quarta-feira, 10 de julho de 2013

O que se esconde nas sombras dos estranhos

Hugo Viana


A cada livro, Joca Reiners Terron, 45 anos, parece experimentar gêneros diferentes que permanecem à margem no mercado editorial. Seu novo trabalho tem um ótimo título, "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves", e parece uma união misteriosa entre atmosfera noir, horror expressionista e sentimentos confusos de uma cidade grande contemporânea. "Pode não parecer, mas detrás desse livro estão muitas noites perdidas, dois meses sem sair de casa e nos quais mal percebi o que acontecia ao meu redor. O resto é tesoura, cola e cesta de lixo", avisa o escritor cuiabano radicado em São Paulo. 

O livro narra um crime num zoológico, acontecimentos violentos e certamente bizarros durante um passeio noturno, fatos descritos através de cinco pessoas: um escrivão que reúne depoimentos, um taxista dono de três rottweilers, uma enfermeira especialista em pacientes terminais, um entregador coreano de um mercado e, no centro do enredo, como representante mística do gênero horror, uma criatura do tamanho de uma garota de 10 anos que não fala e usa capuz vermelho, luvas e galochas ("Enquanto escrevia eu pensava em fábulas dos irmãos Grimm e em Andersen", diz Joca). Aos poucos esses personagens abandonam rótulos, ganham complexidade dramática e ambiguidade moral, levando características do horror para caminhos do drama cotidiano. 

Os princípios do gênero parecem incentivos para uma criação pessoal; Joca revisa tópicos do horror e em seguida transforma essas regras em argumentos para uma história enraizada na sociedade atual. "Para ser absorvido por editoras de ficção literária é necessário que aconteça com o horror uma apropriação assim como ocorreu com o romance policial", explica o autor. "As regras costumeiras do gênero precisam ser quebradas, abandonando a caricatura estilizada e trazendo a ficção mais para perto do cotidiano. Nada é mais aterrorizante do que perder um familiar, o medo da morte, da doença, da incapacidade", sugere. 

O enredo traz temas presentes em obras anteriores do autor - um tipo de humor negro para tratar de conflitos existenciais, memória, família e finitude. O narrador é o escrivão, que de dia trabalha no mercado do pai e à noite na delegacia; é através dele que Terron explora um delicado drama existencial, o cinismo melancólico de permanecer como espectador da própria história, a revolta essencial contra certezas previamente firmadas. "Minha única regra para criar personagens é a liberdade total e irrestrita", diz Joca. "Isso significa que você pode tanto cagar tudo quanto fazer uma obra-prima. Depois de nove livros publicados e outros tantos naufragados cheguei à conclusão que tanto faz tanto fez. O juízo a respeito do livro está fora do alcance de seu autor", comenta.

Também está em pauta a descrição de um certo estado de espírito de São Paulo, comentários sociais como a crescente imigração coreana e boliviana e tiques nervosos de classes elevadas, aspectos intensificados por liberdades da ficção. "A cada livro que escrevo eu planejo cuidadosamente o assunto que vou abordar, em geral algo muito sério e relevante. Lá pela página 30, porém, esses planos já foram esquecidos, e ao terminá-lo percebo que acabei escrevendo sobre morte, solidão, inadequação, relações familiares, memória e imaginação. Como autor, estou delimitado pelos meus defeitos", ressalta o autor. 

No enredo há ainda fabulações sobre o leopardo-das-neves. O animal é citado em dois momentos; protagoniza uma narrativa interna que, na aparência, não possui conexão direta com a história, e surge também dentro do enredo principal, como habitante recente do zoológico. Joca incorpora ao romance o folclore misterioso que envolve o leopardo, lendas fundadas na Ásia sobre a existência solitária e enigmática desse felino. "Não faço ideia que metáforas o leopardo-das-neves trouxe para o livro. Mas o bicho se impôs, creio que pelo fato de ele ser tão estranho, assim como o restante dos personagens. O escritor uruguaio Mario Levrero acreditava que os livros existem em algum lugar anterior à consciência. É por aí, não tem muita explicação", reflete o autor.

"A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves", de Joca Reiners Terron
Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 36






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