quarta-feira, 11 de abril de 2012

A união sagrada dos oprimidos

Hugo Viana



Na literatura do angolano Valter Hugo Mãe, 41 anos, existe um tipo sincero de ternura mesmo quando trata dos sentimentos mais sombrios das pessoas. Seu novo livro é "O Filho de Mil Homens" (Cosac Naify, 256 páginas, R$ 39,90), em que o autor narra um enredo sobre uma família que se une por amor e ocasião do destino, não obrigação. A história é dividida entre personagens que casualmente se encontram e formam laços que embora não sejam sanguíneos ou talvez oficiais parecem tão sagrados quanto os que ligam uma família tradicional. Ao mesmo tempo em que procuram conforto esses personagens são enxotados a cada página por uma turba que sente raiva por eles exercerem de forma inofensiva exatamente aquilo que os torna humanos. São colocados à margem pelos vizinhos por serem homens maricas ou mulheres enjeitadas, mas convocados por Valter Hugo com um tipo raro de delicadeza. O livro não tem uma época definida, o que parece sugerir uma espécie de arqueologia do preconceito, leis de homens que não mudam mesmo depois de anos. Nesta entrevista, o autor explica como entende o amor e a família em seu novo livro, assim como detalha motivações para a escrita.

O livro é dedicado às crianças, e de fato existe um grande respeito pelo o que elas significam em termos de futuro e possibilidade de mudança social, política e afetiva. O que lhe interessou nessa escolha?
Confessei que este livro me ensinou a pensar sobre a hipótese de ter um filho. Nunca pensei nisso de ter filhos, sentia-me incapaz de cuidar de alguém assim. Mas a idade parece retirar-nos alguns medos. Não tenho mais medo de crianças. E creio que entendi, nestes últimos dois ou três anos, que se tivesse um filho ele seria todo um patrimônio da felicidade. O que este livro me mostrou foi isso. Como um filho é alegria e como é pena que muita gente não o perceba. A felicidade está sempre mais perto de nós do que julgamos.

Em seus livros parece ser o amor a grande busca, o que move os personagens, o que torna a escrita necessária ou mesmo urgente. Como percebe o tema amor em sua obra?
Sim, não há mais temas senão o amor e a morte. Sempre tenho isso nos livros, uma problemática afetiva que se resolve bem ou mal. É verdade que sou romântico e essa característica impele-me para acreditar no amor. Mas está também em causa a questão da confiança. Acho que esse é um tópico essencial do que faço, pensar sobre a capacidade de confiar. É muito o que precisamos de conquistar no futuro. A humanidade não será viável sem se dar à confiança. Esse é também um ponto de partida para um amor saudável.

O que lhe atrai na ideia de falar sobre a família em seus livros? Ainda mais neste, em que a família não vem necessariamente de laço sanguíneo, mas uma união sagrada de quem se quer bem.
A família bíblica tem muito valor mas não tão absoluto. A incapacidade de alguém se entregar por inteiro numa amizade também é uma tirania preconceituosa. Somos muito criados para defender a família a todo custo e a ver alguém de fora como potencial inimigo. Abomino isso. O meu bem estar depende de gente muito distinta e eu quero seguir entregando meu empenho nessas amizades com toda a digna fidelidade de que for capaz. Gosto muito de ter família. Talvez por gostar muito queira que ela se estenda muito para lá do que o sangue manda.

No enredo, os personagens são colocados à margem por força da sociedade. Ao mesmo tempo existe ternura quando a história dura deles é descrita. O que diria sobre esses personagens, o que o motivou a criá-los?
Sempre tento que, enquanto leitores, estejamos disponíveis para transpor a barreira que nos separa do modo como são os outros. Interessa-me criar personagens que se exponham dum modo tão genuíno que se tornem verdadeiras e passíveis de ser entendidas. Acho que é isso, gerar entendimento. Normalmente fugimos do que não sabemos, do que não conhecemos. Quando se trata de pensar sobre os outros, é fundamental sermos capazes de respeitar melhor todas as suas diferenças.

Quando escreveu o livro pensava em alguma época específica? Você trata do preconceito, e essa indiferença quanto ao tempo parece sugerir que sempre existiu abusos. Isso o motivou a escrever?
Sempre escolho temas que me solicitam necessidade de um melhor entendimento. Crio ficções para estudar. Aprendo muito com essa meditação longa que é a escrita de um romance. Por isso abordo esses assuntos intrincados, assuntos que talvez já devessem ter uma solução há muito. Coisas do preconceito, por exemplo. Rejeitar algo que é da natureza de cada um e que se coloca como inofensivo é muito burro. Seria bom que não fôssemos mais burros.

Gostaria que falasse um pouco sobre os narradores de seus livros. Eles parecem indiferentes ao julgamento moral, mas ao mesmo tempo profundamente tocados pela tortura emocional dos personagens, uma ternura sincera a favor de qualquer característica que os torne humanos.
Sim, sempre opto por contar as coisas de um modo muito subjetivo, meio a retratar a delicadeza das personagens ou dos temas. Gosto de trazer as personagens muito para perto do leitor. Torna-se o texto em algo cru, sem tréguas, entre o muito belo e o assustador, entre o muito bom e o muito mau. Nessa oscilação acaba por ser mais natural a intensificação das personagens. Tornam-se vívidas. Como gente aqui da rua. Contar histórias é muito mágico, como contar já é uma personagem do livro.

No texto de agradecimento você escreve que "a cada 50 páginas de todos os livros quero ser outra pessoa qualquer e começar um outro livro qualquer que ainda não exista e sobre o qual não saiba quase nada". O que acha da escrita, da exposição e da influência nas pessoas?
Eu preciso de escrever. Muitas vezes, o que acontece é que tenho urgência. Preciso de ter mais do que posso ter, nos textos, quero dizer. É como amar várias pessoas, numa família por exemplo. Amar e querer ter várias pessoas por perto. Em algumas alturas, se não houver disciplina, os livros começam e atropelam-se uns aos outros, correndo o risco de sobrarem inacabados. Estou sempre fascinado com a oportunidade de imaginar a vida de outras pessoas. Isso retira-me também da minha vida. Gosto de não viver autocentrado. Gosto de pensar em ser outro.

A Cosac Naify opta por publicar seus livros diretamente do português de Portugal, adaptando ao novo acordo, mas com preferência à grafia lusitana nas situações em que se admite dupla grafia. O que acha da unificação das línguas? Acredita que a união completa facilitaria o movimento literário ou acha que implicaria em perdas de pequenas tradições da escrita? E no caso de seus livros, o que acha dessa opção de não adaptar ao português brasileiro?
Eu sou a favor das expressões diversas. Claro que é uma maravilha que possamos entender o que escrevem os brasileiros. Mas é importante que não se mude tudo, porque dentro de Portugal, como dentro do Brasil, as expressões também são muito distintas. Seria uma perda muito grande se impedíssemos modos de falar e de escrever típicos de alguma região. Existe uma norma, um padrão, mas depois disso a liberdade tem de existir e deve ser assumida. Eu prefiro que o público brasileiro contate com meus livros como eles são. Seria muito redutor fazer uma adaptação profunda, como se fosse uma tradução, porque nós podemo-nos entender. Isso também é fundamental. Continuar contatando com as diferenças para poder continuar entendendo.

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