segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A terrível semelhança entre ficção e realidade

Hugo Viana



O escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977) criou um desses personagens que parece uns tantos anos à frente da moral de seu tempo, superou qualquer expectativa cética e se tornou um verbete fixo no dicionário de palavras sensuais; "Lolita", a imagem de uma não tão doce inocência sexual, é o nome do livro mais conhecido de Nabokov, escrito em 1955 e adaptado para cinema de alto ou baixo nível figurativo, TV, literatura, teatro.

Antes desse livro, um documento sobre a obsessão de um homem adulto, um professor de literatura e seu desejo sexual por uma menina de 12 anos, Nabokov já tinha escrito alguns bons textos, obras sem o mesmo alcance definitivo de "Lolita", mas ainda assim, quando observadas hoje, com o devido distanciamento, parecem revelar um tipo discreto de grandeza, talvez sem a ambição de permanência na história, mas sem dúvida publicações que asseguram um lugar de importância para o autor.

Um bom exemplo é "O Olho" (112 páginas, R$ 24,90), escrito em 1930, lançado pela Alfaguara. O livro narra a história insólita de Smurov, um homem não versado nas artes masculinas, um tipo discreto de perdedor constante. Ele é seduzido por Matilda, mulher casada, e quando finalmente penetra em ambientes moralmente condenáveis, o marido dela, um homem educado, de bengala, que tinha como costume, antes de falar, limpar a garganta com um rápido pigarro, num acesso de raiva o humilha violentamente.

Incapaz tolerar a vergonha, Smurov decide, ainda no começo, tirar sua própria vida, atirar em si mesmo como forma de punição. A partir daí o livro muda de rumo, se transforma num interessante exercício narrativo, seguindo a suspeita instável da dúvida: estaria Smurov de fato morto, descrevendo fatos criados por sua mente numa pós-existência ironicamente parecida com a vida terrena, uma réplica de uma sociedade turbulenta, ou seria ele o protagonista de uma rede de espionagem secreta, um russo fugindo de sua nação em guerra?

O livro tem uma conexão com o momento em que foi escrito, o fim dos anos 1920, contexto no qual a Rússia passava por duras mudanças em seu projeto político, do czarismo a uma tentativa de ditadura do proletariado. A família de Nabokov fugiu para a Alemanha, em 1919, durante a Revolução Russa, algo que está de certa forma presente neste livro, a crise gerada pela ausência e o humor devastador da fuga.

Esse humor vem com mais astúcia na construção sólida de seus personagens, a capacidade de relatar cinicamente o cotidiano de pessoas a partir de pequenos detalhes. As pessoas que estão próximas ao protagonista são comicamente descritas com raiva insuspeita; Matilda é uma "dama roliça, desinibida, de olhos bovinos", Evgenia é uma "moça com um belo rosto quadrado que fazia pensar em um afável e bem-apessoado buldogue", Tio Pasha é um "alegre cadáver de terno azul, com caspa nos ombros, barba feita, sobrancelhas fartas e prodigiosos tufos de pelos nas narinas", humor que de alguma forma torna explícito uma amarga tensão social, um olhar frio para a burguesia.

Na primeira página o autor escreve algo que parece revelar bastante de seu estado durante a escrita, falando sobre Smurov, um imigrante russo em Berlim que trabalha como tutor para uma família russa "que ainda não tivera tempo de empobrecer e subsistia na fantasmagoria de seus antigos hábitos de São Petersburgo", exemplo de ironia confessional bem direcionada. Há um desgosto bem humorado no livro, várias passagens em que uma mão pesada claramente trata com humor negro personagens que evitam confrontar o fantasma da história, os medos gerados pela mudança.

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