quarta-feira, 17 de julho de 2013

Otra língua e uma nova leitura

Hugo Viana

Países da América Latina possuem uma relação curiosa com a literatura. É mais fácil conhecer autores de língua inglesa, clássicos ou contemporâneos, do que escritores que contribuíram para a construção da história literária latino-americana. 

São esses autores que o projeto Otra Língua pretende publicar. A proposta foi bancada pela editora Rocco e criada pelo escritor Joca Reiners Terron. Os primeiros lançamentos são "Deixa Comigo", do uruguaio Mario Levrero, e "Asco", do hondurenho Horacio Castellanos Moya. "Em 2010 sugeri à Rocco que comprassem os direitos da obra de Mario Levrero. Eles compraram 'Deixa Comigo', 'La Ciudad' e 'La Novela Luminosa'. Estou traduzindo os dois que faltam. Com a aceitação, sugeri a coleção Otra Língua", explica Terron. 

O projeto pesquisa autores fora da rota padrão, traduzindo obras que investigam propostas arrojadas de narração ao mesmo tempo em que mantêm conexão com aspectos tradicionais. "Gostaria que a coleção preenchesse algumas lacunas, publicando autores de qualidade e singularidade", comenta Joca. "Entre eles, alguns mestres do passado  e contemporâneos cuja obra passou despercebida no Brasil. Reunir esses nomes em um mesmo espaço talvez ajude a atrair atenção do público, o que talvez não acontecesse se fossem publicados isoladamente", avalia. 

Dessa forma o mercado editorial encara um problema de comunicação antigo: as ausências, nos mercados brasileiros e de língua espanhola, de autores relevantes e menos conhecidos. "Projetos como esse são necessários e tem que se dar em várias instâncias, não apenas através do mercado, mas também das instituições públicas que fomentem a difusão e a tradução de autores latino-americanos", avalia Alfredo Cordiviola, professor do departamento de Letras da UFPE. 

"Tem avançado bastante o mútuo conhecimento, mas sempre há autores para descobrir", ressalta Alfredo. "Acho que projetos como esse são fundamentais para aprofundar o conhecimento das literaturas nacionais. A publicação destes inéditos em língua portuguesa é um acontecimento importante no mercado editorial brasileiro, e cujas consequências serão advertidas a longo prazo, como mais uma contribuição nesse caminho de descobertas", opina. 

"O mercado procura o lucro. A lógica editorial se baseia na facilidade extrema e no total descompromisso com o enriquecimento cultural, considerando que é mais vantajoso publicar o romance de estreia de um autor norte-americano recém saído de um curso de escrita e avalizado por um agente literário e uma editora estrangeira de porte (mesmo que não tenha vendido nada) do que um argentino ou brasileiro formidável" - Joca Reiners Terron

Testemunho raivoso
sobre um país em crise 



O ufanismo é um sentimento complexo: adorar com orgulho o país onde nasceu não deveria implicar em ignorar o que funciona de errado na nação. Em "Asco", Horacio Castellanos Moya comenta com raiva tudo que entende como desagradável em El Salvador. O autor nasceu em Honduras, muito jovem foi morar em El Salvador, e aos 22 anos se mudou para o Canadá. A condição de cosmopolita parece fazer da prosa de Horacio um lamento universal sobre política, cultura e sociedade.

Moya construiu uma narrativa ágil, em que um professor de literatura que mora no Canadá volta a El Salvador por causa da morte da mãe. Lá encontra com um amigo, Moya, um escritor que ainda reside no país. Num bate papo em um bar, acompanhado por doses de uísque, o professor fala irritado sobre tudo de ruim que há no país - toda a narrativa se concentra nesse monólogo raivoso. 

Moya explicou que sua proposta era fazer uma espécie de adaptação do projeto literário do escritor austríaco Thomas Bernhard, reconhecido por usar a literatura como ferramenta para expor o que havia de desequilibrado em seu país. O resultado é um livro que através da ironia chega à realidade - e que rendeu ao autor prêmios e ameaças de morte. 

Revisão humorada
do gênero policial 



O uruguaio Mario Levrero (1940-2004) parece representar o ideal do projeto Otra Língua: é uma joia a ser descoberta. O autor nunca foi traduzido, e além de operar em diferentes formas (tem trabalhos como escritor, jornalista e em quadrinhos), também usou pseudônimos - o que dificulta a pesquisa sobre seu vasto trabalho. 

Em "Deixa comigo", Levrero exercita uma de seus interesses, o romance policial, mas o tratamento dado ao gênero clássico é pessoal: o autor cria um enredo de humor e tensão literária. O protagonista é uma espécie de caricatura de Mario: um escritor de meia idade, acima do peso e com pouco dinheiro na carteira. Enquanto negocia a venda de um livro, o personagem recebe uma missão: encontrar o autor de um manuscrito que maravilhou os editores. 

Nessa viagem pelo interior rude do Uruguai, Levrero atualiza o gênero policial através de uma investigação cercada por equívocos e expectativas frustradas - ao mesmo tempo em que reflete, de maneira enviesada, sobre a condição social do país; as cidades que ele visita têm seus nomes alterados pelo narrador: chamam-se Penúrias e Misérias, habitadas por pessoas excêntricas de capacidade intelectual duvidosa. 

Lançamentos

"Deixa Comigo", de Mario Levrero
160 páginas, R$ 27

"Asco", de Horacio Castellanos Moya
112 páginas, R$ 23,50

Próximos livros

"Como Me Tornei Freira", de César Aira (no mesmo volume será incluído "A costureira e o vento") - 

"Os Lemmings e Outros", de Fabián Casas

"Águas-fortes Cariocas", de Roberto Arlt  

"O Corpo em que Nasci", de Guadalupe Nettel


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