quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Em busca de uma identidade


Hugo Viana


Em seu novo livro, "Barba ensopada de sangue", o escritor paulista Daniel Galera parece amadurecer temas presentes em sua obra pregressa: amores desfeitos, famílias em desacordo, personagens nos limites de uma crise existencial - uma espécie de antologia de um mal estar contemporâneo influenciado pela cultura pop. No enredo, o protagonista procura notícias sobre a misteriosa morte do avô, décadas antes, em Garopaba, ao mesmo tempo em que lida com o suicídio do pai. Aos poucos o livro se transforma numa espécie existencial de romance policial, como se Daniel investigasse as evidências de um crime não pelo interesse por respostas, mas pela necessidade de encontrar ordem ou razão nos fatos. O protagonista, um professor de educação física, tem uma condição neurológica peculiar: não é capaz de lembrar de rostos das pessoas que conhece, não apenas amigos e familiares, mas também ele mesmo (atrás de suas fotos ele anota: "EU"), o que sugere o enredo também como uma simbólica busca por identidade. É um livro que se destaca por elementos tradicionais da literatura: história que envolve o leitor e diálogos que ampliam o panorama emocional dos personagens. Nesta entrevista, o autor explica seu processo de escrita e a notoriedade internacional depois da Granta. 

O primeiro capítulo é uma conversa entre pai e filho, um diálogo forte em que muito é explicado e mais ainda sugerido. Gostaria que falasse sobre esse primeiro trecho e se essa versão (que foi enviada à Granta) sofreu alterações. 
Foi resultado de quase um ano e meio de anotações mentais e rabiscos em caderninhos. O objetivo era desenvolver a figura do pai do protagonista, que sumiria depois na narrativa, e ao mesmo tempo colocar os trilhos para a jornada do personagem, estabelecendo a obsessão com a figura do avô e seu destino obscuro. Escrevi o capítulo em 48h, em Garopaba, algumas semanas antes de ir embora da cidade, e o texto já saiu praticamente na forma final. Eu já tinha quase todo o livro planejado quando escrevi essa abertura. Fiz algumas alterações ao longo da escrita, e uma revisão mais séria antes de enviar à Granta. Quase nada mudou entre a versão que saiu na revista e a que está no romance.

Os diálogos parecem especialmente eloquentes na capacidade de sugerir sentimentos e o perfil dos personagens. Como você trabalha os diálogos?
Minhas diretrizes para escrever diálogos: 1) confiar no meu "ouvido literário" e transcrever fielmente as falas que funcionam na minha imaginação; 2) tentar escrever como as pessoas realmente falam, mas tendo em mente que uma transposição direta da fala coloquial nem sempre soa convincente. Por escrito, é preciso seguir as regras peculiares da leitura; 3) Diálogos ricos precisam alternar entre o explícito e o insinuado, entre o dito e não dito, entre o grosseiro e o elevado, entre o monossílabo seco e o monólogo descontrolado; 4) Nunca usar o diálogo como muleta ou ênfase da narração, e sim como um complemento dinâmico.

O protagonista investiga a misteriosa morte do avô. Nessa busca você parece transformar num tipo criativo de romance policial. Como foi construir novas possibilidades ao gênero? 
De fato, eu pretendia usar elementos e o clima dos romances policiais e de mistério, mas sem me preocupar em seguir rigorosamente as convenções desses gêneros. A investigação policial em si é frouxa e o mistério que está no centro da história não é propriamente resolvido. As versões sobre o assassinato nunca são como peças que se encaixam, elas vão se sobrepondo de forma difusa, se misturando a mitos e superstições. Uma das ideias do livro é que não há versões definitivas para a realidade, para a identidade das pessoas, para o passado. São narrativas sempre em progresso, às quais atribuímos variados graus de crença.

O livro parece especialmente interessante em algo que permanece pouco visto em autores contemporâneos: o prazer por contar histórias, envolver o leitor através do enredo. Seu interesse na literatura está mais ligado a uma noção clássica do que experimental? 
Como leitor, tenho uma certa preferência por uma literatura mais focada no enredo, e como escritor sou praticamente limitado a essa abordagem. Mas também gosto da literatura centrada na exploração da linguagem, do intextexto, da metaficção. No fundo, os bons livros precisam triunfar nas duas medidas, no enredo e na linguagem. Um livro centrado em enredo precisa demonstrar um trabalho cuidadoso na linguagem para ser envolvente, e a literatura experimental precisa de alguma espécie de fio condutor narrativo para não perder o leitor. Existe algo precioso no enredo, algo que não se encontra em meios que predominam agora, como a televisão, os games e as redes sociais. Se a literatura for competir nos termos desses concorrentes, está perdida. 

No enredo, alguns trechos parecem testemunhos de experiências vividas, como se a inspiração surgisse do seu contato com a realidade. Existe alguma separação entre a imaginação e a literatura que vem do real na sua escrita?
O texto ficcional em si não é realidade nem imaginação, é uma invenção alicerçada nessas duas bases. Encaro meu trabalho desse ponto de vista. Não hesito em usar a experiência pessoal ou narrada por terceiros na composição da história, mas faço uso totalmente livre desses elementos e os combino com a fabulação sem me preocupar demais com a distinção dessas esferas. Esse é o ponto de vista do trabalho. De um ponto de vista mais distanciado, é claro que há uma separação entre vida e literatura, entre realidade e imaginação. No fundo tudo são narrativas, mas para fins práticos, a distinção entre vida real e ficção é essencial. Não me confundo com meus personagens e coloco uma separação clara entre a ficção dos meus livros e minha vida particular.

Você faz parte de um grupo de autores jovens que vinham recebendo elogios, e agora, com a Granta, iniciam carreira no exterior. O que diria sobre esse momento da literatura nacional, e que possíveis repercussões prevê com essa circulação internacional?
Viajei um pouco nos últimos meses para divulgar a Granta e o meu novo livro, e fiquei surpreso com a influência da revista no exterior. Nos EUA, Inglaterra e em outros países, o pessoal presta muita atenção. É claro que a seleção da Granta é somente um recorte entre muitos possíveis, mas acredito que a edição vai ser importante para a visibilidade da literatura brasileira no exterior. O momento é muito animador. Com a aproximação da feira de Frankfurt de 2013, que terá o Brasil como país homenageado, as editoras estrangeiras estão procurando saber mais sobre nossa cena contemporânea e tentando transcender os estereótipos ultrapassados que são associados à nossa literatura. 

"Barba ensopada de sangue"
Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 39,50

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