segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Jorge para sempre amado

Hugo Viana



Em agosto Jorge amado (1912-2001) completaria 100 anos, e, como normalmente acontece em datas especiais, parece importante refletir sobre o autor, pensar a respeito de sua história e obras; neste caso, não apenas porque se trata de um escritor ainda relevante e inspirador, mas também porque estudar sua trajetória no cenário cultural brasileiro sugere meios para entender a história informal do Brasil, pela maneira como ele registrou contradições políticas, paisagens exuberantes e moral ambígua da sociedade nacional. 

Jorge Amado nasceu na Bahia, em Itabuna, mas muito cedo se mudou para Ilhéus, município vizinho que serviu de ambiente para alguns dos seus romances. Embora não se considerasse um autor inventivo (certa vez disse: "Pois sendo, como sou e se sabe, limitado no que se refere à criação literária não sei trabalhar senão a realidade que conheço por tê-la vivido"), Jorge é um dos escritores mais lidos do Brasil, com mais de 30 obras lançadas, além de estudos publicados que avaliam sua repercussão no meio político e cultural. 

"Sou ficcionista de dois temas únicos", escreveu Amado no livro "Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei". "As terras do sem fim do cacau, a vida popular da cidade da Bahia, voltejo em torno deles, repito cenários, personagens, emoções", indicou o autor. São assuntos recorrentes em sua literatura: tipos humanos populares de moral duvidosa e uma paisagem boêmia ou interiorana, ao mesmo tempo romântica, popular e bruta. 

Mesmo com essa repetição de assuntos, personagens e geografia, existe em seus livros um tratamento único que remete, através de comicidade dramática e indireta, a aspectos universais do comportamento humano. "Foi falando de uma Bahia que seria alegoria do Brasil que ele conquistou os brasileiros e foi o autor mais lido e traduzido no estrangeiro - creio que hoje só perde para Paulo Coelho", comenta Anco Márcio Tenório Vieira, professor do Departamento de Letras da UFPE. "A universalidade de sua obra se dá não por aquilo que pode parecer exótico aos olhos do estrangeiro, mas por aquilo que revela de uma civilização que soube equilibrar seus contrários. A obra de Amado tornou-se universal porque ela encerra uma das grandes utopias do homem: a convivência e a interpenetração cultural de matrizes tão diversas", sugere.

Jorge Amado registrou com humor e paixão a relatividade moral que rege relações no Brasil, em personagens construídos com intensidade emocional. Em "Tieta do Agreste" (1977), a protagonista é expulsa da cidade por suas aventuras sexuais, delatadas ao pai por sua irmã mais velha, casta e meio reprimida, mas volta 26 anos depois como uma misteriosa senhora rica. Em "A morte e a morte de Quincas Berro d'Água" (1961), um respeitável cidadão abandona sua reputação ilibada para se juntar à malandragem boêmia e por isso é tido como 'morto' para a família, composta, nas palavras do 'morto', por "jararacas" e "bestalhões". 

"Amado, assim como Nelson Rodrigues, fala de uma sociedade que tem uma moral para a casa e outra para a rua", ressalta Anco. "Um Brasil que denuncia a prática imoral dos políticos, mas que pratica o jeitinho brasileiro no seu cotidiano. Um Brasil que se diz cristão, mas que não hesita em recorrer a uma mãe de santo para curar doenças ou fazer despacho para conquistar um amor. É a velha dualidade entre o Brasil real e o Brasil oficial. Um, mestiço; outro, que se quer europeu. 'Gabriela' mostra bem isso: o mesmo moralista e defensor dos bons costumes é também o que frequenta de noite o Bataclan", analisa.


Popular entre leitores
e ignorado na academia

Ao mesmo tempo em que Jorge Amado tem defensores de sua escrita, leitores que atribuem ao autor importância literária, a crítica acadêmica, um dos meios historicamente importantes de legitimação intelectual, não possui o mesmo nível de aceitação. "Jorge Amado nunca teve (e acredito que continua não tendo) a devida atenção da academia", opina Anco. 

O estilo de escrita de Jorge Amado o aproxima do "romance de 30", o romance regionalista. "Esse romance tem uma missão civilizadora e denunciadora. Civilizadora porque eles têm um projeto de Brasil: um país mais justo, a defesa de um Estado moderno, a tolerância religiosa, a crítica às elites patrimonialistas. Denunciadora porque eles não constroem um Brasil idealizado, como fizeram os românticos, mas um Brasil que chega ao século XX sem sanar entraves sociais, políticos e econômicos de uma sociedade escravagista e desigual", conceitua Anco. 

"Se comparada ao interesse que outros escritores dessa década despertam no âmbito universitário, como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, a produção acadêmica sobre Amado tem sido, na sua maioria, rarefeita, lacunar e assistemática, contrastando com a enorme repercussão nacional e internacional de sua produção literária", avalia Sônia Ramalho, professora do departamento de Letras da UFPE. "Indagações sobre essa lacuna apontam para um preconceito acadêmico, responsável pela avaliação negativa e redutora dos aspectos estéticos da obra, pela concessão do autor aos ditames mercadológicos através da exploração do exotismo e dos estereótipos populares e regionais, pelo sectarismo de sua produção militante", comenta Sônia. 

Esse desacordo entre popularidade elevada junto aos leitores e aparente descaso na crítica acadêmica pode ser explicado pela forma como o autor constrói seus romances, a maneira como escreve sobre os mesmos temas sem no entanto apresentar uma interpretação próxima ao que a academia defende como adequado. "A grande popularidade de Amado como escritor advém, em parte, da confluência entre o projeto estético e o político-ideológico, produzindo uma literatura voltada para as classes desfavorecidas, acercando-se de seus problemas, denunciando, embora às vezes ambiguamente, as mazelas e o subdesenvolvimento da nação brasileira no contexto coronelista da República Velha", reflete Sônia. 

Anco identifica uma importante distância entre o conteúdo dos livros do autor baiano e o pensamento que rege às reflexões acadêmicas. "Jorge construiu um olhar sobre o Brasil que não é exatamente o olhar que a academia deposita sobre o nosso país (a leitura de esquerda, marxista, tida durante muitas décadas como a leitura correta para se interpretar o Brasil). A esquerda, como boa filha de um projeto civilizatório europeu, nunca gostou de ver em um mesmo prato, por exemplo, a denúncia das injustiça sociais e o desregramento sexual dos brasileiros. Tudo isso tinha, aos seus olhos, um cheiro de exotismo, de pouca verticalidade crítica. A crítica aos livros de Amado têm algo de purismo ideológico, de uma dificuldade de aceitarmos como nós somos"

Frases (do livro "Navegação de Cabotagem")

São Paulo, 1945
Foram dizer a Dona Angelina, mãe de Zélia, que a filha dela tinha largado o marido para ir viver com o escritor Monteiro Lobato. Dona Angelina, coitada, endoidoi. 

Rio de Janeiro, 1957
Meu sobrinho Paulo, filho de Fanny e Joelson, é uma criança adorável - em minha exclusiva opinião, a dos demais é outra, negativa. Paulo, quatro anos, loiro, forte, genioso, de grossura impecável, não falha nunca. Bruto, responde mal, olha com raiva, fecha-se em copas, eu me divirto com sua má educação, com elogios a alimento, contra todos eu o sustento: apoio decisivo. 

Rio de Janeiro, 1963
O que a Academia, falo da Academia Brasileira de Letras, nos dá não é nem a imortalidade (sic!), nem a glória (puf!), nem sequer a respeitabilidade, nada disso. Nos dá apenas, e isso sim, é muito, paga a fatuidade, o transitório, o disparate, o que ela nos dá é a convivência, a amizade. 

Bahia, 1974
Filmagem de "Dona Flor e seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, realizada numa tarde de domingo, dez vezes ao menos a mesma tomada foi repetida, pois a multidão reunida no largo para assistir entrava em delírio ao ver José Wilker - o Vandinho do romance - destacar-se de trás de uma coluna na porta do templo, nu em pelo, dar a mão a Sonia Braga dona Flor, que saía da igreja pelo braço de Mauro Mendonça, o farmacêutico Teodoro, descerem os três, de braços dados, felizes a ladeira - a gritaria, as vaias, os aplausos explodiam à visão dos quimbas de Vadinho, comprometiam o fundo musical, festivo, o som dos sinos. Bruno quase perde a cabeça, o povo gostou demais. 

Rio de Janeiro, 1979
Em Londres, o romancista peruano Mario Vargas Llosa me falara de seu intento: planeja escrever um romance sobre a saga de Canudos - e o escreve, "La Guerra del Fin del Mundo". Não me entusiasmei, mostrei-me reticente: um romance com o tema da guerra sertaneja, o Brasil dos beatos e cangaceiros? Temi que Mario fosse se meter em camisa de onze varas, pois sendo, como sou e se sabe, limitado no que se refere à criação literária não sei trabalhar senão a realidade que conheço por tê-la vivido, sou ficcionista de dois temas únicos, as terras do sem fim do cacau, a vida popular da cidade da Bahia, voltejo em torno deles, repito cenários, personagens, emoções. Daí ter me assustado com a notícia. 

Paris, 1991
O neto Jorginho, oito anos incompletos, pergunta à avó Zélia, 75 completos: Vó, você ainda transa com o avô?



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