terça-feira, 17 de abril de 2012

A literatura política de Hernán Rivera Letelier

Hugo Viana



Alguns livros celebram o ofício do escritor por meios indiretos, de maneira que o fascínio pelo ato de contar histórias não seja um elogio gratuito, mas exemplo de como experiências do passado permanecem na vida do autor e ao mesmo tempo modificam a história de uma comunidade. O livro "A Contadora de Filmes" (Cosac Naify, 112 páginas, R$ 29,90), escrito pelo chileno Hernán Rivera Letelier, 61 anos, sugere esse raro encontro entre ficção, história pessoal e memória coletiva.

O enredo fala sobre uma pequena família que mora num acampamento próximo a uma mina de salitre, no Chile, no final dos anos 1950. Depois da tragédia sentimental ocasionada pela fuga da mãe 25 anos mais nova que o marido, um acidente deixa o homem paralítico da cintura para baixo, tirando boa parte da renda dessa família de cinco filhos, e então apenas uma das crianças pode ir ao cinema. Elas disputam o posto de "contador de filmes", em que um deles recebe o bilhete do cinema e ao voltar para a casa deve descrever todos os detalhes, e está aí uma bela homenagem do autor aos contadores de histórias, às pessoas que narram ficções a outras por prazer.

"Me criei no deserto", diz Letelier, em entrevista por telefone. Até os 11 anos o autor morou no povoado de Algorta, conhecido pelas minas de salitre, e neste livro ele parece consultar sua biografia naqueles anos para criar adequadamente o enredo. "Havia um cinema que exibia filmes diferentes todos os dias, então eu podia ver 365 filmes por ano. Éramos cinéfilos empedernidos, não tínhamos para onde ir ou o que fazer, então o cinema era nosso entretenimento. O cinema era o centro social mais importante, nos juntávamos para mostrar a camisa nova, nos penteávamos, engraxávamos o sapato, usávamos roupa nova", lembra o escritor.

Há no livro momentos em que Letelier descreve reminiscências de seu passado, acessando suas lembranças de quando era garoto e o cinema era um movimento social na comunidade. "Eu me fascinava pela mudança de atmosfera que se produzia ao entrar num cinema, a luz crua de fora e ao passar pelas cortinas pesadas de veludo encontrar um mundo de cinema", comenta o autor. "O cinema era quase um vício. Depois nos juntávamos nas esquinas para contar os filmes que tínhamos assistido. Havia meninos e meninas que os contavam de maneira extraordinária. Tudo isso influenciou essa novela, que no fundo é uma homenagem ao contador de histórias. Penso que todos gostam de ouvir histórias", diz Letelier.

O começo do livro lembra "Como Era Verde Meu Vale" (1941), em que John Ford descreve a força da união familiar num meio social destruído. Aos poucos no entanto Letelier trata de outras influências, lembranças cinematográficas que fizeram parte de sua coleção pessoal de lembranças. "Eu não tinha um filme particular enquanto escrevia, estavam todas os que vi quando garoto. Os filmes de múmia, os com marcianos, de cowboys, filmes mexicanos - que eram os que atraíam mais gente -, os de Jerry Lewis, e é claro também os de Charles Chaplin. Um ator era suficiente para encher os cinemas", detalha.

Além desse aspecto do enredo em que o autor parece se colocar nos termos pessoais, existe também um interesse em debater politicamente a história do Chile, lembrando sutilmente um aspecto difícil na trajetória coletiva dos trabalhadores. "No livro falo a história desse deserto, da mina de salitre, e isso é muito importante no país, uma história que estava esquecida e que estorvava certos setores políticos. É uma história cheia de injustiça social. Eu desenterrei essa história sobre os trabalhadores de salitre, homens que conquistaram o Deserto do Atacama, que é o deserto mais cabrón do planeta. Esses acampamentos se tornaram povos fantasmas. Com meus livros estou dando vida de novo a essas regiões, mostrando essa história a novas gerações", diz o autor.

Ao mesmo tempo o livro não possui esse aspecto político mais forte do que o interesse de contar o drama dessa pequena família, cujo destino parece a cada página mais desolador, envolvendo gradualmente situações de abuso de poder, alienação, uma puberdade apressada e a tensão entre classes sociais. "Estou contando a história do nascimento do salitre, e essa é uma história entre o político e o social; o panfletário também, e é claro o histórico. O livro tem algo político, e acho que ao escrever sobre o pampa salitre o aspecto político aflora por si só. Aflora também o panfletário, e eu cuido para que as minhas novelas não se transformem em obras políticas panfletárias, que sejam apenas novelas e sejam bem escritas. Esse é o primeiro compromisso do escritor, antes do moral, social ou político, o compromisso com a literatura, ou seja, escrever bem", opina Letelier.

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