quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Nelson Rodrigues: o inventor da vida real


Hugo Viana


Nelson Rodrigues nasceu em 1912, no dia 23 de agosto, no Recife, e seu centenário celebra esse escritor a quem, nas palavras de Ruy Castro, autor da biografia "O anjo pornográfico", "uma espécie de imã demoníaco estava sempre arrastando para uma realidade ainda mais dramática do que a que ele punha sobre o papel". 

Em diferentes tipos de texto - escreveu crônicas, romances, peças teatrais e matérias para jornais - Nelson falou com emoção graúda sobre o cotidiano de brasileiros, escreveu a respeito de uma moral ambígua, debateu aspectos da liberdade individual, comentou as formas sinuosas da política. "Nelson obteve uma síntese de língua escrita inédita, ao mesmo tempo culta e informal", avalia o escritor Luís Augusto Fischer. "Ele enxergou tragédia onde um outro observador só veria drama ou banalidade. Soube encontrar dimensões que dizem respeito a todos, pela abordagem trágica, como nas peças, ou pela abordagem ensaística, nas crônicas", comenta. 

Nelson foi o quinto de 14 filhos - sua mãe, Maria Esther, queria 12 -, e ainda criança se mudou para o Rio de Janeiro. Começou no jornalismo, aos 14 anos, com fascínio particular pela cobertura policial, surpreendendo ao fazer reportagens que hoje seriam eticamente questionáveis: adicionava carga dramática aos relatórios que os repórteres traziam da rua, ficcionalizando casos de assassinatos ou, sua especialidade da época, pactos de morte entre jovens namorados (uma de suas frases mais conhecidas revela esse fascínio: "O amor é eterno e, se acaba, não era amor. Quem nunca sonhou morrer com o ser amado, nunca amou ou não sabe o que é o amor. Pouco amor não é amor"). 

"Todos os assuntos e os personagens de Nelson surgem nas páginas policiais", comenta o escritor e jornalista Raimundo Carrero. "Ele entendeu, através do jornalismo, o espírito dramático e trágico do povo brasileiro e explorou-o em melodramas emocionais e terríveis, com exageros e pantomimas", destaca.

Ainda no jornalismo, Nelson escreveu crônicas e folhetins que seriam, anos depois, reunidos em livros e admirados por tratarem, através do melodrama, de tradições brasileiras. Seus folhetins, gênero literário normalmente visto como menos relevante do que o romance, foram escritos a partir de pseudônimos femininos; suas crônicas ocupavam páginas de jornais e pareciam falar diretamente sobre (e para) o público leitor, mapeando costumes da vida urbana. 

"Acho que meu pai tinha uma necessidade desesperada de expressar o que ele sentia, o que observava sobre o mundo a sua volta", diz Sônia Rodrigues, filha de Nelson e também escritora, que organizou o livro biográfico "Nelson Rodrigues por ele mesmo". "Ele precisava contar as histórias que vivia, via, ouvia e contar do seu ponto de vista originalíssimo. Escrever 'para a gaveta' não satisfazia meu pai, ele precisava vir a público mostrar como ele via o mundo", relata. 


Baseado em fatos reais

Nos textos de Nelson, crônicas ou romances, existe uma certa unidade de estilo, a habilidade fascinante do contador de histórias; são enredos que sugerem, através do melodrama, um tipo amargo de humor, tendo como inspiração, talvez por uma herança do jornalismo, a dramaturgia autêntica dos subúrbios cariocas, os roteiros genuínos de casos reais, em textos que exaltam sexo, suspense e, de forma livre, situações que analisam criticamente o cotidiano brasileiro. 

"Seus contos dão gosto de ler pela linguagem, pela verve, pelo retrato de época e pela mobilização de fantasias sexuais ainda relevantes", diz Luís Augusto Fischer. "Mas suas crônicas, me parece, permanecerão por muito tempo como relevantes, pelo caráter ensaístico, pela mescla tão bem realizada de intuições analíticas sobre o Brasil e a época, golpes de autocrítica inteligentes e radicais, mais uma abordagem humorística inesperada", sugere o escritor. 

Um de seus livros de crônicas mais conhecidos é "A vida como ela é...". Em 1950, Samuel Wainer, dono do jornal Última hora, queria uma coluna em que Nelson escrevesse, com toque ficcional, histórias baseadas na vida real, enredos que falassem sobre pessoas comuns com interferência de técnicas de criação literária. Como resultado, textos que parecem relatos vivos sobre a rotina de brasileiros, de famílias tradicionais, da classe média, anônimos que enfrentam, de forma natural, no dia a dia, dramas, constrangimentos ou emoções que geram empatia. 

Seus personagens, das crônicas ou romances, instigam reconhecimento mesmo com atitudes surpreendentes, que insinuam o que há de bom e hediondo no ser humano; dessa forma, Nelson parece expor, com algum drama e humor, o cinismo moral de sua época, ratificando um conceito de certa forma velado - a sugestão de existe uma moral para a rua e outra para a vida privada. "Meus personagens são tirados da vida real e da vida irreal", disse Nelson, numa de suas entrevistas. "As pessoas se chocam porque se reconhecem. Elas se sentem despidas", falou o autor. 

Quando escreveu com seu pseudônimo Suzana Flag, nos folhetins "Meu destino é pecar" e "O homem proibido", Nelson explorou motivações que o aproximam da narrativa popular, do tipo de texto que comunica com o maior número possível de leitores; amor, ciúme, casamento e morte são permanências que parecem resumir uma intensa e comovida relação entre realidade e literatura. 

"O jornal foi a grande escola de Nelson", diz Carlos Motta, escritor e mestre em literatura com dissertação sobre o autor. "Naquela época o jornalismo era muito diferente. A qualidade do redator era medida pela fertilidade de sua imaginação, que lhe possibilitava desenvolver com detalhes fictícios e saborosos, os inúmeros casos de assassinato, adultério e suicídio que ocupavam as páginas policiais. O estilo de redação se caracterizava pelo excesso de metáforas e adjetivos, sempre caros a Nelson em seus escritos posteriores. A expressão 'idiotas da objetividade', uma de suas mais célebres, foi cunhada para caracterizar a obtusidade dos representantes da nova imprensa que surgia", avalia Carlos.


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