literatura nacional, as obras "experimentais".

Algumas pessoas vêm tendo dificuldade de catalogar este livro, decidindo por fim pelo rótulo "experimental". O que acha dessa definição? Parece saída nem sempre adequada para livros que possuem linguagem diferente e narram histórias sem desenvolvimento convencional.
Essa dificuldade é resultado do velho duelo entre realismo convencional e qualquer outra tentativa de expressão narrativa. É compreensível, pois sempre é difícil nomear o que ainda não existe ou acabou de nascer. Não existem muitos manuais dedicados aos críticos como aqueles que auxiliam os pais a batizarem seus filhos. Os críticos andam órfãos da imaginação.

Ao mesmo tempo em que existe um nível talvez "experimental" na escrita, a história é essencialmente a de homens em crise, falando sobre memória, finitude, amor. Para você, o experimento na linguagem é legítimo apenas quando a história tem essa carga humana?
Exato. Você respondeu pra mim: os temas do livro são tão velhos quanto Adão e Eva. Já sua forma expressa os meus limites como escritor ou minha incapacidade. Escrevo assim porque só sei escrever assim, não tenho saída. De algum modo também expressa as indefinições dos dias de hoje. Pelo menos assim espero.

Embora trate de temas existenciais, há no todo um interessante uso de humor negro, algo como rir de tragédia absurda. Como foi o processo de escrita, essa combinação curiosa entre densidade e humor?
Os temas, como você os descreveu, são bastante pesados. Mas eu quis rir deles, e diminuir a solenidade que em geral é adotada ao se falar da morte. Já o humor negro em meu caso nem é recurso de estilo, mas traço de caráter. Quanto ao processo de composição do livro, devido à presença das imagens, lembrou a feitura de um filme. A montagem foi essencial.

Sobre os desenhos do livro, a proposta não parece ser apenas ilustrar o texto, mas também oferecer uma segunda forma de se relacionar com a história. Como veio a ideia de um livro com imagens? E como foi o contato com André Ducci?
As imagens no livro estão a serviço da narrativa. Para você fazer idéia, o roteiro era mais volumoso que o texto do livro propriamente dito. Ou seja, foi um trabalho exigente para o Ducci, que teve de traduzir minhas idéias em desenhos. A presença das imagens no livro se impôs pelo fato de o narrador principal ser um quadrinista, alguém que pensa através de imagens. Desse modo, as sequências de desenhos traduzem outros planos da história: o lembrado, o imaginado, aquilo que nunca aconteceu.

O livro tem metáforas curiosas, como a cidade chamada "Nãohorizonte", os chips que um personagem vomita, o super-herói Homem-Escada. Essas ideias não têm significação imediata, mas ao mesmo tempo falam sobre um certo estado de espírito de hoje, a internet, uma cidade (talvez São Paulo) caótica.
O Homem-Escada é uma espécie de Caronte, um super-herói cujo único poder é ajudar as pessoas a chegarem a algum lugar. Afinal, essa é a função das escadas, não? Os chips eletrônicos que o personagem vomita no livro são utilizados pelos açougueiros que roubam seus órgãos para o localizarem no caos de Nãorizonte, que pode ser São Paulo, mas também pode ser Xangai. Nós todos estamos sendo seguidos, não? Nossos celulares e computadores são as coleiras pelas quais nossos donos nos mantém acorrentados.

Você já demonstrou um certo interesse pela preservação da memória literária do Brasil, escrevendo sobre autores injustamente esquecidos. Como acha que este romance se localiza na literatura nacional? Acredita em algum grau de parentesco com os "autores malditos", como você já os chamou?
Não existe maldição maior do que a língua portuguesa. Quer dizer, existe sim: ser um autor brasileiro, escrever num país de cegos que se tornou novo rico, mas que não tem nenhum planejamento para a educação. A literatura nacional é uma piada triste na qual todos somos os piadistas e a plateia está vazia. Meu livro só existe porque antes dele existiu Valêncio Xavier, um escritor brasileiro de linguagem única e original que anda esquecido, sem nenhuma editora que recupere seus livros essenciais.

Em entrevista com Marcelino Freire [criador da Edith], ele falou que a publicação desse livro foi "uma ajuda", "um socorro" a você. Ele disse que esse livro estava atrasado, e isso era uma "longa história". Pode explicar melhor as etapas desse livro e como foi a aproximação da Edith?
É verdade. Foi simples: eu precisava fazer um livro bem maluco e do jeito que bem entendesse a tempo de cumprir o prazo estabelecido pela patrocinadora Petrobras, que me premiou com uma bolsa de criação literária. E a Edith, um coletivo de autores, me permitiu isso sem a burocracia que uma grande editora exigiria.

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