terça-feira, 6 de novembro de 2012

Tradição e memória na literatura de J. Rentes de Carvalho


Hugo Viana

A Fliporto, que chega à 8ª edição (entre os dias 15 e 18 de novembro), vem fortalecendo um perfil interessante: uma programação que ao mesmo tempo reforça a relevância de grandes autores e mostra uma dedicação especial ao apresentar escritores pouco conhecidos. Neste ano, este tipo de revisão política do mercado rendeu o convite ao português J. Rentes de Carvalho, 82 anos, selecionado pelo curador Mário Hélio para participar da mesa "Palavras: as implicâncias, as preferências e as esquisitices". Rentes não tem nenhum livro publicado no Brasil, embora tenha escrito mais de 10 obras em português. Ele fez o serviço militar em Lisboa e foi obrigado, por razões políticas, a abandonar Portugal; viveu então no Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque e Paris, até se fixar em Amsterdã em 1956. Essa condição de trânsito e revisão memorialista de tradições está presente em sua literatura; em obras como "La coca" e "A amante holandesa" Rentes escreve histórias de emoções discretas, em que lembranças e costumes nacionais são meios para repassar sensações. Nesta conversa o autor fala sobre a língua portuguesa, que deixou de ser sua forma primordial de comunicação, e temas como tempo e amor em seus livros.

Na Fliporto o senhor vai falar sobre o material para a construção literária, as palavras. Gostaria de saber primeiro se tem, como sugere o título da mesa, "preferências" ou "esquisitices" sobre certos termos da língua portuguesa.
Nem preferências, nem esquisitices. As palavras são instrumentos de que necessito. Acontece, claro, que uma se adapte melhor ao que quero dizer, mas que outra possua um som ou um "colorido" mais interessante. De modo geral a "preferência" ou a "esquisitice" que lhes posso atribuir deixa de ser tomada em consideração se o sentido ou o decorrer da história o exige. A qualidade vem primeiro, para as idiossincrasias pessoais põe-se o travão a funcionar. Pessoalmente, em matéria de preferências, enfrento como escritor o problema particular de que, sendo poliglota, e há mais de 50 anos a minha língua corrente seja o holandês, me aflige, por vezes, que certas palavras estrangeiras me "sirvam" melhor do que as da minha língua-mãe.

Como é sua rotina de escrita, a relação com as palavras e o processo de criação?
As palavras é que se relacionam comigo, mas, francamente, não faço ideia de que modo. E isso de rotina de escrita e processo de criação, ultrapassa-me. Imagino uma história (estória, se quiser), sento-me a pensar, escrevo o que penso, reescrevo, corrijo, volto a corrigir, gasto anos nisso. Nada de especial ou esotérico. Só trabalhinho, muito trabalhinho.

O que acha do processo de unificação das línguas em português? Li seus livros em português de Portugal e pensei que, caso fossem adaptados para o brasileiro, iriam perder algo de tradição. Acha que podemos ser compreendidos sem a unificação?
Claro que sim, e nunca a unificação será  possível. Temos duas línguas com a mesma  raiz, e é bom e enriquecedor que se mantenham as diferenças. Desde menino li boa porção de autores brasileiros, e continuo a ler, escrevi uma tese sobre "Menino do Engenho" de José Lins do Rego; Graciliano Ramos, Machado de Assis, o grande Guimarães Rosa, Trevisan, Bandeira, Vinicius, não sei quantos mais, a todos sou devedor. Do mesmo modo seria bom que no Brasil houvesse muita gente a ler autores portugueses, o que certamente contribuiria para melhor conhecimento mútuo.

Você morou em Portugal e, boa parte de sua vida, na Holanda - fato que entra em seus livros. Existe fronteira entre realidade e ficção?
Não há fronteiras, há osmose, e para complicar a questão tudo se dilui e funde, em certo momento nem o autor consegue saber se é ele próprio, ou se se transformou no outro e nos outros.

Em "La Coca" existe um interessante exercício narrativo: parte significativa do enredo permanece sem explicação direta. Diria que é uma marca de estilo, um interesse por narrar através da sugestão?
Um dos grandes pecados de quem escreve é, por vezes, ter a ideia de que o leitor é um bocadinho fraco de espírito, e tudo se lhe deve explicar. Bem ao contrário, são muitos os leitores mais inteligentes e mais sensíveis que o autor. Explicar e explicitar é o equivalente de fazer a papinha para o bebê, supondo que ao leitor ainda faltam dentes para mastigar a prosa. Aliás, muita dessa prosa, mais das vezes nem o esforço de engoli-la se justifica.

Já em "A Amante Holandesa" existe uma história de amor em que o tempo também é importante. O que diria sobre o tema “amor” em seus livros?
Diria que é um tema funcional, e que raro tenho abordado. E quando o abordo é com o cuidado de, ao contrário do sapateiro da conhecida estória, não ir além da chinela. É tema que, talvez mais do que todos, e refletindo o que Mário Vargas Llosa intitula “a civilização do espetáculo" a literatura tem banalizado, a ponto de que o que deveria ser tratado como um sentimento superior e exclusivo, essencial e querido em todos nós, é tantas vezes rebaixado e reduzido à animalidade.

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