segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Em busca das mitologias da vida


O escritor carioca Alberto Mussa parece motivado pela história do Brasil, pela natureza de mitos da cultura árabe, africana e indígena, incorporando a atmosfera alegórica dessas narrativas em seu processo de escrita. A editora Record começa a relançar os livros de Mussa, com novo projeto gráfico e textos críticos. Os primeiros são "O enigma de Qaf" (2004) e "O senhor do lado esquerdo" (2011). 

A escolha desses livros para iniciar a reedição não parece aleatória; são obras que apresentam o método de escrita do autor, materializam sua proposta conceitual, reforçam a existência de um projeto literário baseado na documentação de mitos, transformando aspectos da cultura popular em criação literária, em enredos de ficção sobre a identidade de cidades, pessoas. 

"O senhor do lado esquerdo" usa estratégias do gênero policial para contar a história do assassinato do secretário da presidência da República em um prostíbulo de luxo no Rio de Janeiro, em 1913. A partir deste crime, o autor apresenta eventos excêntricos da história carioca, relatos sobre feiticeiros, índios, tesouros escondidos, criando, aos poucos, uma antologia de acontecimentos exóticos. 

Mussa escreve no limite sinuoso entre ensaio e ficção, pesquisa histórica e arranjo literário, sugerindo a dúvida sobre a natureza do enredo. A ambiguidade cresce gradualmente, provocando certa confusão sobre a origem das narrativas contadas - informações históricas ou simulações autorais? Talvez seja essa região imprecisa que torna o livro especial: o momento em que fatos se tornam lendas, quando rumores se transformam em fabulações que se misturam à própria história de uma cidade. 

"O enigma de Qaf" é um tipo de romance de aventura, a saga de um poeta-herói em busca de um poema. A obra é composta por três narrativas. Há a história do protagonista, dividida em 28 capítulos, que correspondem às letras do alfabeto árabe; entre esses segmentos, Mussa escreve trechos chamados "Parâmetros", lendas de heróis árabes, e "Excursos", textos relacionados ao enredo principal. Essa espécie de rigor estrutural não diminui o impacto da escrita e a perícia da construção progressiva de uma espécie de mistério. 

"Literatura representa 
a busca pela alteridade"

Para estes relançamentos, você releu os livros? Tem o hábito de voltar a seus textos (e modificá-los)?
Fiz uma revisão, e as modificações foram mínimas, apenas corrigi defeitos. Não tenho o hábito de reler meus textos, nem rescrevê-los. Mas quando se trata de reeditá-los, é sempre importante rever, sempre é possível melhorar, sempre tem um erro, ou uma frase que poderia ser mais clara, mais elegante.

Você escreve, na introdução de "O senhor do lado esquerdo", que "a literatura, para ser minimamente interessante, tem que ser diferente da vida". Pode desenvolver essa ideia?
Só a experiência literária, a experiência da leitura, permite que um indivíduo viva vidas que não poderia, fisicamente, viver. Literatura, para mim, representa essa busca pela alteridade. Quanto mais radicalmente buscada, melhor. Por isso, tenho pendor por narrativas históricas e fantásticas. A literatura pode ser uma máquina do tempo. A literatura pode fundar universos. Acho certa perda de tempo ler um livro e encontrar histórias já vividas por mim ou por pessoas que eu conheço.

Neste livro, além do enredo principal, há pequenas narrativas que criam uma atmosfera fantástica em torno da história do Rio de Janeiro. Qual seu interesse ao reunir esses casos? 
O objetivo de todas as histórias paralelas é exatamente esse: o de criar um clima meio fantástico, meio lendário, porque a matéria-prima da minha ficção é a mitologia. Todos os meus livros têm um fundamento mítico. É através dessa perspectiva que eu vejo a história, as cidades, as pessoas, a vida em geral. Existe um outro motivo para as histórias paralelas: na verdade, faz parte do meu próprio processo de criação, gosto de eleger um tema, um princípio ou um problema e explorar variações. Um leitor atento percebe que o fundo comum das histórias de crime neste livro é o mesmo.

O texto mistura realidade e ficção, ensaio histórico e narrativa policial. Que tipo de sensação buscava provocar ao propor essa união? 
Tenho muito interesse, sempre tive, na narrativa policial. Porque permite uma abordagem plenamente intelectual, mais ensaística e menos psicológica. E minha literatura foge intencionalmente do psicologismo, que domina a ficção ocidental desde pelo menos o século 19, e desde sempre o romance brasileiro. Também não acredito que a literatura "de gênero" (policial, histórico, aventura, ficção científica) seja necessariamente subliterária, como costuma ser encarada. 'Os irmãos Karamazov', por exemplo, é tecnicamente um romance policial; e não deixa de ser uma obra-prima. 'Moby Dick' é um clássico do romance de aventura e está no mesmo patamar. 

Livros que unem História e técnicas literárias parecem provocar uma tensão: a dúvida sobre a natureza do conteúdo. É uma sensação que te atrai?
Meus livros podem dar falsa impressão de que derivam de pesquisa. As únicas preocupações que me levam a consultar livros são relativas a verossimilhanças históricas. Por exemplo, se eu for narrar uma cena acontecida no tempo de dom João não posso introduzir um lampião a gás, que só veio depois. Não posso falar na floresta da Tijuca nos meados do século 19, quando ainda não tinha sido replantada. Para isso, disponho de volumes específicos, dicionários de ruas, compêndios de história que me resolvem em 15 minutos o problema. Praticamente todos os episódios que parecem reais, nos meus livros, são ficção, ainda que baseados em outro fato real similar. É a forma de narrar que faz cria essa aparência. Um truque literário, apenas. 

Como percebe a influência de outras culturas, especialmente a africana, a árabe e a indígena, em seus livros? Diria que é uma forma de investigar narrativas de diferentes regiões do mundo?
Embora as três estejam presentes na minha obra, minha relação com cada uma é muito diferente. Apesar de descender de libaneses por parte de pai, nunca falei árabe em casa, fui aprender de maneira autodidata, quando meu pai e meus avós tinham morrido. Minha relação com a cultura árabe, assim, é apenas intelectual. Sobre as culturas indígenas, minha relação é mais antiga, da época em que ingressei no doutorado para estudar as línguas tupis. Conheci a obra do antropólogo Lévi-Strauss, especialmente a série 'Mitológicas', que exerceu em mim uma influência enorme. Muita gente aponta que sou influenciado por Borges. Não nego; mas Lévi-Strauss é seguramente maior e mais importante. Sobre as culturas africanas, não seria justo dizer que têm influência na minha literatura, porque se trata da minha própria cultura. Minha formação estética e religiosa; minha sensibilidade, afetividade; minha perspectiva intelectual, a maneira de me relacionar com o mundo, é toda africana. Os mitos africanos, ou mais exatamente os mitos nagôs ou iorubás, são os meus mitos. São os mitos que aprendi nos terreiros que frequento desde criança. Está na minha essência. É mais correto dizer que a literatura ocidental me influenciou, porque me expresso na tradição desse cânone; não o contrário. Meus livros têm um projeto muito consciente de oferecer uma alternativa cosmogônica não-ocidental. Se o romance precisa agora reformar os conteúdos, nada melhor do que buscar estímulo em formas de ver o mundo diferentes da sociedade dominante.

Saiba mais

TRADUÇÃO - "O enigma de qaf" foi traduzido para o árabe e publicado no Egito. A negociação começou a partir do interesse do ensaísta de literatura do país árabe Wail Hassan, que indicou o livro para o Centro Nacional de Tradução do Egito. 

OBRAS - Além desses dois lançamentos, Mussa é autor dos livros: "Elegbara" (1997); "O trono da rainha Jinga" (1999); "O movimento pendular" (2006); e "Meu destino é ser onça" (2009).

Serviço

"O senhor do lado esquerdo"
Record, 304 páginas, R$ 35

"O enigma de qaf"
Record, 272 páginas, R$ 35



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