segunda-feira, 23 de abril de 2012

Literatura que surge do luto

Hugo Viana


Algumas dores emocionais fazem pessoas procurarem um espaço seguro para reflexão; no caso do escritor paulista Ricardo Lísias esse local é o gabinete de produção literária, o hábito da escrita como meio para entender ideias contraditórias. Seu novo livro, "O Céu dos Suicidas" (Alfaguara, 192 páginas, R$ 34,90), surgiu a partir do sentimento real de perda. Seu amigo André tirou a própria vida, e então o autor lidou com o sofrimento da maneira que acredita ser a mais eficaz: a literatura. O protagonista também se chama Ricardo Lísias, um colecionador que através de seu costume de catalogar metodicamente pedaços de sua história em partes significativas procura entender sentimentos de culpa, saudade e fé. Parece ser esse aspecto religioso o segredo expressivo do livro; enquanto pesquisa sobre o suicídio, Ricardo percebe que as religiões não acreditam no descanso dos que encerram a própria vida, e essa suposta amargura eterna aciona no protagonista o desejo de paz para aqueles que são movidos pela ternura, mas que encontram tragicamente o fim. Nesta entrevista, Lísias fala sobre a produção literária feita a partir desse luto pessoal, e como procurou dissolver o aspecto biográfico dentro da ficção.

Este livro surgiu da necessidade de falar sobre a morte de seu amigo. Gostaria que comentasse o modo como recorreu à literatura como forma de refletir sobre uma perda real, e como sentimentos autênticos de raiva, angústia e culpa foram encaixados num produto de ficção.
Quando uma perda muito grande ocorre (e pior ainda de maneira traumática) imagino que seja normal as pessoas terem necessidade de externarem os sentimentos tão complexos e contraditórios que as atingem. No meu caso, recorri à ficção porque acredito ser essa a minha forma mais eficaz de expressão. Mas é possível também fazer o caminho contrário: quando voltei a escrever, depois do descanso da redação do meu livro anterior, "O Livro dos Mandarins", não consegui fazer nada que não se referisse ao tema do suicídio. Simplesmente é a continuidade natural do meu trabalho de ficcionista.

O protagonista tem seu nome, o enredo trata essencialmente da morte de seu amigo. O que diria sobre o aspecto biográfico do livro? Em algum momento esse cruzamento entre real e ficção foi incentivado (ou reprimido)?
Trabalhei para deixar tudo o que fosse biográfico, com exceção do motor do livro, bastante diluído. Mas não foi uma questão de repressão ou de incentivo: foi essa a forma que encontrei para moldar o romance. Há muito de biográfico, mas minha biografia não pode ser percebida em nenhum momento do livro.

O protagonista compartilha com você algumas características. Como ele se insere em sua galeria de personagens? 
É uma personagem que não consegue lidar com o mundo, quando o mundo lhe cai nas mãos (ou explode diante dela). Nesse sentido há um certo massacre emocional que eu vinha tentando compor nos outros textos, cada um a partir das necessidades diferentes das respectivas tramas.

Em certos momentos o livro é muito doloroso, uma dura jornada de aceitação e superação. Gostaria que falasse sobre o processo de escrita, essa meditação longa que é a produção de um romance. 
Sem dúvida, alguns momentos foram muito dolorosos para serem elaborados, mas o processo de escrita foi o mesmo que para os outros livros: pesquisa, criação de rascunhos, primeiras tentativas e depois a redação do livro. Esse tipo de engenharia facilita muito o controle da dor.

O livro trata de histórias paralelas à principal, enredos curtos que amplificam o complexo estado emocional do personagem. Como foi conectá-las ao drama que motivou o livro?
A personagem está perdida, como se estivesse em um labirinto de histórias de onde não consegue sair. Cada uma delas fornece uma pista, mas ao mesmo tempo embaralha as outras. Eu gostaria que tudo servisse para tornar confuso o estado emocional do narrador-personagem.

Você propõe aproximações interessantes entre colecionismo, saudade e religião (ou talvez fé). Como relaciona esses aspectos? Parece uma forma criativa de falar sobre alguém que se apega metodicamente ao passado e busca nesse apoio alguma revelação.
É exatamente isso. Colecionadores pegam fragmentos de passado e tentam a todo custo montar uma coerência. A saudade também me parece um pouco isso e a fé do mesmo jeito talvez seja a tentativa de criar elos em sentidos muito frágeis. Para mim é uma tentativa de união de tudo, frágil e ilusória, mas que é possível.

O personagem tenta compreender a religiosidade e as relações afetivas. Acredita que a literatura pode acionar transformações no leitor ou mesmo no autor?
Como leitor, muitas vezes os livros me trouxeram algum conforto, ou ao menos distração. É deles aliás que tiro parte do meu sustento, como professor. Descobri muita coisa e aprendi a ver o mundo de formas alternativas através deles. Como autor, em momentos de crise muito violenta, eu descobri que simplesmente estava escrevendo...

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