Hugo Viana
No meio literário, polêmicas, bobas ou ideologicamente complexas, parecem sugerir a necessidade de refletir sobre os diferentes setores do mercado. A controvérsia mais recente foi a premiação da 54ª edição do Jabuti, em que o Jurado C (o crítico literário Rodrigo Gurgel) deu notas baixas para os principais concorrentes na categoria melhor romance, como Ana Maria Machado (entre 0 e 1,5), e elevadas para o estreante Oscar Nakasato (estratégia possível graças a mudanças nas regras do Jabuti: até o ano passado a nota mínima era 8). A atitude de Rodrigo gerou discussões sobre a crítica literária, a relevância de festivais, a legitimação de prêmios. De 18 de outubro, quando foi revelado o resultado do Jabuti, até 28 de novembro, dia em que foi oficialmente anunciada a identidade do Jurado C (a Folha de S. Paulo antecipou a informação no começo de novembro), Rodrigo não podia se pronunciar, por questões éticas de contrato, sobre os ataques que recebeu; leitores, escritores e editores questionaram seus métodos de análise e sugeriram, com certa desconfiança, que Gurgel quis destacar autores que ele gosta e criticar por rebeldia escritores de prestígio. Nesta entrevista Rodrigo explica sua noção de crítica literária e sua participação no Jabuti.
Durante parte de outubro e novembro sua participação no Jabuti foi exaustivamente comentada, e você, no entanto, não podia defender suas perspectivas. Gostaria de deixar este espaço livre para você comentar qualquer aspecto que sinta necessidade particular de falar.
Obrigado. As críticas agressivas, sarcásticas ou descabidas que recebi fizeram-me lembrar do grande crítico inglês Samuel Johnson. Ele dizia: “É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter”.
Como é seu método de análise literária? Você possui regras de
conduta como crítico que são testadas ou cada obra sugere uma maneira
particular de apreciação?
O
romance é, por excelência, o gênero para onde convergem todas as possibilidades
da criação literária. Aliás, a literatura é a arte do possível, no sentido de
concebível. Tudo o que existe ou pode existir cabe nesse universo. Assim, o
crítico deve estar aberto a diferentes leituras. Quando inicio um livro,
procuro estar livre de ideias preconcebidas. Quero que a obra fale, dialogue
comigo. Mas é preciso que ela seja uma estrutura coerente, com vida própria. É
preciso que a obra responda a todas as questões que ela mesma se coloca; e deve
fazê-lo com tal perfeição que, quando chegamos à última página, temos certeza
de que o autor jamais existiu – e que a obra é uma espécie de geração
espontânea.
De acordo com seus valores de análise, poderia explicar as notas
do jabuti, o zero de Ana Maria Machado e o 10 de Nakasato?
Minhas notas
nascem de uma leitura fria e imparcial desses romances. "Infâmia", de
Ana Maria Machado, é um romance de propaganda ideológica. A autora tem algumas
teses que ela pretende defender, comprovar a qualquer preço. Para fazer isso,
torna o enredo esquemático e cria personagens sem dúvidas, que, durante todo o
livro, ficam repetindo os mesmos julgamentos políticos e históricos. A
narrativa possui um didatismo escancarado - e o discurso indireto livre,
recurso fartamente utilizado no romance, não consegue tornar a autora
invisível. Além disso, há várias cenas inverossímeis. É um romance
proselitista, nada mais. Quanto a "Nihonjin", de Oscar Nakasato, que
mereceu nota dez, é uma narrativa que trata da imigração japonesa no Brasil,
transformando dramas individuais ou familiares em sínteses dos conflitos
humanos. O autor trabalha com diferentes pontos de vista, com quebras de
continuidade e distintos eixos de tempo. Nakasato quer apenas contar uma
história - e não fazer panfletarismo. As personagens, principalmente as
femininas, são construídas de forma admirável. O autor sabe trabalhar os
aspectos líricos sem desprezar a dramaticidade. E domina muito bem a linguagem.
Em seu livro "Muita retórica - Pouca literatura (de Alencar a
Graça Aranha)" você promove uma espécie de revisão da história da
literatura nacional, dos cânones estabelecidos. Acha que autores do passado são
geralmente tratados com excessiva reverência?
Meu
livro é fruto do projeto que desenvolvo, desde 2010, no jornal Rascunho. Um projeto cujo objetivo é
reler os principais autores da prosa nacional, começando pelos românticos e
chegando aos dias atuais. Nesse primeiro volume, publiquei os ensaios que
tratam dos prosadores do século XIX. Respondendo à sua pergunta, sim, há
excessiva reverência em relação a certos autores. Aliás, não canso de me
surpreender com o fato de algumas avaliações críticas se repetirem ao longo de
décadas. É curioso que ninguém diga, por exemplo, o quanto Raul Pompeia pode
ser pernóstico ou que Adolfo Caminha escreve realmente muito mal. Tenho a
impressão de que parcela da crítica pretendeu criar um cânone brasileiro à
força. Foram escolhendo os autores que pareciam menos piores e passaram a
enaltecê-los de maneira exagerada, a fim de satisfazer uma necessidade
meramente nacionalista. Ao agir dessa forma, referendaram uma literatura na
qual, dentre outros defeitos, a eloquência prepondera. E ainda hoje encontramos
esse problema: o autor que se enamora do seu próprio discurso e não percebe o
abismo que separa a literatura da eloquência.
O que diria sobre o momento atual da crítica literária? Não apenas
nos jornais, mas também na internet e na academia.
A
hegemonia do estruturalismo e do desconstrucionismo tem causado grandes
dificuldades ao sistema literário nacional. Em primeiro lugar, esses estudiosos
usam um jargão acadêmico hermético, incompreensível ao leitor comum.
Esqueceram-se de que a crítica literária é, antes de tudo, um instrumento a
serviço do homem – ou seja, acham que a crítica tem um fim em si mesma. Tal
comportamento afasta os leitores. Em segundo lugar, por valorizarem
excessivamente a forma, a linguagem, deixaram de acreditar que a obra literária
deve dialogar com o mundo. Para eles, a obra é autossuficiente. Ora, uma
literatura que dialoga apenas consigo mesma acaba se transformando num eterno
exercício artificial de vanguardismo, nada mais. Esses dois problemas levam a
um terceiro: se a obra não deve dialogar com a realidade e se o que realmente
importa são os malabarismos linguísticos que o autor inventa, então não há
necessidade de julgamento – e a crítica torna-se, assim, apenas um exercício de
narcisismo. Dessa forma, chegamos ao quarto e último problema: se não há
necessidade de julgamento, vivemos numa espécie de permanente bom-mocismo, de
hipocrisia generalizada, em que o crítico se restringe a passar a mão na cabeça
dos escritores e tratar todos da mesma forma, inclusive os medíocres. Há
críticos, evidentemente, que fogem desse padrão de comportamento, mas formam a
minoria. Com relação à segunda parte da sua pergunta, não me estenderei. Digo apenas
que um crítico como Álvaro Lins faz muita falta nos dias de hoje.
Ao dar uma nota zero, num evento importante, a uma autora
prestigiada, você motivou revolta de autores, leitores e editores. Acha que o
meio literário nacional suporta um posicionamento crítico de ideologia firme?
Minha
resposta acima, sobre a crítica atual, explica um pouco as patologias que
afligem o nosso sistema literário. Compreendo que um editor defenda seus
escritores dos críticos severos. Mais que compreensível, é um belo gesto. Também
compreendo os autores que desejam ser sempre bem avaliados, pois faz parte da
nossa natureza almejar só elogios. Entretanto, não se pode exigir que os
críticos não valorizem os escritores que consideram bons. Ou que não deem zero
numa votação em que o zero era uma das notas possíveis. Análises duras, firmes,
fazem parte de qualquer sistema literário sadio.
Você já foi jurado no Jabuti em outras ocasiões, além da
experiência como crítico. Poderia, através do que você leu, fazer uma
avaliação sobre a literatura contemporânea brasileira?
Apesar
de estarmos impregnados da cultura contemporânea, relativista, materialista, de
um niilismo que muitas vezes chega a ser atroz, alguns escritores têm, pelo
menos, abandonado o vício de recriar um dialeto exclusivo, que só pode ser
entendido por eles e meia dúzia de amigos. Há ótimos escritores, dispostos a
simplesmente contar boas histórias, corajosos a ponto de desobedecer o que
ensinam os departamentos de Letras das universidades, abandonar o pedantismo e,
por que não?, escrever inclusive com bom humor, sem se preocupar com discursos
politicamente corretos. Logo, logo eles começarão a perceber que a literatura
não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.
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