quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Crônica de um amor em fuga

Hugo Viana



A Companhia das Letras tem uma coleção chamada "Amores Expressos", em que a editora banca a viagem de um escritor para alguma cidade do mundo, e a experiência é depois publicada na forma de história de amor. O sexto livro lançado é "Nunca Vai Embora", de Chico Mattoso (R$ 34), autor enviado para Cuba. "Passei um mês em Havana, enchi um caderno de anotações, registros objetivos do que estava vivendo", diz Chico. O livro é um pouco como uma crônica de amor jovem, sobre a geração que está perto dos 30 e anda um tanto perdida. O protagonista é Renato, dentista que larga o pai dominador e as ambições frustradas em São Paulo para viajar com a namorada, Camila, para Cuba, onde ela pretende fazer um documentário sobre a impossibilidade de registrar a realidade, uma representação um tanto irônica sobre as obsessões do documentário contemporâneo. No meio do livro temos a sensação de que tudo é revirado pelo gênero policial, e a autoestima frágil do protagonista passa a vagar por ruas apertadas, bares vagabundos, quartos mofados e encontrar personagens ambíguos, obcecados por investigações. Nesta entrevista por e-mail, Chico fala sobre sua relação com a ficção, detetives e lembranças pessoais.

Você tinha ideia de como seria o livro antes da viagem? A experiência em Cuba modificou seus conceitos iniciais?
Eu tinha uma ideia básica antes de sair do Brasil, mas sabia que pouca coisa se manteria. A experiência de estar imerso naquele ambiente, de vivê-lo com algum grau de proximidade, transforma sua noção sobre as coisas. Não mudam necessariamente as ideias, mas mudam as impressões.

O livro é narrado em primeira pessoa, e certas passagens parecem talvez autobiográficas, ou ao menos levemente inspiradas em lembranças pessoais. É possível medir isso durante o processo de escrita ou é algo que vem naturalmente?
É difícil fazer essa separação. Objetivamente o livro não tem quase nada de autobiográfico. O narrador é muito diferente de mim, e as coisas que ele vive não se parecem em nada com o que eu já vivi. Mas é claro que isso vem sempre vazado de dados, objetivos ou não, da experiência do autor. Toda ficção se alimenta de uma mistura gosmenta de memória, invenção e intuição.

O narrador é um tanto careta, observa a "classe artística" com alto grau de cinismo. Tive a impressão que ele poderia ser o namorado de Vicky, no filme de Woody Allen, "Vicky Cristina Barcelona". Quando fala com Camila e os amigos dela, parece que ele conversa com uma fauna curiosa de pessoas, que se comunicam através de frases de efeito. Como foi construir essa relação?
É interessante essa comparação. O narrador, de fato, observa Camila e seus colegas à distância, num tom generalizante e cínico. Conheço muita gente do meio cinematográfico, e a maioria não se parece com os personagens do livro - nem minha visão sobre eles. Mas há aqueles mais deslumbrados, que elaboram para si uma espécie de máscara arrogante e superficial. Todas as áreas artísticas têm esse tipo de figura, e sempre tive a sensação de que essas pessoas poderiam render bons personagens. Gosto da mistura de ingenuidade, prepotência e paixão que eles têm, acho que tem algo de muito humano nisso.

O livro parece ter duas narrativas bem divididas. Na primeira é como se estivéssemos numa viagem sem rumo pela autoestima frágil do protagonista, e você estabelece isso através do pai dominador, das ambições frustradas, da relação ambígua com Camila, de fascínio e raiva. Depois entra um tom de gênero, de narrativa policial, de busca, pistas e investigação. Queria saber como você pensou essa divisão.
O livro tem esses momentos bem marcados, é verdade. A divisão nasceu naturalmente, me pareceu a coisa certa a fazer enquanto escrevia. Quando Camila desaparece, Renato é largado no mundo, tem que lidar diretamente com as próprias obsessões. Mas ele não sabe se relacionar com isso sozinho. Precisa de alguém que o guie. A narrativa que se segue tem uma aparência detetivesca, mas só na superfície, já que não é a busca que está em jogo, e sim os motivos que levam o protagonista a embarcar nela.

Ultimamente venho pensando que a estrutura do "detetive" pode ser muito útil como metáfora para obsessão, para traumas não resolvidos. Você usou códigos do gênero para levar adiante a subjetividade do personagem, estabelecida na primeira parte?
Não tinha pensado nisso, mas faz sentido. A parte "de gênero" do livro é detetivesca só na aparência. No desenvolvimento da história vai ficando claro que o tal do 'whodunnit' ["quem é o culpado"] é secundário, que toda aquela busca funciona para desmascarar os processos mentais do protagonista. Sei que corri um risco, que alguns podem achar a mudança um pouco brusca ou gratuita, mas tive segurança de que era o caminho certo.

Por ser ambientado em Cuba, você sentiu necessidade de falar sobre questões políticas? Penso que a trama de detetive seja talvez produto de um interesse seu em comentar, um pouco que fosse, política.
Eu sabia desde o princípio que o livro não trataria diretamente de política, mas ao longo do processo fui percebendo que esse tema fazia parte da história. As obsessões política e amorosa têm muitos pontos de contato. Ambas nascem da frustração, de sujeitos cansados de lutar contra uma realidade que não oferece as respostas que desejam. É comum que, como resultado, inventem uma realidade paralela para si.

Seu livro me pareceu uma crônica de amor jovem, sobre pessoas que não sabem bem como se comunicar (a primeira parte quase não tem diálogos, são apenas pensamentos de Renato). Queria saber se você acha que seu estilo de fato se conecta com essa ideia de relato sobre uma geração. Ou se não, que estilo seria?
Em nenhum momento pensei nisso. A história foi pensada em termos muito individuais. Seria mortal para o livro escrevê-lo pensando em fazer um retrato tão abrangente. Teria dificuldade em fazer uma análise do meu estilo, não tenho distância para isso. Apenas tento ser honesto comigo mesmo, com o jeito que eu vejo as coisas, com o tipo de literatura que me atrai e desafia, sem falsear minha voz ou mascará-la com truques.

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