sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Os limites do preconceito


Hugo Viana


"O lugar sem limites", livro do escritor chileno José Donoso (1924-1996), lançado originalmente em 1966 e de volta ao mercado em nova edição da Cosac Naify, tem como epígrafe um trecho de "Doutor Fausto", de Marlowe, em que Mefistófeles diz: "O inferno não tem limites, não se localiza num só lugar; porque o inferno é onde estamos, e onde for o inferno, lá estaremos para sempre". 

A escolha dessa citação não é aleatória; Donoso parece sugerir que a história narra o inferno de provações de seus personagens, a repetição de erros que permanecem através de gerações. O enredo fala sobre Manuela, travesti que comanda um bordel decadente numa pequena cidade do interior do Chile esquecida pela modernidade, El Olivo. Esse vilarejo é como uma cidade de velho oeste, onde boas maneiras e regras de etiqueta parecem sem sentido diante de homens de mãos grandes e pelos no peito que gritam bêbados por cerveja e mulheres. 

Donoso fez parte do Boom Latino-Americano, movimento literário que aconteceu entre os anos 1960 e 70, embora seja menos conhecido do que os escritores que lideraram o projeto, Julio Cortázar (Argentina), Carlos Fuentes (México), Mario Vargas Llosa (Peru) e Gabriel García Márquez (Colômbia). Donoso escreveu um relato sobre o período, o livro "Historia personal del 'boom'" (1972), ainda inédito no Brasil, mistura de ensaio e testemunho em primeira pessoa. 

Foi através do Boom que esses artistas cruzaram fronteiras e foram reconhecidos na Europa, com obras que misturavam influências do modernismo europeu e das vanguardas da América Latina. Fizeram livros que experimentavam aspectos da criação literária, não apenas testando formas diferentes de contar uma história, mas também através de enredos que sugeriam comentários engajados sobre o contexto político e social da América Latina. 

"O lugar sem limites" é centrado nos personagens Manuela, sua filha, Japonesita, e Don Alejo, político que é dono de boa parte de El Olivo. A partir de Alejo, Donoso constrói um panorama político em miniatura, criando um personagem que através de pequenos benefícios e sorriso duvidoso cresceu e assumiu o cargo de senador. Com Manuela e Japonesita, Donoso comenta a capacidade limitada de uma comunidade aceitar o que é diferente, como se o ambiente exterior deteriorado de El Olivo de alguma forma revelasse a humanidade monstruosa de seus habitantes. 

Como herança do Boom, o livro possui certa medida de experimentação, a vontade de demonstrar criatividade mesmo em pequenas frases. A narração, por exemplo, oscila entre os personagens sem marcação evidente, os pensamentos se confundem, as ações tornam-se ambíguas por causa da forma virtuosa como Donoso descreve acontecimentos. São métodos de escrita que embora permançam na literatura contemporânea parecem chamar mais atenção para o estilo do que para o conteúdo. 

O principal aspecto político do livro está na personagem Manuela, na capacidade de a partir da sexualidade gerar comentários sobre preconceito e violência social contra pessoas que exercem de maneira inofensiva o que os torna humanos. Manuela  é construída com incrível ambiguidade psicológica, às vezes consciente de sua condição social frágil, menosprezada por ser diferente do padrão, sendo chamada de veado ou degenerado, enquanto em outras ocasiões ela parece uma boneca de porcelana prestes a quebrar num lixão humano, mas ao mesmo tempo fascinada pela beleza que, como mulher, pode projetar para fascinar. 

SERVIÇO

"O lugar sem limites"
Cosac Naify, 160 páginas, R$ 29,90

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