segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A permanência de Gilberto Freyre

Hugo Viana



As propostas de Gilberto Freyre (1900-1987), especialmente as ideias apresentadas no livro Casa-Grande & Senzala - publicação que, em 2013, completa 80 anos de lançamento - permanecem sendo ferramentas relevantes para discussões. O intelectual pernambucano será debatido em duas mesas na programação de hoje da Expoidea: "Relendo Casa-Grande & Senzala: Gilberto Freyre, Roges Bastides e o conceito de democracia racial", com Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de pós-graduação em Letras da UFPE, às 16h; e "O Recife de Gilberto Freyre", com Maria Lúcia Pallares-Burke, autora do ensaio biográfico "Gilberto Freyre: Um vitoriano nos trópicos", às 18h. Os eventos, gratuitos, acontecem no Centro Cultural Correios.

"Minha mesa vai mostrar que não foi Freyre que criou o termo 'Democracia Racial' (esta palavra não se encontra em nenhuma das suas obras dos Anos 1930, 40 e 50), mas Roger Bastide, que escreveu, na década de 1950, um estudo sobre a condição do negro em São Paulo", adianta Anco. "Quando perguntado se o Brasil era uma 'Democracia Racial', Freyre negava. O que ele mostrava é que nosso preconceito racial era menor do que os registrados nos Estados Unidos e África do Sul, e que as bases da nossa formação racial (a miscigenação) habilitava o Brasil - mais do que outros países que tiveram formação semelhante -, a ser, no futuro, a primeira democracia racial. É um sonho generoso? Sim. E é um sonho que todos nós deveríamos lutar para que venha a ocorrer", ressalta o professor.

A atualidade de Freyre pode ser percebida na maneira como suas ideias continuam relevantes, na forma como oferecem, ainda hoje, contribuições valiosas. Temas atuais, como representação, identidade e sustentabilidade, foram abordados por Freyre em estudos que observam temas complexos de maneira profunda. "Sua insistência para que os brasileiros se aceitem como uma mistura de grupos étnicos e de culturas, ao invés de se fragmentarem entre ítalo-brasileiros, afro-brasileiros, ainda é uma questão atual. Seu precoce interesse pelo meio ambiente, sua preocupação com a perda de árvores, com os efeitos maléficos das monoculturas, inclusive a poluição do Capibaribe estão no livro 'Nordeste', de 1935", aponta Maria Lúcia.

A mistura social e cultural - e as maneiras como diferentes religiões, crenças e orientações habitam o cotidiano brasileiro - também foram discutidas por Freyre. "Se a miscigenação de raças e de culturas é talvez o nosso maior capital social, como usar essa miscigenação como base para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna? Como usar esse diálogo de culturas e ideias que nos formou e continua presente como antídoto contra políticos messiânicos e ideias reacionárias que tentam impor ao Brasil um modo único de comportamento (seja religioso e ideológico-político, seja no campo da orientação sexual)? Nestes dois pontos, a obra de Freyre tem muito a nos dizer e muito a nos ajudar a pensar a nossa contemporaneidade", atesta Anco.

"Quisemos ressaltar a 
originalidade de Freyre, mas
também apontar fraquezas"
Maria Lúcia Pallares-Burke

Os 80 anos de Casa-Grande & Senzala sugerem refletir sobre o pensamento de Gilberto Freyre. Qual a importância das ideias apresentadas na obra?
Uma das características mais importantes do pensamento de Freyre, e que o torna extremamente atual, é sua preocupação em minar as oposições binárias que ele originalmente estabelece entre casa-grande e senzala, sobrados e mocambos, ordem e progresso, senhores e escravos. O que ele faz com maestria é chamar atenção para o que existe entre essas oposições e o que as une. Daí sua busca de mediações entre opostos, que se revela no rico vocabulário que usa para descrever essas mediações, como acomodação, adaptação, conciliação, mistura, hibridismo. Essa é uma abordagem valiosa que pode ser utilizada para quaisquer outras oposições binárias, e que é facilmente exportável para problemas contemporâneos. Pensando na oposição herói e vilão, por exemplo, o que Freyre faz é apontar para o que não é tão heroico no herói e o que não é tão vil no vilão. O que é extremamente valioso no pensamento de Freyre é sua ênfase em não se ver o mundo em preto e branco, mas buscando nuances nas idéias, pessoas, instituições.

Como foi o processo de pesquisa para "Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos" e "Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre"? Que tipo de imagem é de Gilberto Freyre é possível notar nos livros?
Nossa pesquisa se baseou numa variedade de material: cartas, recortes de jornal e anotações feitas por Freyre em seu livros. Especialmente curiosos foram os quatro volumes organizados por Magdalena contendo artigos hostis a ele. Para mostrar seu desagrado com as críticas ao marido, Magdalena deu aos volumes o título de WC. Para o meu "Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos", fiz uma pesquisa detetivesca na Inglaterra para identificar o jovem com quem Freyre teve, como descreveu, uma "breve aventura de amor homossexual, no melhor sentido da expressão sem canalhice alguma". Descobrir Linwood Sleigh, suas origens e interesses estéticos ampliou minha compreensão da personalidade do jovem Freyre, seu empenho por legitimar e enobrecer o episódio de sua juventude, rejeitando qualquer insinuação de vulgaridade. Nesses livros, quisemos construir a imagem de um Freyre complexo, diferente de um modelo de perfeição, que mais parece uma estátua de mármore do que um homem - tal como Freyre criticava as "biografias triunfais" que "deixam os grandes homens descansar na sua glória de estátuas", por quererem vê-los "sempre olímpicos e cor de rosa". 




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