segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Literatura, praia e pés descalços


Hugo Viana


Para o escritor argentino Alan Pauls, 53 anos, a melhor maneira de falar sobre temas complexos da história da América Latina, assuntos que confundem o senso moral e transformam a verdade em um conceito vago e abstrato, é através de aspectos banais, notas geralmente ignoradas em estudos austeros, detalhes que na aparente trivialidade parecem indicar contradições essenciais. Seu novo livro, "A vida descalço", reúne textos sobre dias ensolarados, a rotina desinibida na praia, regras de etiqueta no uso de roupas curtas num espaço público regido por um curioso e levemente canastrão senso de comunidade; a partir desse tema, no entanto, o autor expande suas reflexões, escrevendo sobre hábitos sociais dos anos 1960 e 70, comentando de maneira astuta motes políticos e culturais da América Latina. Pauls tem domínio do gênero ensaio: maneja palavras como artesão imprevisível, construindo com refinada carpintaria literária longas frases que saltam com liberdade por diferentes tópicos sem perder a ternura. Acompanham os textos fotografias que sugerem nostalgia doméstica, lembranças familiares, informando uma dimensão íntima da história. Nesta entrevista, o autor comenta motivações para a escrita e possibilidades criativas do ensaio. 

Como surgiu a ideia de escrever um livro a partir da praia? E uma curiosidade: como é seu comportamento na praia?
Foi um trabalho para uma coleção de ensaios sobre espaços públicos de uma editora de Buenos Aires. Mas a praia não foi minha primeira escolha. Antes pensei em lugares mais civilizados: salas de cinema, museus, bibliotecas, estações de trem. Alguém me sugeriu a praia e aceitei em seguida, como se aceitam desafios suicidas. O tema tinha tudo para me afastar: era um lugar comum da natureza (e me interesso apenas por cultura), um espaço muito pop, que nunca havia me inspirado uma única ideia. Quando comecei a escrever, no entanto, tudo apareceu: histórias, impressões da infância, traumas, referências culturais. Sobre meu comportamento na praia, temo não ser um bom exemplo: não tenho atitudes vitais, não sou um nadador empedernido, não pratico esportes náuticos. Gosto de caminhar, chafurdar-me nas ondas ou flutuar languidamente, e sobretudo ler. Nunca leio tanto como quando estou na praia. A praia é minha biblioteca perfeita. 

Ao longo dos textos o tema "praia" se expande: você fala sobre história, consumo, cultura, sociedade. O assunto "praia" é um meio para chegar a outros aspectos, talvez mais complexos?
Não é um problema do tema mas do registro com que se trata esse tema, a modulação. O ensaio é justamente o gênero ideal para transformar um tema banal ou inclusive frívolo como a praia em um nó de problemas interessantes. Bem praticado, o ensaio torna radioativo tudo o que toca. 

Em livros anteriores, como "História do pranto" e "História do cabelo", você falou sobre grandes questões sociais a partir de pequenas situações ou objetos. Seria uma estratégia: para comentar aspectos contraditórios da política ou da sociedade você procura pistas em detalhes de um contexto maior?
Sim: creio que a porta de serviço é a maneira mais interessante de entrar nos grandes edifícios. É possível ver outras coisas, novas, inesperadas, e as coisas que vemos todos os dias passam a ser observadas em perspectivas desconhecidas. No detalhe menor está tudo. Só é preciso saber interpretá-lo. 

Ano passado você veio ao Recife e debateu a literatura produzida "em tempos sombrios", a influência da ditadura em seu processo de criação. Acha que a sombra da opressão política pode ser percebida também neste texto ensolarado?
Não creio. "A vida descalço" é um livro tão feliz, tão sem sombras, que até mesmo me surpreendeu. 

Você  escreve fragmentos da memória, lembranças pessoais, e em alguns trechos existem dúvidas sobre o que é ficção ou fato biográfico. A fronteira entre real e ficção atrai seu interesse? 
Me interesso por tudo o que vacila. E não há nada mais vacilante do que a memória. Em parte porque é falível e frágil, e em parte porque sempre é interessante. Criamos memória estrategicamente, para apoiar ou justificar ou explicar algo que acontece no presente, nunca "por amor à memória". E nesse gesto estratégico há uma dose importante de manipulação, montagem. 

As fotografias que acompanham os textos possuem uma interessante carga de afeto, sugerem nostalgia e remetem à infância. O que essas imagens agregam ao livro? 
As fotos fornecem uma cota de documentação. Não são boas fotos; o foco é impreciso, nada é muito nítido, são bastante domésticas para dizer algo claro. Não documentam algo que aconteceu e sim o modo vago e ligeiramente alucinatório em que recordamos, em que uma câmera - a do meu pai, um maníaco da praia, do sol e da fotografia na praia embaixo do sol - recorda o que aconteceu. 

O livro tem frases longas, em que você muda de assunto no meio da argumentação e sugere temas diferentes - aspectos que legitimam o gênero ensaio, um texto com liberdade criativa. Como avalia o estilo de narração desse livro?
O livro foi para mim a possibilidade de experimentar com todas as potências do ensaio como forma. Ideias, sem dúvida, raciocínios e argumentos, é claro; mas também a liberdade de conectar essa dimensão conceitual com uma dimensão mais narrativa e uma intimidade pessoal, feita de evocações sempre no limite da mistificação, e com uma escritura que fabricasse uma sintaxe flexível, capaz de articular em uma mesma frase uma anedota de infância, um esboço de crítica de cinema, um comentário sociológico sobre o verão e uma teoria absolutamente caprichosa sobre o parentesco secreto entre a areia (inimiga da tecnologia informática) e o Silicon Valley. 

No livro vemos uma certa América Latina, não apenas pelas praias, mas por tradições ou hábitos recorrentes. Podemos dizer que é uma obra com endereço geográfico marcado, ou as questões descritas têm apelo universal? 
Creio que é um livro muito local, sim, muito arraigado em uma maneira de experimentar a praia que é ao mesmo tempo existencial e cultural, e que é claro está determinada pelo contexto histórico e político da América Latina. Pena que essa intervenção do contexto nunca apareça tão claramente como quando as praias se deterioram, se arruínam, deixam de ser paraísos para se converterem em pesadelos. 

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