segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A permanência de Graciliano Ramos

Hugo Viana


O escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) pertence a um grupo de autores que através da ficção, dos mecanismos da criação literária, parece perseguir um tipo de fidelidade crítica ao contexto histórico e político no qual trabalha. Na prosa de Graciliano, a literatura se torna um meio para comentar, ou afetar, o pensamento da época. "A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer", falou certa vez o autor, explicando sua percepção sobre arte. 

Graciliano investigou os efeitos psicológicos da crise social em homens comuns, pessoas tocadas pelo desespero por causa da fome, miséria ou ausência, se posicionando como uma espécie de intérprete de políticas sociais. Seus livros inspiraram o cinema brasileiro, gerando três filmes que permanecem na cinematografia nacional como obras essenciais: "Vidas Secas" (1963), "São Bernardo" (1972) e "Memórias do Cárcere" (1984). Os três foram reunidos num box, lançado pelo Instituto Moreira Salles (R$ 119). 

Trabalhos dirigidos por autores importantes - Leon Hirszman assinou "São Bernardo" e Nelson Pereira dos Santos filmou os outros dois. "Falar desta trinca de filmes é tocar no que há de melhor dentro do cinema brasileiro", opina Fernando Mendonça, crítico e pesquisador de cinema e literatura. "São obras que marcaram nosso audiovisual. Pensar na relação que conecta suas origens, os livros de Graciliano (também o que há de melhor em nossa literatura), ilumina um rico processo de interpretação das linguagens", ressalta. 

 "'Vidas Secas' é conhecido pela forma precisa como Nelson conseguiu traduzir cinematograficamente o texto, ou seja, a sua aridez, a linguagem crua e direta. Os diálogos são precisos e os ruídos e silêncios, junto com a fotografia contrastada, criam uma atmosfera idêntica à trama criada por Graciliano. O filme se adequa aos princípios estéticos que norteavam o Cinema Novo que prezava, em sua primeira fase, a mesma linguagem do neo-realismo italiano", opina Alexandre Figueirôa, pesquisador de cinema e professor da Unicap. 

"São Bernardo é uma obra que dialoga também com o Cinema Novo do qual Hirzsman era um dos integrantes", continua Alexandre. "Também é marcante a fidelidade ao texto, embora o cineasta tenha feito adequações de modo a potencializar o foco no narrador/protagonista e estabelecer uma relação das questões políticas com o que o Brasil vivia na época. 'Memórias do Cárcere' busca um diálogo mais próximo com o espectador dentro de uma narrativa mais convencional", arremata.

Nelson e Leon conseguiram um equilíbrio: ao mesmo tempo em que respeitam o texto original, mantendo o desenvolvimento dramático e o conteúdo político, fazem digressões pessoais. "Os três filmes são rigorosos, asfixiantes, exatamente como o texto inspirador; eles concentram o movimento cinemático em gestos mínimos, potencializam o tempo através da dilatação, do corte. É por este respeito à encenação que se tornam grandes", avalia Fernando. "Leon e Nelson renovaram a perspectiva da narrativa por não temerem na economia dos meios; seus cinemas extraem a grandiloquência das pequenas coisas, fazem o máximo a partir do ínfimo, talvez por isso tenham compreendido o intento de Graciliano: ser maior do que as circunstâncias", sugere. 

Filmes

"Vidas Secas" (1963)


Uma família caminha pelo Sertão em busca de sobrevivência. A certa altura, o filho pergunta à mãe o que é o inferno. A resposta parece chegar aos dois: o inferno está aqui, na condição de existir como bichos, sob o calor inclemente do sol, fugindo pelo deserto em busca de algo impossível de adquirir ao mesmo tempo em que é essencial: alimento, afeto. 

"São Bernardo" (1972)

Paulo é um bruto existencial, um homem desfavorecido economicamente que se torna dono de terras e pessoas. Mesmo adquirindo o que sua família prescindiu não consegue enxergar a felicidade. Destaque para Madalena, personagem feminina de excepcional profundidade, e para a música de Caetano, um lamento lúgubre que antecipa o futuro dos personagens. 

"Memórias do Cárcere" (1984)

O filme parece refletir sobre o significado da cadeia. Não apenas a prisão real, a crise em um ambiente carcerário, mas também o encarceramento forçado de ideias, e como essas algemas representam uma sociedade incapaz de avançar politicamente. Nelson admitiu que pretendia mostrar "o cárcere como uma metáfora da sociedade brasileira". 

Depoimentos

"Nenhum outro de nossos romancistas possui tão grande senso de valores dramáticos, nem penetração psicológica tão admirável. 'Vidas Secas' é um livro rico em imagens. Fundamental numa adaptação é definir quem conta a história. Isso determina a posição da câmera. Acho que 'Vidas Secas' é o único livro de Graciliano contado na terceira pessoa. O narrador, portanto, passa a ser a câmera"


Nelson Pereira dos Santos, 1963


"Por que Graciliano? Ah!, porque a literatura do Graciliano é uma coisa extraordinária! Ele escreve com precisão, consequência, capacidade de síntese, complexidade. Um escritor admirável. Eu não quis fazer qualquer tipo de invenção em uma obra literária que admiro. Fiz com que meu trabalho fosse o de um cantor que interpreta a música de outro compositor com admiração e respeito"

Leon Hirszman, 1983

Saiba mais

DATA
Ano passado foi celebrado 120 anos de nascimento de Graciliano. Desde então, editoras vêm publicando novas edições de clássicos do autor. Ramos foi ainda homenageado na Flip deste ano. 


TEXTOS Os filmes vêm com pequenos livros que reúnem análises críticas sobre as obras e depoimentos dos atores e diretores envolvidos nos projetos. 

POLÊMICA Num dos textos, Nelson lembra que, quando "Vidas Secas" foi exibido em Cannes, a presidente da Associação Internacional de Proteção de Animais ficou indignada com a cena em que Baleia, a cadela da família, é assassinada. Os produtores do filme, então, organizaram a vinda de Baleia, que estava viva, para o festival francês. Mesmo assim, a mulher disse que se tratava de outro vira-lata, pois, segundo ela, todos eram iguais. 

ADAPTAÇÃO Nelson também pretendia filmar "São Bernardo". O diretor escreveu para Graciliano, propondo uma mudança no fim. O escritor negou, explicando que a ideia de Nelson iria se afastar do conceito do livro. 

MÚSICA Graciliano não gostava de música no cinema. Em "Vidas Secas", o som é composto por ruídos. Pensando nisso, Caetano Veloso, que fez a melodia de "São Bernardo", usou apenas modulações de voz, sem palavras. 

Relação intensa entre 
cinema e literatura

O lançamento desses três filmes baseados em livros que habitavam o imaginário literário de várias gerações, lembra um debate antigo: a disputa entre cinema e literatura, duas artes que embora tenham bases diferentes - a imagem e a palavra -, compartilham a mesma essência dramática. 


Na história do cinema brasileiro é possível encontrar casos de adaptações com sucesso de crítica e público. "Além dos nomes já discutidos (Nelson e Hirszman, que adaptaram outros livros), Joaquim Pedro de Andrade me parece completar certo alicerce de nossa 'filmografia literária nacional'. Cabe destacar que atualmente vemos realizadores sendo influenciados por livros e realizando filmes de qualidade, como Luiz Fernando Carvalho, que dirigiu 'Lavoura Arcaica'", ressalta Fernando Mendonça.

Avaliar uma adaptação implica em observar não apenas fidelidade ao texto, mas entender a maneira como gestos ou acontecimentos são transformados em imagens. "Antes de pensarmos um filme como uma adaptação literária, por mais que ele seja inspirado em livros, precisamos compreender que ele é fruto de um novo processo de criação, um produto original", diz Fernando. "A 'boa adaptação', ao invés de se preocupar unicamente com a fidelidade, é identificada pela liberdade de recriar através do movimento de imagem e som uma nova impressão do mundo", sugere. 

"Cinema e literatura são expressões independentes, mas o cinema deve muito à literatura desde os seus primórdios", avalia Alexandre Figueirôa. "Da mesma forma que alguns signos do texto literários são impossíveis de serem traduzidos em som e imagem, o cinema também tem recursos narrativos que são exclusivamente seus. Acho que qualquer adaptação deve ser considerada uma obra distinta", ressalta o acadêmico.

Nesse sentido, a distinção entre as diferentes artes parece implicar em barrar a aproximação natural de duas formas de expressão. "No diálogo entre o cinema e a literatura, não devemos pensar a partir de confrontos ou concorrências (se o filme é melhor ou pior do que o livro), mas sim recebermos as obras como em uma aliança", destaca Fernando.

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